Quem nunca sonhou com o
maior amor do mundo? Quem nunca sonhou em se aposentar fazendo teatro, em ser
cristalino como a água, em conhecer a verdade absoluta, em pulsar vivaz até a
morte, em enxergar o rosto da paz no último suspiro, em viver a intensidade dos
vulcões, em sentir o “te” da palavra teatro como quem diz te amo, em ser o
melhor homem do mundo?
Meu sonho ruiu. Um pedido
para parar. Meu país me pede para parar... Não, seria injusto se não
ressalvasse que quem me pede para parar é quem o governa, por não ter coragem
de suportar a intensidade de quem faz e diz com o maior amor do mundo. Vivi um
sonho, e ele esvaiu-se na sombra dos mornos. Durante mais de trinta anos vivi
esse sonho: fazer, viver, pulsar, sentir, amar, comer teatro. Vivi o sonho de
sobreviver do meu ofício, e o golpe fatal da imbecilidade o destruiu. Na nova
ordem que se apresenta, onde até a educação é irrelevante, o que resta para um
artista vagabundo?
Hoje tudo o que escrevo é
sem altruísmo, é sem querer mudar o mundo, é sem sonhar com igualdade, é sem a
responsabilidade de fazer o bem para ela: a plateia. Hoje tudo o que escrevo é
em benefício próprio; um lamento egoísta, único, dolorido; é para mostrar para
você como uma conjuntura destrói um sonho de arte, de vida, de tesão, de
paixão.
O que eu ganho com isso?
Nada. É apenas a minha perversa escrotidão de mostrar para você as minhas
chagas. Para você, que sempre esteve comigo, ou para você, responsável civil
por minha dor de agora. César Vallejo, no poema Voy a hablar de la esperanza,
se dói acima de qualquer coisa. Eu, medíocre marionete de um estado carcomido,
sinto essa dor como artista. Como artista que esqueceu de viver outras
confidências e apostou tudo num sonho frágil, utópico, anacrônico; o de
explodir a cada estreia, o de viver a fúria da arte, o de comer somente o ovo,
o biscoito, a azeitona, a coxinha, o mocotó, o queijo que o teatro me desse.
Hoje lhe dou confidências
sem conteúdo. Dou-lhe minha dor, minha profunda melancolia, minha falta de
coragem para seguir, minha honesta sensação de fracasso. Fui arremessado em um
abismo e convidado a despenhar até o fundo. Sim, também sei que artistas têm
asas, mas, as minhas, como Ícaro, estão derretidas por querer voar tão perto do
sol. Meu sol é ela: a plateia. O diálogo com ela. A dança sensual da
confidência, do sussurro, do abraço que acontece quando a cortina se abre. Mas
não foi a plateia que derreteu minhas asas. Por sonhar em tê-la tão perto,
sempre, confidente, a invejosa e ciumenta realidade as derreteu. E de tão forte
ser a fúria da realidade, creio que o meu coração derreteu também.
Mas uma coisa eu sei: não
vou voltar a fumar. É uma espécie de presente secreto para a plateia. Finalizei
a montagem do nosso espetáculo sem as delícias da nicotina, como dizendo que
bastava a sua presença, e ela se fez presente. Ensaio sobre a memória foi minha
declaração de amor. Claro que não será a última, pois o corpo que perde suas
asas sempre preserva os gestos do voar. Mas foi a mais intensa, a mais
pulsante, a mais verdadeira, para que fique sempre muito claro que tudo o que
se trilhou não foi em vão. Para que o grito que agora trago, encontre na cena o
eco para retumbar. Mesmo com o sonho destruído, estarei sempre aqui. Te amo,
teatro.