domingo, 24 de junho de 2018

O que é uma crise criativa?


O romance entre a mediocridade e a inércia? Um surto de incapacidade? A poética do óbvio? O distúrbio gerado pela esterilidade? A cama do ócio? O acento agudo na inviabilidade? Um obstáculo com tentáculos? A suspensão inalienável? O descompasso entre querer e poder? A sorte de não ter mais o que dizer? O início do fim? O fim?

Penso que uma crise criativa é o espasmo vivido pelo artista antes de arrebentar o casulo da inventividade. Deve ser cultivada, explorada, desafiada, jamais temida. Crise é caos, caos é fúria; é a fração de tempo seco no abismo orgânico das ideias. O abismo é o espaço do mergulho, e a crise é o momento derradeiro antes do salto. Mas que dói, dói, como já tratei aqui.

Recentemente, um confidente teve contato com o ser dramático que habita em mim, e espantou-se com a intensidade de sua volúpia – claro que a leitora, discreta depositária, e o leitor, íntimo desconhecido, já suspeitavam da existência deste mensurador de misérias. É um ser que me supera, me desgoverna. É aquele que perde o rumo; o responsável pela minha hiperbolizabilidade, exagerabillidade – foi dele a escolha dessas duas palavras. É ele quem lida com a crise, não eu. Ele é o responsável por deixar explodir a agonia do desajuste, o torpe desespero de quem se esvaziou, a diáfana certeza do fracasso. Ele labuta com a crise criativa em um descomedimento peculiar, e alguns interlocutores meus se assombram com isso. Eu não. Eu deixo que ele opere e catalise esse torvelinho de angustias para a nova montagem.
Enquanto isso, eu trabalho. Vou indo, sem saber o que faço. O momento preambular que estou vivendo agora – aquele que antecede a entrada em sala para o início dos ensaios de montagem – é o ápice da crise. Em sala de ensaio tudo se dilui. Tudo ganha uma poética nova. Angústia vira potência, medo vira energia, falta vira provocação, certeza vira busca. É que é teatro, entende? A arte que se constrói em grupo; a efêmera manifestação dos encontrados; a certeza do anonimato coletivo.

Contudo, a entrada em sala ainda demora. Definição de elenco, finalização do texto, Cláudio prepara um trabalho novo, eu passo vinte dias em Mossoró, captação de recursos... O primeiro ensaio está marcado para dia 06 de agosto. A estreia? Para 22 de novembro. Até o início dos ensaios é isto que narro e berro: um epítome de tudo o que um homem pode ser de mais tosco. Dramaturgia da desesperança, teatro do impossível, estética da falha, palco do abandono, ensaio do descaminho; e o cérebro – esse labirinto de descalabros – teimando em me mostrar que fali.

Adverti. Ele é dramático. Grande parte de tudo o que escrevi hoje advém dele. Não tenho pretensão de que tudo isso passe; ao contrário. Como a Pequena Companhia de Teatro promete, a partir deste ano, estrear um espetáculo por biênio, minha vida vai se tornar um inferno. Mas, estaremos aqui, ele bem mais do que eu, pois você já deve ter percebido que esse dramático delirante domina a minha escrita desde a primeira postagem.

domingo, 10 de junho de 2018

Enquanto nós latimos, a caravana passa!


Nós, artistas, temos por hábito reclamar da gestão, e atribuímos grande porcentagem da nossa desdita à incompetência gerencial de toda e qualquer instituição, seja ela pública ou privada. Hoje tenho um fato que me permite fazer de advogado do diabo, e desenvolver uma análise que fará o contraponto a essa permanente vigilância, virando a metralhadora contra nós mesmos.

Embarco, neste exato momento, para Macapá. Ano passado participei do SESC Dramaturgias, como tanto tratei aqui; e qual foi a minha surpresa e alegria ao receber o convite para participar novamente este ano, agora com a oficina sobre a dramaturgia do ator? Mas, o maior espanto não veio com o convite, e sim, com a necessidade de mudança do formato anterior, pois os resultados atingidos no ano passado não alcançaram as expectativas.


Explico: em 2017 o projeto oferecia oficinas de dramaturgia com formato de 32h/aula, divididas em dois encontros, com um significativo tempo de estudos, maturação e produção entre um encontro e outro, iniciativa que me era muito cara, como destaquei aqui, aqui, aqui... Eis o meu assombro quando recebo a informação de que o formato agora obedeceria a carga horária de 20h, em um encontro único. Ao indagar os gestores sobre os motivos da mudança, recebo como resposta o argumento que é objeto da reflexão que hoje proponho: na maioria das oficinas ministradas se comprovou um esvaziamento significativo entre o primeiro encontro e o segundo.

