quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Partes de mim


Semana passada estive em Mossoró, para a serenata surpresa e íntima, promovida pela “A Máscara”, e dirigida por Damásio Costa, para uma das minhas amigas mais queridas, a atriz Tony Silva. Aproveitando a ocasião, pudemos espremer o tempo e avançar nas discussões e procedimentos da próxima montagem do grupo, prevista para 2019, com direção minha, como você já sabe, pois leu aqui.

Nossa discussão, que se encaminhava para a adaptação do romance “A Polaquinha”, de Dalton Trevisan, sofreu um pequeno revés, e nos percebemos discutindo pertinência, contemporaneidade, desejos, oportunidades; definindo que será uma das nossas três montagens juntos, mas não necessariamente a primeira.

Esse titubeio oxigenou meu discernimento e alimentou o assunto da escrita semanal que me imponho aqui, e que tem sido motivo de análise severa quanto a efetiva necessidade da permanência do exercício, tendo a falta de frequência como aliada na argumentação para a suspensão do martírio de me revelar semanalmente. Inflamável, o conflito explodiu nas entranhas e sangrou, expondo as vísceras do teatro de grupo na contemporaneidade: o que dizer?

Minha tentativa hoje é discorrer sobre todas as influências que afetam uma opção orgânica de temática definida por um grupo e as consequências que essa ponderação possam infligir na obra de arte em questão.

Como sempre me apresento como vidraça, digo: a Mulher, personagem emblemática da nossa próxima montagem, foi vestida durante um período pela atriz Jyesse Ferreira, em um desempenho preciso que oferecia a representação exata que a personagem demandava. Somava-se a essa sorte, a imagem estética do corpo total da atriz, que traduzia a Mulher com acerto. Em um determinando momento do processo, quando nos deliciávamos em descompromisso criativo experimentando aleatoriamente propostas dos atores para o figurinos das personagens, me deparo com a concretude da Mulher: Jyesse, com sua particular beleza, descalça, com uma saia volumosa e patética, e nua no que se refere a todas as partes do corpo que o pano não cobria. A Mulher perfeita. Não como símbolo de perfeição, percebam que escrevi com maiúscula, pois a personagem se chama Mulher, logo, a personagem perfeita. Tergiverso para atiçar a sua curiosidade.

Você deve estar se perguntando, o que essa glosa significa? Qual a relação com o dizer desta postagem? Revelo: após o registro da imagem epifânica pelas minhas retinas, me deparei questionando a opção. Em trinta anos de teatro, nunca havia vivido a sensação de confrontar uma demanda orgânica da cena com o entorno com a qual ela vai dialogar. Falamos de censura, de conveniência, de cuidados, de enquadramento, de todas uma hermenêutica que jamais deveria habitar o diálogo de uma obra de arte em construção.

Eis a questão. O quanto o mercado, as curadorias, o espectador, o viés político   tem influenciado as opções do teatro de grupo na contemporaneidade? Quanto a conveniência influencia a cena? Tenho me deparado com uma frequência fenomenal com comentários referentes às motivações que determinaram o destino de encenações das mais diversas: ter uma pegada mais contemporânea; uma estética mais enxuta para facilitar a circulação; o problema da internacionalização é o idioma; preferimos não arriscar para não limitar; o espectador quer se divertir; melhor evitar polêmica; melhor provocar polêmica...

O que deve ser incorruptível em um dizer artístico? Até que ponto a concessão é uma arma ou uma farsa? Não caberia à arte a crueza da verdade necessária, independentemente do diálogo com o seu entorno? Não caberiam às vanguardas o não enquadramento? Fazemos teatro ou promovemos unanimidades? Provocamos ou pasteurizamos?

Mesmo depois de trinta anos tropegando nos trilhos tortos do teatro de grupo e seus azares, a experiência não me brinda com a serenidade típica e cadenciada da idade. Hoje, estou pouco confortável com a nova ordem que se desenha. Não me sinto em condições de arbitrar valor ao caminho mais acertado para decompor tudo o que está posto e provocar uma nova desordem. Insistir na ruptura? Investir no decote? Como se estrutura a cena cíclica do mundo? Como progride um universo; do caos ou da harmonia? Queremos aceitação ou queremos transgredir? Qual é o meu lugar na cena? Qual é o lugar do teatro de grupo?

