domingo, 25 de março de 2018

O maldito vídeo do espetáculo!


Desde o Festival de Teatro Sul-Maranhense, em Balsas, nos idos 1989, até o Boca de Cena, este ano, em Campo Grande, participo de festivais e mostras de teatro pelo país das mais diversas formas; seja como curador, participante, selecionador, debatedor, organizador, concorrente, promotor, selecionado, jurado, oficineiro, mediador ou programador, dependendo da década e do formato do evento.

As experiências me trouxeram diferentes aprendizados que não caberiam em uma postagem. Portanto, hoje me concentro em uma condição que vem perseguindo meu juízo e sendo um dos meus maiores motores de reflexão no que se refere aos eventos que promovem encontros de grupos teatrais: o quanto o teatro ficou dependente de uma tecnologia que deveria servir apenas como instrumento de registro, o vídeo.

Me assusta a transferência de responsabilidade que acontece entre o ato teatral e o registro videográfico, instrumento normativamente impossibilitado pelos festivais de operar códigos da linguagem cinematográfica – única alternativa para que um registro em vídeo consiga aproximar o espectador do espetáculo teatral e sua ambiência –, mas obrigado a apresentar o máximo de identidade possível com a peça em questão.

Claro que a dependência da qual trato aqui diz respeito aos mecanismos de seleção e curadoria postas no país atualmente, quando o destino do espetáculo depende da apreciação, em vídeo, dos inscritos, nas mostras por parte do selecionador contratado para a tarefa – metodologia aplicada para a seleção da programação na grande maioria dos festivais e mostras do país. Essa trágica condição reduz toda uma linguagem a nada. Todo e qualquer esforço teatral fica sujeito a uma filmagem, e às coincidências entre linguagens que possam favorecer e aproximar uma peça de uma tela.

Na minha última experiência como selecionador do material em vídeo enviado para o Boca de Cena, fiquei assombrado com a dependência e comprometimento do trabalho artístico quando a atenção para o registro em vídeo não apresenta a mesma atenção dedicada à própria montagem. Um sem fim de imagens borradas, saturadas, escuras, áudios ininteligíveis, personagens fora do quadro, mídias vazias, danificadas; um caleidoscópio de tudo o que não se deve fazer se queremos que o espetáculo tenha alguma chance. Claro que a argumentação óbvia caminhará no sentido de aperfeiçoar a qualidade do registro, e a mesma réplica se encarregará de assegurar que o olhar do profissional contratado para a função tenha o treinamento necessário para fazer as desconsiderações pertinentes a cada caso. Porém, o que quero observar não trata da incompetência do grupo em fazer o registro, nem da genialidade do olhar do curador que consegue transformar registro em vídeo em teatro vivo. Trata de que essa não deveria ser uma expertise do grupo de teatro: a obrigação do artista teatral é operar os códigos da sua linguagem – o que não é pouco – para conseguir um resultado artístico contundente o suficiente para que se queira ver nos diversos polos de mostragem chamados festivais. Somar a essa exigência a representação do espetáculo em vídeo, sem deixar que se utilizem os códigos da linguagem do cinema, me parece uma demanda descabida. Mesmo que o grupo contrate o melhor cineasta do país, sem operar linguagem, esse profissional não será capaz de aproximar o espectador da experiência teatral.

Porém, se é o que está posto, como resolver o imbróglio? Agora, educada leitora e paciente leitor, me permitam falar especificamente para a cena teatral sul-mato-grossense – última experiência de seleção que participei – e tentar contribuir de alguma maneira com umas observações. Penso que é através da representação. Estudar de que maneira a imagem captada representa o espetáculo visto. Mesmo que o edital exija um plano sequência fixo e geral, estudar as adequações necessárias para aproximar o observador da cena. Detalhes simples, mas que podem fazer a diferença; como o de jamais reservar um único momento para o registro; fechar a roda no tamanho do enquadramento, se o espetáculo for de rua; nunca deixar uma fala ou cena fora do enquadramento, se esta for estruturante da narrativa.  Porém, se não for possível, pelo menos concentrem energias na qualidade técnica da imagem e do som. Dediquem-se ao registro como se fosse parte do processo. Pensem nele com excelência. Desde o meio de microfonar até o teste da mídia em diversas máquinas; desde a resolução da imagem do link disponibilizado, até a conferência da senha, caso seja necessária. Atentem a todo e qualquer detalhe que possa piorar a já comprometida relação entre o responsável pelo destino do seu espetáculo e a imagem capturada por vocês para que ele tente se sentir no teatro – essa doce ilusão que atende pelo nome de vídeo completo do espetáculo. E se não conseguirem, pois as condições de produção do seu grupo são tão amargas quanto as condições do teatro de grupo no Maranhão, talvez sirva de consolo saber que a Pequena Companhia de Teatro tem os mesmos problemas e comete os mesmos erros desde a sua gênese. Falar é fácil.