Como? A instituição oferece maior carga horária, dois momentos para aperfeiçoamento da pesquisa, intervalo entre os encontros para desenvolvimento das práticas – aumentando despesas, exigindo grande empenho por parte dos idealizadores para sensibilizar os promotores – e a classe artística responde com evasão, desinteresse, desprestígio? Se fosse um caso isolado poderíamos atribuir o fato à qualidade profissional do oficineiro, mas, sendo a grande maioria, a teoria cai por terra antes mesmo de levantar voo.


E daí vem a provocação que hoje faço: é muito fácil reclamar, exigir, reivindicar; difícil é trabalhar, pesquisar, estudar, praticar. Como pode ser que percamos algo tão valioso por pura displicência nossa? Não é o primeiro projeto, edital, programa, fomento, que perdemos por falta de empenho, disposição, prontidão, assiduidade e, claro, reivindicação.

Como sempre dou a primeira cajadada em mim mesmo, me perguntem quantas oficinas do SESC Dramaturgias frequentei antes de ser convidado para participar do projeto como oficineiro? Nenhuma! Sempre tinha uma circulação, uma montagem, uma visita, um jantar, um jogo de botão. Será? Ou sou gênio demais, e não tenho nada para aprender com artistas que admiro como Fernando Lopes, Wilson Coelho, Vinícius Piedade, Pedro Vilela, Henrique Fontes, Altemar Di Monteiro, só para citar amigos? Entendem onde quero chegar? Quanto nós, artistas, somos responsáveis por nossa condição? Estou eximindo os gestores? Claro que não. Eles têm a obrigação de atender as demandas de uma classe, mas se a oferta não for absorvida, evidentemente que a reivindicação escancara sua esterilidade. 


Como no caso que hoje problematizo: quantas vezes reclamamos que as atividades formativas precisavam alargar a sua carga horária, pois as práticas recentes estavam mais para pequenas vivências que para oficinas propriamente ditas? Quantas discussões perpassaram o assunto nesta mesma sala onde agora escrevo, com atores das mais diversas funções do fazer teatral? E quando se disponibiliza uma atividade com carga horária que se equipara a de meia disciplina de qualquer curso superior – o que não é pouco para uma oficina – respondemos com evasão.   

A crítica à gestão, seja pública ou privada, essa vocês conhecem, e está em uma porcentagem significativa de tudo o que escrevo aqui. Hoje queria tentar fazer uma avaliação sobre as nossas responsabilidades. Alguém reclamou da mudança do formato do SESC Dramaturgias para uma carga horária menor? Alguém poderia reclamar, com a assiduidade que apresentamos? Enquanto não tivermos o entendimento da responsabilidade que uma reivindicação gera naquele que reivindica, continuaremos bradando indiscriminadamente, reivindicando o óbvio; e seremos tratados como bufões, arautos do caos, bocas-de-confusão.


Claro que, a partir da postagem, o artista absoluto saltará em defesa de si próprio, tentando virar a metralhadora novamente para o projeto ou a instituição, dizendo que blá-blá-blá. Pare! Que, neste caso específico, fica feio. Os fatos são irrefutáveis até para mim, defensor ardoroso do formato anterior, e crítico contumaz de tudo e de todos – os números inibiram a minha réplica quando se fez necessária.

sábado, 2 de junho de 2018

Chove canivetes e não chove espectadores



Você, assídua leitora ou caríssimo – e não menos assíduo – leitor, deve estar estranhando a antecipação da postagem dominical para hoje. A explicação é simples: o fato que narro a seguir é o provocador da minha reflexão, e ele acontece no dia em que o criador descansou – ancoro que, sendo Ele, teria eu tirado um ano sabático.

