domingo, 30 de agosto de 2015

O mundo é dos perfeitos defeitos


O mundo está ficando chato. Não fume, não beba, não goze antes. Não jogue lixo no chão, não jogue lixo no lixo errado, não reutilize o lixo se não for cadastrado, não produza lixo e o que eu faço com a minha casca de banana? Às vezes me dá aquela vontadezinha de jogá-la no contrapé do transeunte para poder sorrir com a queda, mas não posso admitir esse desejo nem no mais profundo pensamento, sob pena de tornar-me o verme mais desprezível da terra.

O politicamente correto está ficando reto demais. Quadrado demais. Fechado demais. Político demais. Sou obrigado a acreditar que minha casca de banana vai destruir o mundo; e eu acredito, e eu apanho a casca, e eu a jogo no lixo, e eu ajudo o infeliz a levantar depois da queda, e eu xingo com ele o infeliz que jogou a casca, e eu padeço, imóvel, diante de tanta perfeição.

Clandestinidade, rebelde, transgressão, mentiroso, mau humor, subversivo, invejoso, gordo, raiva, são palavras proibidas, renegadas, extirpadas do dicionário cortês; e eu acho todas elas dignas, mas não posso achar.... é feio. Ninguém mais no mundo sente raiva a não ser eu? Sou o único mentiroso da terra? Todas as pessoas do planeta acordam com um sorriso no rosto? Você nunca sente inveja sem ter que dar uma coloração esbranquiçada para ela?

Pobre do belo se não existisse o feio, pobre do reto se não existisse o torto, pobre do simpático se não existisse o chato, pobre do feliz se não existisse o amargo, pobre do certo se não existisse o errado. O convite é para errar mais. Provar da imperfeição de que somos feitos, lidar com nossos defeitos, tolerar os dos outros, e imaginar quão chata se tornará a vida se todos forem perfeitos como você.

Erre mais, sofra mais, coma mais, desobedeça mais. Seja incompetente, preguiçoso, irresponsável, asno, vagabundo, cachaceiro. Arrisque-se para além da plataforma de correção que a contemporaneidade nos impõe e conheça o desespero provocado pelo abismo. Voe para além das placas de “Não perturbe”, “Não mexa”, “Não avance”, “Não fume”, “Pare”; se perceba errando para poder consertar. O erro pode ser o seu maior patrimônio.

Deixe a perfeição para seu pai, seu marido, seu vizinho, seu amigo, eles são mestres nisso. Concentre-se no lodaçal que o erro tem para lhe oferecer e se lambuze nele. A sociedade precisa de você enterrado na lama para poder apontar seus indicadores e atingir a redenção a partir da recriminação dos seus vícios, seus gestos, seus pensamentos, seus desejos, seus anseios, seus temores.

Na sociedade do corpo perfeito, das virtudes virtuais, da opinião polida, da verdade absoluta, deixe-se engordar um pouquinho para que a culpa nossa de toda segunda-feira venha lhe salvar. Resolva mudar, para pior. Se o melhor for o pasteurizado, o padronizado, o modelado, o moderado, piore um pouco a cada dia para melhorar a nossa reta realidade.

E o principal: não façam nem o que eu digo nem o que eu faço, pois sou uma ficção.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Nudes dos atores da Pequena... caem na rede


São 3 (MA/PE/PI; CE/PB/RN; AL/BA/SE), temos dois (CE/PB/RN; AL/BA/SE), li um (CE/PB/RN). É a cartografia do teatro de grupo do Nordeste, realizada pelos Clowns de Shakespeare, com patrocínio público. 

Comumente nos queixamos ou pelo cansaço das horas ou pelo desgaste das engrenagens - que fazem esforço repetitivo sem, contudo, saírem do lugar. Artistas são assim aqui e acolá. Queixumes por ausência de público, recursos financeiros, existência ou ausência de espaço para apresentação, excesso ou falta de trabalho. Há motivos para todos os gostos.

A Cartografia..., reforçada pelas mesmas perguntas, obtém as mesmas respostas - com algumas variações -, do que já era senso comum: todos os grupos teatrais existentes na galáxia têm as mesmas inquietações. Independente do recorte histórico, a corrida do peixe sempre será a mesma. Alteram-se os atores, mas a labuta é a mesma. Ou o teatro carece de novidade ou a insatisfação é tamanha que esse fazer carece de foco. 

