domingo, 22 de abril de 2018

A poética da vadiagem


Estamos em Campo Grande. Fazendo o quê? Que bicho é esse que nos move, nos faz sair de casa, enfrentar o abismo, atravessar o país de norte a sul, de leste a oeste, claudicar nas vias tortuosas da geografia humana sem agarrar nada palpável, nada concreto, somente a memória sensória dos que nos abraçaram, dos que nos assistiram, dos que nos provocaram, dos que nos ensinaram? Que bicho é esse, alcunhado de teatro, que mesmo não nos deixando nada nos enriquece de tudo? Que bicho é esse, bicho?

Retumbo na cama, pós-espetáculo, e continuo remoendo e tentando aprender algo sobre o espetacular; esse momento que não é nada, mas que se arraigou em nós como se conseguisse ser tudo. Bichos de teatro são espécimes em extinção. Arvoram um momento único, mesmo na repetição infinda de sequenciais apresentações, e florescem a cada encontro como novos, contaminando a existência de outros seres, sem perceber que o contaminante teatro os carcome, sorrateiramente, a cada noite bem dormida. É nessa hora que se processa o milagre: dorme o ingênuo ator, o tolo encenador, e o sono é a terra insensata e infértil onde germina o teatro. É lá que se planta o desespero, o espanto, o assombro, e amanhecemos com uma vontade imensa de continuar avançando para lugar nenhum; pois nosso lugar é o todo, a totalidade, o nosso país.

“Batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão”. Somos batatinhas. Já nos espalhamos por sessenta e nove cidades, e Dourados será a septuagésima; mas, ainda não entendemos por que fazemos isso. Servimos a um exército de desvairados que busca o diálogo presencial em um mundo de “reacionamentos” virtuais. Nova cidade e nova esperança de encontrar. Encontrar respostas. Encontrar abraços. Encontrar perguntas. Encontrar soldados. Encontrar pessoas, de carne e osso. O teatro é de carne e osso. E nossos ossos, atrofiados pela eterna vadiagem territorial que o teatro nos impõe, vão tentando se rearmar, récita a récita, para receber como paga final a dança de esqueletos chamada abraço.

Em poética dialética, um ser humano diz para um ser alado, – Ensina-me a voar; e segue argumentando que é para poder respirar. É para isso que vagamos Brasil afora, para poder respirar. É no voo do gigante pássaro de ferro que deixamos a terra que nos marcou e voamos para o sem-fim, respirar o ar do desconhecido, do novo, do desafio. Para continuar tentando descoser essa trama absurda de “não ter poder de escolher nossos governantes”, de “ditadores que pensam igual”, “de parecer uma segregação”; para gritar contra a desigualdade, o extremismo, a multifobia, o racismo; para não ficar “mudo e quieto como querem que permaneçamos”; para tentar descompassar essa folia polifônica de descalabros que o mundo se tornou – se você não entendeu as aspas é porque não estava em nenhuma das setenta e três tempestades de seres alados que aconteceram em todo o país desde 2013.

Deixaremos Campo Grande para trás, mas Campo Grande não nos deixa. Ele estará conosco em cada um dos 40 participantes da oficina, dos 336 espectadores, dos 70 alunos, dos 10 professores, dos queridos amigos do Grupo Casa que reflexionaram permanentemente conosco durante estes sete dias. O Programa Petrobras Distribuidora de Cultura apresenta Velhos caem do céu como canivetes, e nós tentamos representar nossos anseios, nossos medos, nossas faltas, nossas lutas. Malucos que somos, fazemos isso no tête-à-tête, na cara do espectador, para que ele possa esfregar na cara o tamanho da nossa inutilidade. Você teria coragem?

domingo, 15 de abril de 2018

Manual básico para errar o alvo


Aqui é diferente. Pensar na postagem de hoje sem ser redundante com tudo o que escrevi na postagem A política da preguiça será meu grande desafio, pois tudo o que vivemos em Primavera do Leste, dois anos atrás, dilata-se, em potência e qualidade na atualidade, e nos espanta.

Então, para não chover no molhado, assentarei meu raciocínio em um único ponto de apoio: a oficina de dramaturgia do ator que ministrei; sustentando a argumentação na significativa diferença de comparecimento, rendimento e compreensão, quando observada a adequação da clientela.

Nos plurais projetos, eventos ou programas onde sou requisitado para ministrar oficinas – e a propriedade da minha reflexão tenta se balizar nas experiências vividas em 27 cidades de 14 estados –, sempre nos deparamos, promotores e eu, com as agruras referentes à dificuldade em formar a turma em questão; e o principal desafio é adequar a clientela.

