Estamos em Campo Grande.
Fazendo o quê? Que bicho é esse que nos move, nos faz sair de casa, enfrentar o
abismo, atravessar o país de norte a sul, de leste a oeste, claudicar nas vias tortuosas
da geografia humana sem agarrar nada palpável, nada concreto, somente a memória
sensória dos que nos abraçaram, dos que nos assistiram, dos que nos provocaram,
dos que nos ensinaram? Que bicho é esse, alcunhado de teatro, que mesmo não nos
deixando nada nos enriquece de tudo? Que bicho é esse, bicho?
Retumbo na cama, pós-espetáculo,
e continuo remoendo e tentando aprender algo sobre o espetacular; esse momento
que não é nada, mas que se arraigou em nós como se conseguisse ser tudo. Bichos
de teatro são espécimes em extinção. Arvoram um momento único, mesmo na repetição
infinda de sequenciais apresentações, e florescem a cada encontro como novos,
contaminando a existência de outros seres, sem perceber que o contaminante
teatro os carcome, sorrateiramente, a cada noite bem dormida. É nessa hora que
se processa o milagre: dorme o ingênuo ator, o tolo encenador, e o sono é a terra
insensata e infértil onde germina o teatro. É lá que se planta o desespero, o
espanto, o assombro, e amanhecemos com uma vontade imensa de continuar
avançando para lugar nenhum; pois nosso lugar é o todo, a totalidade, o nosso
país.
“Batatinha quando nasce
espalha a rama pelo chão”. Somos batatinhas. Já nos espalhamos por sessenta e
nove cidades, e Dourados será a septuagésima; mas, ainda não entendemos por que
fazemos isso. Servimos a um exército de desvairados que busca o diálogo
presencial em um mundo de “reacionamentos” virtuais. Nova cidade e nova
esperança de encontrar. Encontrar respostas. Encontrar abraços. Encontrar
perguntas. Encontrar soldados. Encontrar pessoas, de carne e osso. O teatro é
de carne e osso. E nossos ossos, atrofiados pela eterna vadiagem territorial
que o teatro nos impõe, vão tentando se rearmar, récita a récita, para receber como
paga final a dança de esqueletos chamada abraço.
Em poética dialética, um ser
humano diz para um ser alado, – Ensina-me a voar; e segue argumentando que é
para poder respirar. É para isso que vagamos Brasil afora, para poder respirar.
É no voo do gigante pássaro de ferro que deixamos a terra que nos marcou e
voamos para o sem-fim, respirar o ar do desconhecido, do novo, do desafio. Para
continuar tentando descoser essa trama absurda de “não ter poder de escolher
nossos governantes”, de “ditadores que pensam igual”, “de parecer uma segregação”;
para gritar contra a desigualdade, o extremismo, a multifobia, o racismo; para
não ficar “mudo e quieto como querem que permaneçamos”; para tentar descompassar
essa folia polifônica de descalabros que o mundo se tornou – se você não
entendeu as aspas é porque não estava em nenhuma das setenta e três tempestades
de seres alados que aconteceram em todo o país desde 2013.
Deixaremos Campo Grande para
trás, mas Campo Grande não nos deixa. Ele estará conosco em cada um dos 40
participantes da oficina, dos 336 espectadores, dos 70 alunos, dos 10
professores, dos queridos amigos do Grupo Casa que reflexionaram
permanentemente conosco durante estes sete dias. O Programa Petrobras Distribuidora de Cultura apresenta Velhos caem do céu como canivetes, e nós tentamos
representar nossos anseios, nossos medos, nossas faltas, nossas lutas. Malucos
que somos, fazemos isso no tête-à-tête, na cara do espectador, para que ele possa
esfregar na cara o tamanho da nossa inutilidade. Você teria coragem?