Essa repetição de acontecimentos constroem um fazer que é permanente. Quando a história é contada sem amargor ou denúncia, a leitura se torna prazerosa. Quanto não, funciona como um espelho espatifado. 

Onde eu me enquadro? Esquadro. Onde eu me situo? Recuo. A persistência reconduz o e(u)quívoco ou molda a ro/retina? Um conselho? Façam, meninos; façam.

A Cartografia... foi-nos enviada, gratuitamente, pelos seus realizadores. Na Web, o valor, em sebos de Natal, variam entre 90 a 110 reais o exemplar.

domingo, 23 de agosto de 2015

Um lugar para voltar

Detalhe do sítio paleontológico que eu não queria visitar

No decorrer dos últimos vinte anos o teatro me levou para os lugares mais inesperados; destinos impensados, basicamente, porque sou um homem avesso a empreitadas, alheio a aventuras, indolente a descobertas. De Macapá a Ijuí, de Catania a Palmeira dos Índios, de Owatonna a Castanhal, de New York a São Paulo, de Taormina a Rio do Sul, de Mossoró a Chapecó, visitei quase uma centena de cidades que jamais seriam meu destino, não por falta de atrativos – é que não sou afeito a passeios, ou, como diria na intimidade, nem de turismo eu gosto.

Experiências singulares, todas, que de alguma maneira influenciaram minha visão de mundo, meu sentido de pertencimento, minha relação com o desterro, minha vida. Qual fosse a cidade, sempre tive a sensação de que jamais chegaria até ela se não fosse o teatro.

Em que momento da minha vida eu decidiria passar vinte dias na cidade de Sousa, na Paraíba, para conhecer o Luizinho, o Felipe, a Adriana, a Rose, o Kleyner, ver pegadas pré-históricas, discutir o ponto da carne no Restaurante Mussambê, ver uma exposição no Centro Cultural BNB? Nunca. E eu teria perdido uma chance inusitada de continuar entendendo este Brasil, sem intermediários, sem guias, sem o mercado do turismo que tanto distorce a realidade.

O teatro. O teatro promoveu duas décadas de “turismo” constante a um ranheta contumaz, porém, permanentemente disposto a pegar o primeiro volante, avião, ônibus ou barco para levar um pouco de teatro ao espectador mais improvável, e surpreendê-lo com a própria circunstância do inusitado encontro, ver um espetáculo de São Luís do Maranhão.

Se eu tratasse das minhas viagens fora do teatro sobraria muito pouco o que contar, e o destino primordial seria quase sempre o mesmo, Buenos Aires, cidade de onde saí aos dez anos e que nunca termino de visitar. Foi de lá que parti para a primeira viagem sem ter a menor noção de que minha vida seria viajar em busca de espectadores e retornar em busca do meu lugar.

Portanto, agradeço ao teatro. Sou grato à Pequena Companhia de Teatro, ao Centro Cultural Ópera Brasil, e a todos os grupos e companhias de teatro que me levaram a experimentar o sabor de morar no mundo e descobrir as delícias de ter um lugar para onde voltar. É no retorno que se entende o motivo da partida. Partamos, então, rumo ao desconhecido, com a certeza de que a nossa casa sempre nos espera.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Antevendo o retorno

Faltam dois dias para o término da ocupação no CCBNB em Sousa-PB, a partir de projeto aprovado através da Lei de Incentivo à Cultura, com o patrocínio do CCBNB, Ministério da Cultura e Governo Federal. O público garantiu a felicidade de todos. Bom saber que nossa arte chega.

A ansiedade me faz antever o que me aguarda quando do retorno: projetos para finalizar, experiências diferentes em processos de montagem de espetáculos, amores. É assim quando um novo ano se inicia. Planos, desejos, metas, expectativas. Nenhum receio ou temor. Há uma certa compulsão para o trabalho, para a ação, mesmo sabendo e gostando do ócio. A virtualidade deixou de surpreender há tempos. Chegou o momento de ver a cidade com os olhos, com as mãos, com os sentidos.