As consequências de não conseguir a clientela específica para uma oficina são sempre as mesmas: evasão, ininteligibilidade do conteúdo, nivelamento para baixo etc. No caso da nossa oficina sobre o Quadro de Antagônicos, o público-alvo são atores, alunos de teatro de curso técnico ou superior, artistas de teatro, encenadores e pesquisadores com interesse no desenvolvimento de dramaturgia a partir do ator. Quando essa observância consegue se efetivar, tudo flui com potência; e é aqui que entra a nossa experiência em Primavera do Leste, onde das vinte e cinco atrizes e atores que iniciaram a oficina, vinte e quatro concluíram. Aqui, a atenção para a formação da turma conseguiu dirimir praticamente todos as agruras do que falei acima: evasão praticamente inexistente, interlocução efetiva e aprofundamento substancial do conteúdo preconizado.  

Então, como conseguir esse resultado, sem ser excludente, garantindo a ocupação da totalidade das vagas oferecidas, e sem comprometer a oficina, tendo em vista que a não adequação da clientela exige uma adaptação inconveniente do conteúdo? Vivo esse conflito quando me deparo com um convite que me transforme em oficineiro, e vou tentando achar algumas pistas para solucionar essa problemática, através das minhas experiências recentes.

A primeira prática tem sido a de não limitar o número de inscritos ao número de vagas oferecidas. Temos estendido as inscrições a um número 30% maior que a oferta, pois o tamanho da diferença numérica entre inscrição e comparecimento no primeiro dia de oficina, em alguns casos, chega a ser um enigma indecifrável – o que faz uma pessoa se inscrever em uma oficina, ocupar a vaga de uma outra, e não comparecer?

Outra prática é a pessoalidade. Independentemente da extensão e alcance da divulgação do projeto que contempla a oficina, procuro encontrar nas cidades que visito, aquelas pessoas que imagino terem interesse na atividade, e tento convencê-las, particularmente, através de mensagem, e-mail, apelo, ultimato, chantagem – prática que você, leitora e leitor deste blog bem conhece –, do quão significativo pode ser para mim a sua presença para que a interlocução proposta pela atividade se estabeleça.

Também, a não limitação de vagas tem gerado o excedente necessário para que a própria oficina se encarregue de adequar a clientela, sem comprometer o preenchimento do número de vagas oferecidas. Ao ter mais inscritos, oportuniza-se que o interessado possa ter contato com o conteúdo e suas práticas, e decidir com maior propriedade se a atividade lhe é oportuna, fazendo com que sua possível desistência no primeiro dia (outra situação frequente) não seja uma evasão e sim um ajuste do público-alvo, pois esse desistente normalmente está contemplado no número excedente de inscrições.

São pequenos deslocamentos de práticas que venho observando na tentativa de tornar a oficina eficiente para o participante, para mim, e para quem contrata, lógico. Claro que Primavera do Leste não serve de parâmetro, pois a realidade que se vive aqui é inusitada – tão surpreendente que vou ofertar novamente o link que você desprezou acima, para que leia a postagem sobre –, mas esta nova experiência de conduzir atividades formativas pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura tem possibilitado novas percepções que fazem com que nos movimentemos no sentido de dar maior ressonância a toda e qualquer atividade da Pequena Companhia de Teatro que seja financiada com recursos públicos, mesmo que através de renúncia fiscal. Compromisso político de que não abrimos mão, mesmo quando o poder público abre mão do teatro de grupo.

domingo, 8 de abril de 2018

O teatro como mediador


O teatro não precisa de mediação. Ele é o mediador do humano com o mundo. Ele faz a mediação entre o espectador e o incompreensível universo que o entorna. É dele a responsabilidade de traduzir o ininteligível, de apresentar o espanto, de aflorar o entendimento. Se passarmos a construir cênicas que exijam a mediação de um programa, de um curador, de um crítico, de um debate, o que sobra para um reles mortal como eu, um humano que busca a mediação do teatro para tentar entender um mundo incompreensível? Como sobreviver sem a mediação do teatro para processar um mundo de radicalismos, fobias, racismos e arbitrariedades? O teatro precisa preservar seu poder de mediação, conduzir o acordo para a necessidade da diversidade.  O teatro precisa manter o atilamento que lhe é peculiar na árdua tarefa de desvendar o humano ser; esse lugar de conflitos, exageros, extremismos, abusos, intolerância e medo. Colocar o teatro em um lugar de expectativa, em um lugar de passividade, em um lugar de espera pela mediação para a sua fruição, é aniquilar sua principal característica, a presencialidade, o tête-à-tête com o espectador; a tradução eficaz do que o sujeito vê e o que o visto esconde. O teatro não muda o mundo; muda a leitura de mundo do espectador, e isso não pode acontecer se a relação entre o teatro e o espectador exige uma mediação.

