a
memória é acionada em todas essas etapas, em vários aspectos e
circunstâncias. na parte pré-expressiva, o corpo aciona a memória
e a memória aciona o corpo em fluxo, para sentir as referências que
tem acerca das palavras que servirão de estímulo às sensações,
para posterior geração de significados, independentemente de que a
memória não seja clara o suficiente para adquirir forma consistente
e orgânica, verdadeira e crível no corpo.
tomemos
como exemplo dois atores: o primeiro que esteja com sobrepeso e que
leve uma vida sedentária e o segundo que pratica atividade física
de alto impacto e que tem a musculatura visivelmente definida. ambos
exercitarão a tensão. o primeiro terá dificuldades iniciais em
recorrer à memória para sentir tencionamentos em seu corpo e não
passará verdade a quem o observa. o segundo não terá essa mesma
dificuldade, pois o exercício cotidiano fará com que a memória
exponha, com certa facilidade, essa sensação, e será crível aos
olhos do espectador. com a prática do procedimento, ambos terão a
oportunidade de fortalecer essa memória, criar novas memórias a
partir dessa experiência e acioná-las mais organicamente num outro
momento do processo de treinamento e/ou montagem de um espetáculo.
ambos, depois, exercitariam o relaxamento (antagônico da tensão) e
as performances seriam outras; o primeiro ator teria mais facilidade
em ser orgânico em sua performance, e o segundo teria que praticar
mais, inversamente à primeira exemplificação. assim, quanto mais
tempo se exercita o método, mais potencial terá a memória em
recorrer às sensações porque passou, pois que o “hábito”
fortalece a “experiência útil” de aplicarmos a técnica em
“acontecimentos semelhantes” posteriormente, como a repetição
dos ensaios, a rememoração e o constante revisitar para as
apresentações (menezes, 2000).
na
expressividade, ambos os atores acionam a memória para experimentar
essas sensações na construção de suas personagens; se ela é
essencialmente tensa, apressada, ágil, lenta, masculinizada,
feminilizada e, em cada um dos antagônicos elencados no procedimento
adotado, dá a quem exercita um caráter de verdade a partir das
sensações existentes no corpo.
escolhas
físicas repercutem nas características da personagem. nesse momento
não são acrescentadas memórias psicologizantes, como a lembrança
de alguém que poderia ser considerada apressada, lenta, pesada,
feminina etc, para a composição da personagem, pois como estética
e politicamente a companhia não se coaduna com o
realismo/naturalismo, bem como fortalece e valoriza a dramaturgia
atoral, o corpo dita um ritmo diferenciado na composição das
personagens, o que distancia da ideia de se espelhar em alguém que
se conheceu, recuperando na memória sua forma de andar, de dizer, de
agir, em detrimento das composições que o próprio corpo
representará a partir das sensações que as palavras do
procedimento, numa recuperação ou formação de memórias,
sentenciará.
no
terceiro momento, há uma espécie de reforço da memória para fazer
com que a composição da personagem se solidifique, dê organicidade
e permanência no tempo e também nas ações físicas necessárias à
compreensão da diegese do espetáculo, gerando com o corpo e em
conjunto com as outras dramaturgias sua própria dramaturgia atoral,
em que o corpo do ator articule uma dimensão dialética com o texto,
com a luz, com o cenário, com o espaço etc.
para
que o corpo aprenda, apreenda e se recupere em sua dimensão de
gerador de significados, há a necessidade de seguir os rastros das
mesmas sensações, desde o processo pré-expressivo, mas
principalmente a partir do expressivo, retomando a composição que
caracteriza cada uma das personagens, e que nomenclaturamos como
origem: momento que, dentro de um espaço de tempo, o ator recupera,
relembra através de movimentos,
a corporeidade de sua personagem.
no
espetáculo “pai & filho”, em que eu faço o pai, preciso de
15 minutos para que meu corpo se lembre e se reorganize na estrutura
corpórea da personagem. seguindo uma rotina, e já devidamente
caracterizado, os pés enraizados e alinhados à cintura pélvica,
com a pélvis encaixada, conto mentalmente 10 segundos para elevar a
cabeça, como se alongasse a coluna; mais 10 segundos e encaixo os
ombros, como se puxassem lateralmente a ambos; 10 segundos e elevo o
peitoral como se fosse um pombo ou como se projetasse os mamilos para
o teto; 10 segundos, como se puxassem o meu corpo para trás,
objetivando reencontrar o ponto de equilíbrio, contraio as
omoplatas; 10 ou 20 segundos nessa posição (no teatro
antropológico, na mímica corporal dramática, na dança,
convencionou-se chamar de posição neutra ou zero). sentindo o peso
(o antagônico que guiará toda a personagem) da gravidade sobre os
ombros, vou lentamente fazendo com que o corpo se curve em direção
ao chão. cabeça, pescoço, ombros, cintura escapular, tronco,
joelhos flexionados, braços pendendo ao lado do corpo, até que os
dedos das mãos alcancem o chão. inspiração e expiração fortes,
porém lentas. o corpo reage a esse peso com a força (antagônico
que auxilia o peso na construção de significados e que irá
antagonizar com ele a escrita do ator), elevando-o até ficar
novamente na posição neutra. esse movimento se repete por duas
vezes. os olhos se abrem e percorrem o espaço acima, abaixo, lateral
esquerda e direita, se fecharão para a repetição do movimento de
ir ao solo a partir da força da gravidade mais duas vezes. após, o
corpo está pronto para se deslocar como a personagem e começar a
projetar partes do texto e a exigir do corpo que retome, relembre,
algumas ações em mímica da personagem, no espetáculo, como
atarraxar uma lâmpada, borrifar veneno, costurar a própria calça e
a camiseta do filho, andar em ritmos diferentes etc. depois de 15
minutos, calço os sapatos, coloco o alfaiateiro no ombro direito e o
linheiro no ombro esquerdo e pego o rolo de tecido com a mão direita
e o coloco sob o braço direito e pouso a mão esquerda sobre o rolo
de tecido, e espero o momento do início do espetáculo.
o
teatro é efêmero e cada apresentação é diferente da outra porque
existem muitas variáveis envolvidas. entretanto, esse percurso será
exigido para que se recupere a ideia original da obra de arte, aquilo
que fez com que ela fosse exposta à apreciação pública. para que
tenha efeito essa ideia original, necessário se faz que aproximemos
cada uma das apresentações como se fosse uma única em forma e
conteúdo.
alguns
instrumentos são utilizados para preservação e recuperação da
memória na pequena companhia de teatro: diário de encenação,
catálogo de ideias, filmagens, fotografias, clipping,
produção textual, arquivos digitais, que são acionados quando há
alguma querela entre as memórias individuais para recuperar uma
cena, uma ação ou movimentação específica. os atores na
companhia nunca tiveram a prática do registro escrito. algumas
tentativas foram experienciadas, mas há um lapso temporal importante
entre a execução do movimento, da ação e do gesto para a tomada
das anotações. se for no instante do acontecimento, desgasta o
ritmo do processo criativo. se se deixa para um outro momento, a
escrita fica comprometida, dada a distância da sensação, do fato.
independentemente
da não sistematização dos registros coletados desde seu
surgimento, a pequena companhia de teatro tem esse hábito como
mecanismo de contar sua própria história. quanto mais informações
forem preservadas, mais possibilidade haverá de a história ser
contada pela perspectiva de seus integrantes, em que pese o
desinteresse do estado em preservar a história do teatro de grupo no
país.