As dúvidas me provocam a reflexão, o que é naturalmente saudável. Mas, não embota. Uma certa readequação no caminhar, um observar mais apurado fortalecem o querer e atenuam as possíveis agruras. Resta o querer seguir, sempre. Bom sentir-se vivo.

domingo, 9 de agosto de 2015

Ocupa ação


De 01 a 17 de agosto desenvolvemos o projeto Teatralidades: a Pequena Companhia de Teatro ocupa Sousa, no Centro Cultural Banco do Nordeste, na Paraíba. Quando pensamos em ocupação, pensamos em como aproximar determinada comunidade das nossas práticas artísticas, das nossas metodologias de construção, das nossas experiências como coletivo, e dos nossos prazeres e desprazeres.

A ideia não é a simples passagem pela cidade, o intercâmbio de uma apresentação, a citação do nome decorado de véspera. A proposta é oportunizar, a quem interessar possa, o acesso aos mecanismos que movem a construção teatral de grupo, seus anseios, frustrações, acertos e equívocos.

Minha experiência pessoal com esse tipo de iniciativa provém da época em que morava no interior do estado do Maranhão – onde somente recebia – e sei da importância que esse tipo de iniciativa tem para o fortalecimento do movimento cultural de uma cidade, quando a ação é realizada de maneira honesta, contínua e responsável.

O que tenho ouvido por aqui reforça o acerto da nossa proposta e política, pois o que surpreende os artistas moradores de Sousa é o fato de que forasteiros programem uma jornada tão extensa e com tantas atividades (1 lançamento de projeto e livro, 4 oficinas, 2 leituras dramáticas, 8 apresentações e 8 debates), tendo em vista que a prática mais corrente se restringe a poucas apresentações e alguma oficina.

O curioso é que o projeto inicial propunha a ocupação por um mês, com mais atividades, entre elas, a temporada do nosso outro espetáculo em repertório, “Velhos caem do céu como canivetes”, que reforçaria o intercâmbio, pois o cidadão interessado teria acesso a uma mostragem mais abrangente da Pequena Companhia de Teatro e, dessa forma, ficaria assegurada à comunidade de Sousa o contato com o fazer teatral de um grupo de teatro maranhense, fato que raramente seria possível, não fossem os mecanismos facilitados pelo Ministério da Cultura, através da lei de incentivo, e pelo Centro Cultural Banco do Nordeste.

O que fica em suspensão na minha mente, sempre que reflito sobre o nosso fazer, e sobre a responsabilidade que dele emerge, é até quando a transformação promovida por muitas pequenas células como a nossa (leia-se incontáveis grupos de teatro comprometidos) será viável dentro de um mercado cada vez mais selvagem, feroz e furioso? Como controlar essa selvageria que não nos permite mais parar, conhecer, trocar, dialogar, refletir?

Se não tomarmos cuidado, a experiência teatral também pode se tornar a quintessência do mercado – onde tempo é dinheiro, arte é mercadoria, e artista é celebridade – e nós outros padeceremos pela pretensão utópica, elixir supremo de qualquer atuante cultural que minimamente sonhe com a transformação do nosso entorno, o mundo.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

E voltei à Paraíba


Teatro é a arte do encontro. Repito algumas frases periodicamente. Essa é uma delas. Há um reforço na crença de algumas assertivas, e quanto mais as repetimos, mais elas se reverenciam àquilo que se mostra.

O percurso feito de carro até aqui em Sousa me fez recordar as inúmeras vezes que fui à microrregião do Cariri (Ceará). Pessoas que conheci, palcos em que me apresentei. O sotaque não é muito forte por essas bandas se compararmos ao existente em Jampa, mas retornar ao estado da Paraíba é recuperar a lembrança de uma parte da minha vida, em que eu, estudando especialização na UFPB, desisti para fazer teatro em São Paulo, com o finado Antonio Abujamra.

Revisito meu corpo e as situações das personagens que represento, permanentemente, a cada apresentação. Por um lado, há o eterno retorno. Por outro, o devir. Essa temporalidade cria um espaço outro de análise entre o ficar e o partir. Antes de qualquer coisa, o teatro me aproxima dos meus encantamentos e das interrupções e fechamentos de ciclos, os amores e dissabores do sexo e da distância de um outro que me espera. O retorno é certo, sempre, independente do traçado escolhido.

No corpo, os ancestrais. Na bagagem, a roupa encoberta pelos encontros e cansaços. Voltar a fazer teatro é perceber-me ainda vivo, ainda sóbrio, ainda são.