domingo, 19 de maio de 2019

Como se destrói um sonho?


Quem nunca sonhou com o maior amor do mundo? Quem nunca sonhou em se aposentar fazendo teatro, em ser cristalino como a água, em conhecer a verdade absoluta, em pulsar vivaz até a morte, em enxergar o rosto da paz no último suspiro, em viver a intensidade dos vulcões, em sentir o “te” da palavra teatro como quem diz te amo, em ser o melhor homem do mundo?

Meu sonho ruiu. Um pedido para parar. Meu país me pede para parar... Não, seria injusto se não ressalvasse que quem me pede para parar é quem o governa, por não ter coragem de suportar a intensidade de quem faz e diz com o maior amor do mundo. Vivi um sonho, e ele esvaiu-se na sombra dos mornos. Durante mais de trinta anos vivi esse sonho: fazer, viver, pulsar, sentir, amar, comer teatro. Vivi o sonho de sobreviver do meu ofício, e o golpe fatal da imbecilidade o destruiu. Na nova ordem que se apresenta, onde até a educação é irrelevante, o que resta para um artista vagabundo?

Hoje tudo o que escrevo é sem altruísmo, é sem querer mudar o mundo, é sem sonhar com igualdade, é sem a responsabilidade de fazer o bem para ela: a plateia. Hoje tudo o que escrevo é em benefício próprio; um lamento egoísta, único, dolorido; é para mostrar para você como uma conjuntura destrói um sonho de arte, de vida, de tesão, de paixão.

O que eu ganho com isso? Nada. É apenas a minha perversa escrotidão de mostrar para você as minhas chagas. Para você, que sempre esteve comigo, ou para você, responsável civil por minha dor de agora. César Vallejo, no poema Voy a hablar de la esperanza, se dói acima de qualquer coisa. Eu, medíocre marionete de um estado carcomido, sinto essa dor como artista. Como artista que esqueceu de viver outras confidências e apostou tudo num sonho frágil, utópico, anacrônico; o de explodir a cada estreia, o de viver a fúria da arte, o de comer somente o ovo, o biscoito, a azeitona, a coxinha, o mocotó, o queijo que o teatro me desse.

Hoje lhe dou confidências sem conteúdo. Dou-lhe minha dor, minha profunda melancolia, minha falta de coragem para seguir, minha honesta sensação de fracasso. Fui arremessado em um abismo e convidado a despenhar até o fundo. Sim, também sei que artistas têm asas, mas, as minhas, como Ícaro, estão derretidas por querer voar tão perto do sol. Meu sol é ela: a plateia. O diálogo com ela. A dança sensual da confidência, do sussurro, do abraço que acontece quando a cortina se abre. Mas não foi a plateia que derreteu minhas asas. Por sonhar em tê-la tão perto, sempre, confidente, a invejosa e ciumenta realidade as derreteu. E de tão forte ser a fúria da realidade, creio que o meu coração derreteu também.

Mas uma coisa eu sei: não vou voltar a fumar. É uma espécie de presente secreto para a plateia. Finalizei a montagem do nosso espetáculo sem as delícias da nicotina, como dizendo que bastava a sua presença, e ela se fez presente. Ensaio sobre a memória foi minha declaração de amor. Claro que não será a última, pois o corpo que perde suas asas sempre preserva os gestos do voar. Mas foi a mais intensa, a mais pulsante, a mais verdadeira, para que fique sempre muito claro que tudo o que se trilhou não foi em vão. Para que o grito que agora trago, encontre na cena o eco para retumbar. Mesmo com o sonho destruído, estarei sempre aqui. Te amo, teatro.