Outro dia escrevi que decidi ser jovem depois de velho, e cheguei atrasado. Blefe? Continuo um velho empedernido? Você me vê transigindo com o que não me representa pelo valor atribuído aos vinténs da contemporaneidade? Você me enxerga enquadrando uma obra para ampliar a repercussão do seu dizer? Você me entende como sujeito de uma construção pré-moldada? Você reconhece o dilema ou acredita no meu jogo de cena? Não, não são perguntas retóricas. Me responda: como você me vê?

domingo, 4 de novembro de 2018

Como montar um espetáculo em tempos de crise?


Como sempre. Como todo grupo de teatro brasileiro fez nestes últimos trinta anos em que me entendo por teatreiro. Sem dinheiro, sem apoio, sem aceno, sem visibilidade, sem holofotes, sem marqueteiro, sem diploma, sem lenço, sem documento, sem perspectiva, sem futuro. Com vigor, com vontade, com tesão, com afeto, com empenho, com afinco, com humor, com desejo, com responsabilidade, com sobriedade, com corpo, com sangue, com sonhos, com utopia.

Ensaio sobre a memória é o nosso projeto de vida atual. É o que queremos e precisamos fazer, independentemente das condições dadas – ou surrupiadas – para a sua execução. É a nossa necessidade. É o que o nosso comprometimento demanda. É o grito que precisamos dar para não sermos omissos no momento em que o país mais precisa do teatro de grupo. Como podemos perder a memória assim? Como a nossa falta de memória pode ter nos levado a isto que estamos vivendo? Como diria uma personagem da nossa peça: “Entendo que nossa carne não tem a fibra que devia ter... estamos todos adormecidos, uma espécie de letargia mórbida que nos faz aceitar tudo... não há um mínimo de resistência”. Como a memória pode ser tão frágil ao ponto de padecerem as lembranças mais atrozes que a humanidade conseguiu produzir?

É o que estamos tentando entender. O que é memória? O que é história? O que estamos fazendo com o nosso passado? O que sabemos do nosso passado? Por que a memória insiste em se esconder quando o país mais precisa dela? Sabemos o que fazer: resistir, combater, anarquizar, questionar, surpreender, assaltar. O teatro de grupo sempre soube o que fazer, e nunca se escorou na falta de recursos para calar um grito, pois crise para o teatro de grupo neste país sempre foi rotina. Sabe como a Pequena está fazendo? No peito. Não me perguntem como, não me perguntem o porquê, só posso dizer que fazemos porque é necessário.

Sempre acreditei nisso, no nosso poder de resistência. Mesmo agora, quando a nossa montagem recebe um golpe grave, agudo, resistimos; nos readaptamos, nos reconstruímos, nos regeneramos; nos reconhecemos vivos, pulsantes, combativos; dispostos a erguer a voz da memória, a combater a distopia, a revisitar os percalços da história, a passear pelo cambaleio do passado para tentar entender o titubeio do presente – é que teatro de grupo é de outra natureza; quanto mais nos podam, mais crescemos.

A solução está em lançar mão de velhas formas e tentar formatar caminhos menos ortodoxos. Alargar as parcerias, intensificar o diálogo, refletir sobre as ocorrências do passado, dissociar da prática a possível letargia gerada pelas intempéries – Cláudio tem transitado bem por esse pensamento nas últimas postagens. Um novo espetáculo se constrói do que pulsa no seu entorno sócio-político-cultural, mesmo que o seu dizer esteja descolado na sua temática. Não é o nosso caso, pois a temática abordada pelo destino de Pedro Damián dialoga diretamente com a atual conjuntura; mas também tentamos incorporar essa atmosfera na busca da potência pulsante que as agruras de uma realidade jamais esperada nos apresenta, e conduzimos nossa prática para além do universo ficcional, capilarizando na montagem as estratégicas que a nova ordem nos impõe.

O caminho mais acorde com a nova realidade é a guerrilha. Valer-se das táticas de guerrilha para a montagem, para a divulgação, a repercussão, para o financiamento, para a manutenção. Agora estamos sós. Não se espere nada do poder público federal. Muda o rumo. Remontar práticas passadas – passamos por tudo isso inúmeras vezes – e invencionar práticas futuras. Agora, mais do que nunca, recupero uma das postagens de maior repercussão deste blog: Entretecendo a teia da revolução.

Em outra postagem perdida no limbo cibernético eu imaginava a pergunta solidária da fiel leitora e do cruel leitor: o que eu, do meu lugar de plateia, posso fazer pelo fortalecimento do teatro de grupo brasileiro num tempo de crise como esse? Hoje, mais do que nunca, suas possiblidades são inúmeras. Se não achar uma única resposta, me provoque, pois pode ser o tema da minha próxima postagem.