Agora, se é o que está posto, por que está posto, e por que deixamos que alguém assim o pusesse? Perceba que voltei a falar com você, leitora e leitor, que não necessariamente mora no Mato Grosso do Sul. Isso é que são elas, e, como nunca tenho respostas, busco nas postagens o diálogo que me permita entender a condição, estruturar um pensamento, e aglutinar iniciativas que possam mudar esse quadro, antes que o quadro mude o teatro de grupo do país. Como chegamos a isso? Como desmontar uma prática que achata o resultado artístico de um espetáculo teatral? Como contestar essa exigência sem ficar à margem dos festivais? Como disponibilizar o acesso qualificado a uma produção teatral produzida nos confins do Brasil?

Claro que se você vive em outro planeta, mais especificamente em São Paulo, não deve fazer ideia do que eu esteja falando. Pois aí o curador consegue ver o espetáculo teatral ao vivo, sem pagar logística nem cachê pela apresentação, e o grupo ainda agradece a oportunidade. Adoro uma fofoca.

domingo, 18 de março de 2018

Idiossincrasias de habitar o Maranhão


Semana passada estive em Caxias/MA, a convite do Grupo Fama, para acompanhar a montagem de “A Garota & o Anjo”, processo que vem sendo urdido há mais de um ano, e que agora ganha um corpo mais dramático – motivo pelo qual suspeito que o chamado tenha se estendido a mim, pois o grupo desenvolve um trabalho mais relacionado com a comédia, o popular e a rua. Lá também ministrei a oficina sobre o Quadro de Antagônicos para o SESC, parceria que teve como objetivo custear as despesas da minha ida.


Não terei maior ingerência na montagem. A cena já está construída, o conceito estabelecido, a estética definida, a dramaturgia escrita; fui convidado para acompanhar o processo final; observar, apontar, sugerir, e tentar contribuir de alguma maneira para o amadurecimento da cena. O procedimento que utilizamos foi o de eu conduzir os ensaios – principal instrumento de aperfeiçoamento teatral que acredito. Trabalhamos até a exaustão durantes os três dias do encontro. Levando em consideração que a oficina ocorreu no sábado e domingo pela manhã, ensaiamos nos turnos restantes, desde a minha chegada, na sexta à noite, até a minha partida, domingo, tarde da noite.

A experiência me trouxe sensações que pensava estarem congeladas neste vetusto coração teatreiro. Alguns de vocês sabem que, tanto Cláudio quanto eu, fomos criados artisticamente no interior do Maranhão, mais precisamente nas cidades de Imperatriz e Balsas, trinta anos atrás. O impacto de encontrar um grupo maranhense em uma trajetória de luta tão similar à que percorremos, me fez lamentar o estado em que vivemos e o país que padecemos.

Como é possível que em trinta anos nada tenha mudado? Como é possível que as condições de trabalho de um grupo de teatro no interior do Maranhão, depois de três décadas, sejam apenas as condições que o grupo estruturou independentemente, a partir de uma resistência inaudita que precisaria ser estudada? As idiossincrasias de habitar o Maranhão são tão severas que adormece a nossa percepção, e passamos anos sendo pisados sem reagir.