Hoje iniciaremos uma curta temporada do espetáculo Velhos caem do céu como canivetes aqui na sede – Rua do Giz, 295, Praia Grande –, que durará até segunda, sempre às 19h, e com a peculiaridade de ser paga (R$ 20,00), pois das trinta e três apresentações do espetáculo, em São Luís, apenas três foram pagas, em outra curta temporada que fizemos em 2015.
O espetáculo concluiu mês passado uma jornada singular pelo Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, aprovado para circulação pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, com outras 56 companhias do país. A informação não é irrelevante, nem as 76 apresentações, os 5.265 espectadores, as 23 cidades visitadas, os 14 estados, o SESC Amazônia das Artes, a ocupação CCBNB Fortaleza, os dois Myriam Muniz, os quase 5 anos em cartaz. Todavia, por incrível que pareça, isso não tem relevância alguma em relação ao assunto que passo a abordar.

Para nós, a temporada regular do nosso repertório aqui na sede é a ação mais importante e sintomática do ano, pois diz da nossa estratégia de resistência, sobrevivência e guerrilha para superar um estado que não entende a nossa existência como fator de desenvolvimento humano.

Como nós entendemos assim, estamos permanentemente pensando em como reexistir – roubando a expressão que o querido César Ferrário usou no nosso último encontro –,  e apresentar nossos espetáculos na cidade que nos sedia parece uma alternativa óbvia, mas não é bem assim. Claro que o milhão de habitantes da cidade esconde um público potencial que seria mais que suficiente para que essa nossa ação fosse permanente e bem sucedida. Contudo, o primeiro grande nó é que, ao sermos invisíveis para o governo como agentes de desenvolvimento humano, por consequência sócio-político-cultural, também somos invisíveis para a maioria dos cidadãos ludovicenses. Eles não sabem da nossa existência; nem imaginam que existam teatros alternativos no centro de São Luís; nem desconfiam que o Maranhão produza artisticamente algo além de boi, tambor, bloco ou riso; nem sonham que tem grupos de teatro maranhense rodando o Brasil; ou seja, nosso superpoder de invisibilidade gerado pela gestão pública também afeta a nossa relação com o mercado, que no nosso caso, atende primordialmente pelo nome de público pagante.

Esse gargalo tem sido quase intransponível para nós. Como chegar – sem recursos para marketing, propaganda e todo aquele conhecido blá-blá-blá – a esses 5% da população de São Luís que, sabemos, aprecia o teatro que a gente faz, mas que não sabe que fazemos, e que representa algo em torno de cinquenta mil habitantes? Esse público garantiria nossas temporadas regulares pelos próximos 83 anos (!), tendo em vista que o teatro da nossa sede comporta, no máximo, 100 espectadores. Mas, também sabemos que esse é um número hipotético, e que a nossa realidade é fazer um esforço descomunal para garantir os 35 espectadores de hoje à noite. 


A discussão é recorrente, inclusive aqui no blog, e esbarra num fato mais curioso. Na bem sucedida temporada de Pai & Filho, dois meses atrás, foi surpreendente constatar a quantidade de pessoas do meio artístico, ou amigos, ou conhecidos íntimos, ou sensíveis ao teatro de pesquisa, ou docentes e discentes dos cursos técnicos e superiores de teatro e artes afins, que ainda não tinham assistido a um espetáculo que está há mais de oito anos em cartaz, e que acumula 150 apresentações. Ou seja, nossa dificuldade ainda consiste em convencer o entorno sensível, que dirá o recorte populacional potencial que pressupomos existir? Aqui a questão é pessoal: o que faz uma pessoa que gosta, trabalha, pesquisa, leciona ou estuda teatro não ver um espetáculo da sua cidade, na sua cidade, sendo que esse espetáculo foi ofertado de todas as formas possíveis durante quase uma década?

Claro que tudo isso que aporto aqui já me respondi na postagem Se no teatro servissem mocotó o meu mundo estaria completo, mas não podemos, como grupo, padecer sobre uma condição sócio-político-cultural sem tentar fazer alguma coisa que modifique essa realidade. Queremos ofertar um tipo de teatro, sabemos que há espectadores receptivos a esse tipo de experiência, mas não sabemos como localizá-los, ou não temos recursos para tal. Ao nosso alcance está a tática de guerrilha que estamos tentando desenvolver desde a última temporada de Pai & Filho, que envolve intervenções urbanas, panfletagem, estudo e utilização de mídias sociais, lambe-lambe, visitas a instituições, banners em locais estratégicos, convites pessoais, mas tenho a suspeita de que para estas três únicas apresentações do ano, em São Luís, será insuficiente. Prove o contrário ajudando a lotar as casas, comparecendo, compartilhando a informação, recomendando aos filhos, pais, alunos, amigos. Assim, você será o responsável em transformar o superpoder da invisibilidade no da onipresença.