Já a experiência em si trouxe o tempero que adoça a amarga realidade e faz tudo acontecer. Ver esses meninos trabalhando me deixou eufórico. Não me leiam pretensioso. Trato-os assim por ser contemporâneo de teatro do pai do ator mais velho do grupo, que tem mais de 30 anos. Descobrir essa filiação me fez perceber o quão próximo estou da morte. Cada movimento, cada palavra, cada gesto carregava a ancestralidade de luta de todos nós, paridos no interior do estado. A ousadia na escolha do tema, a guinada na proposta artística do grupo, a busca de sair de uma posição de conforto, a disposição afetiva, energética, física, emocional; tudo convergia para reavivar a memória de um tempo duro, importante para a nossa trajetória, e que nos trouxe – Cláudio e eu – até onde chegamos hoje: o lugar nenhum chamado Pequena Companhia de Teatro.

Me vi no desejo de interlocução. Na necessidade que também sentia de dialogar além das fronteiras de Balsas – em um tempo onde não existia internet –, e no descaso dos gestores de cultura em promover esse intercâmbio. Circulávamos entre Imperatriz e Balsas com recursos próprios. Trabalhávamos dia e noite para poder ensaiar de madrugada. Oferecíamos aos amigos que nos visitavam o que podíamos. Construíamos a nossa cena com o desperdício de uma sociedade consumista e indiferente ao fazer teatral. Nada mudou. Nada mudou? Nada. Tudo igual. Eles resistem através das mesmas práticas que nos possibilitaram resistir, mesmo em um estado que pela primeira vez convive com uma experiência comunista. Até nisso o teatro de grupo do Maranhão tem azar: com as atuais políticas públicas do governo vemos avanços em diversas áreas sociais, mas quem pode se interessar por algo tão inútil quanto um grupo de pessoas usando o teatro para questionar as injustiças do país? Caberia lembrar ao nosso governador que o teatro de grupo é a experiência comunista, por excelência.
Mas a colheita da visita não foi de dor e sim de frescor. Me entusiasmou ver que o teatro ainda é possível. Me revigorou saber que um grupo de teatro, em Caxias, está fazendo a diferença para a sua comunidade. Me provocou pensar que neste país ainda se faz teatro contra tudo e contra todos. São quatro lindos e queridos teatristas. Cada um com a sua peculiar potência cênica, seu particular humor, sua inesperada personalidade, suas diferentes leituras de mundo e suas obscenas idades: Adriele tem 19 anos; Rodrigo, 20; André, 24 e Igor, 34. Indivíduos plurais, reunidos no mais improvável lugar de fama: um grupo de teatro (Não podia perder a piada referente ao nome do grupo, pois rimos muito falando do assunto). Agora, eles tentam provocar o espectador com os desdobramentos da relação entre um anjo e uma mulher, e me dão o prazer e a alegria de poder acompanhar a empreitada da montagem.

Porém, tem sempre um gesto, uma incompreensão, uma palavra, um mal-entendido, uma situação que nos mostra que estamos vivendo e, como vida, nada pode ser perfeito. Ainda bem. Detalhe para uma possível postagem futura. Não convide o ermitão para sair da ermida. Você não vai saber lidar com ele.

domingo, 4 de março de 2018

Dez mil espectadores!


Próximo a completar 8 anos em cartaz, o espetáculo Pai & Filho se encontra em curta temporada aqui na sede da Pequena Companhia de Teatro (Rua do Giz, 295, Centro), ontem, hoje e amanhã (sábado, domingo e segunda), às 19h, com uma série de peculiaridades que servirão como fio condutor das micro-reflexões fragmentadas que me proponho na postagem de hoje.

A primeira peculiaridade atravessa a política de preços da Pequena Companhia de Teatro. Depois de quase uma década em cartaz, e 25 apresentações em São Luís, ontem foi a primeira vez que cobramos ingresso para assistir ao espetáculo. Como o nosso posicionamento político assegura a gratuidade de qualquer atividade da Pequena quando for subsidiada com recursos públicos, fica manifesta a aridez de políticas públicas culturais pela qual passa o teatro de grupo do país, e percebemos claramente o quanto essa gratuidade contribuiu para aproximar um público com menor elasticidade orçamentária e, por consequência, que não tem o teatro como hábito. É fácil dizer que tem que cobrar, mas qualquer apreciador de teatro, que cresceu na labuta diária pela sobrevivência, sabe o que é ser privado daquela experiência artística única porque não tem o vintém que separa o quero do posso. Desta feita, o vintém corresponde ao valor de R$ 20,00.

Também é a plateia, peculiarmente, a estrela desta temporada. Na apresentação de ontem conhecemos o espectador de número 10.000! Nilson Carlos Costa, é o nome dele. Levando em conta que o espetáculo Pai & Filho foi apresentado majoritariamente com plateias reduzidas, esse é um número a se comemorar. Para atingir essa quantia, o espetáculo precisou se apresentar 148 vezes, em 62 cidades de 22 estados do Brasil. Um fato desses não podia passar incólume, e o sortudo ganhou um certificado que dá direito vitalício à gratuidade de acesso a qualquer atividade da Pequena Companhia de Teatro, além de um espumante que nos custou o borderô dos três dias de apresentações. A anedota me serve para ilustrar o pensamento primordial do nosso grupo. Não fosse o entendimento da necessidade de nacionalização da Pequena Companhia de Teatro, seria impossível chegar a essa plateia, pois a demanda local por um teatro focado em uma pesquisa de linguagem com menor diálogo como o mercado não possibilitaria atingir esse número de espectadores. Sempre trabalhamos com esse propósito, e durante toda a nossa existência como grupo, procuramos estabelecer o maior diálogo possível com o país, independentemente de projetos custeados, como no caso recente da nossa ida a Mossoró e Natal com o espetáculo Velhos caem do céu como canivetes. É o diálogo com os grupos de teatro do Brasil que assegura a nossa sobrevivência.

Seguindo com a relação de peculiaridades desta emblemática temporada, é a primeira vez que uma apresentação de Pai & Filho, em São Luís, não tem nenhuma relação com algum tipo de projeto que a companhia esteja desenvolvendo, a não ser o de manutenção independente. O espetáculo – que foi o primeiro do Maranhão a participar do SESC Palco Giratório – sempre esteve referendado pelos principais editais, prêmios, projetos e programas do país; e assim, ocupamos o Centro Cultural BNB, em Sousa/PB, participamos do Viagem Teatral, do SESI, circulamos pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, e ganhamos dois Prêmios FUNARTE de Teatro Myriam Muniz – estes, responsáveis pelo maior número de apresentação do espetáculo em São Luís. Essa realidade diz muito do questionamento levantado no segundo parágrafo desta postagem: em tempos de escassez, cortes de verbas, privatização, contingenciamento, mercado, estado mínimo, e toda a sorte de palavras do dicionário neoliberal, a constatação de uma aguda desidratação do teatro de grupo é a prova do eficiente mecanismo de desmonte cultural iniciado recentemente. Com política, sem política, você ainda pode nos assistir hoje e amanhã.

Pai & Filho também concentra 6 Prêmios SATED/MA de Artes Cênicas, nas categorias de Melhor Ator, Diretor, Espetáculo, Produção, Cenário e Figurino. Esse prêmio, tão criticado pela classe, me sugere uma sentença que deve transitar pelo imaginário teatral da cidade: ter prêmio SATED ou não ter, eis a questão. Penso que o prêmio nunca atingiu a potência que poderia ter, como instrumento de celebração anual, como momento de encontro, como reconhecimento dos esforços de produção de uma classe, contudo, o desaparecimento deste supera todas as carências que a sua existência apresentava? Digo, com a extensão do prêmio, ganhamos ou perdemos? Às vezes, quando a crítica não se faz reflexivamente, pode apresentar resultados que não são os mais saudáveis, e o poder desta pode ser devastador. Não estou certo se as críticas que fiz ao prêmio contribuíram para o amadurecimento do movimento teatral maranhense, mas tenho certeza que colaboraram para a extinção do prêmio. Foi o melhor fim?

E para encerrar o desfile de peculiaridades da curta temporada de Pai & Filho, que abre nosso calendário de atividades para 2018, não poderia deixar de falar do espetáculo em si. Venha ver. Vale a pena ver atores como Cláudio Marconcine e Jorge Choairy. Depois de oito anos em cartaz, vale a pena ver o quanto essas personagens se apropriaram da cena, o quão integro está o vigor e o frescor da ação; vale a pena ver o quanto um espetáculo vive, amadurece e se transforma com o tempo, mesmo que não se mude uma vírgula.