Digo isto porque estamos em Alta Floresta, no Mato Grosso, lugar de humanos que vão ao teatro na busca de entender a humanidade. Durante os debates ao fim das três apresentações de Velhos caem do céu como canivetes – e nos mais de duzentos debates que fizemos nos últimos anos –, pude perceber isso com larga clareza. Os comentários, as reflexões, os apontamentos, tudo o que ouvimos reforça o poder de mediação que o teatro tem, a valia de ser o instrumento que favorece a compreensão das faltas, das falhas, das navalhas que cortam um país desgovernado. Se atravessarmos, obrigatoriamente, um intruso na compreensão do espectador, ele se sujeitará à opressão do conhecimento como instrumento de poder, subtraindo sua liberdade de escolhas, percepções, leituras, bricolagens.

Percebam que meu argumento vai contra a “obrigatoriedade” do mediador; põe o acento nas obras que exigem uma mediação. Então, por que e para que fazer um teatro que exija, necessariamente, ser mediado? Por que extrair do teatro seu discurso direto, que por si só, já é metafórico, poético, complexo? O que ganhamos complicando radicalmente o diálogo com o espectador? E pergunto isso desde um lugar de criação, em um grupo que tem por peculiaridade provocar a reflexão do público através de montagens complexas. Contudo, me preocuparia saber que nossos espetáculos exigem a explicação, a tradução, a mediação de outro instrumento que não a própria fruição da apresentação. Penso que esses instrumentos devem ser disponibilizados, favorecem a interlocução, mas a obra não pode ser hermética ao ponto desses mecanismos serem indispensáveis para o acesso, como já acontece em diversas experiências nas artes visuais. O que se ganha com isso? Sei o que perdemos. Quando vou ver uma peça que obriga uma mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como espectador. Eu não preciso que ninguém me explique a obra. Eu quero errar à vontade, quero descobrir, quero brincar de entender; mas a obra precisa me dar esses caminhos, a obra precisa operar os códigos de linguagem que me permitam o acesso às camadas mais profundas, a obra precisa me dar as pistas para o meu trôpego caminho, não o mediador. Depois, o resultado disso se opera na minha cabeça das formas mais diversas, não necessariamente como o artista imagina, e muito menos como o mediador sugere. Digo, o quão complexa precisa ser uma peça de teatro para que o espectador não tenha condições de acessá-la sem uma mediação? Por quê? Para quê? Para quem?

Velhos caem do céu como canivetes tangencia esse tema, e circular pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura não deixa de ser uma oportunidade de fazer reverberar essas perguntas, e provocar as respostas. Estamos só no início da nossa jornada, e hoje partiremos para Primavera do Leste/MT, que receberá nossa oficina, outro intercâmbio, mais três apresentações e seus respectivos debates. Momentos do fórum permanente de reflexão que propomos para os nossos consortes de jornada e para você que acompanha a experiência, e as elucubrações provenientes desta. Qual será a próxima?

domingo, 1 de abril de 2018

Uma distribuidora de encontros e reencontros


Amanhã, mais precisamente às 6h da manhã, a Pequena Companhia de Teatro inicia mais um mergulho pela imensidão do território brasileiro, numa caminhada de interlocução permanente – principal motor de sobrevivência criativa para um grupo sediado num estado como o Maranhão, que tem o superpoder de tornar invisível o teatro de grupo. A jornada faz parte do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, que patrocina a circulação de 57 grupos de teatro pelo país, durante os anos de 2018 e 2019.

Mantendo o nosso ideário de ocupação, a circulação que propusemos não se limita à estada na cidade durante os dias de apresentação e o perpasse das atividades complementares nos outros horários disponíveis. Passaremos uma semana em cada uma das cidades; sempre na perspectiva de estreitar o enlace com a comunidade, de entender a urbe e sua lógica teatral, de tentar estabelecer uma lógica de diálogo que justifique a nossa caída em Alta Floresta/MT, Primavera do Leste/MT, Dourados/MS e Campo Grande/MS.

Serão 12 apresentações de Velhos caem do céu como canivetes (3 por cidade), 12 debates após as apresentações, 4 oficinas sobre o Quadro de Antagônicos, 4 ações de formação de plateia em colégios das cidades, e 4 fóruns permanentes de reflexão, com os grupos Teatro Experimental, em Alta Floresta; Teatro Faces, em Primavera do Leste; Grupo Casa, em Campo Grande; e Cia. Theastai, em Dourados.

É na seleção das cidades por parte do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura que concentro a reflexão de hoje: o conceito de aprofundamento, continuidade, estreitamento e entrelaço que adivinho no critério de seleção do edital. Das quatro cidades que visitaremos, duas fizeram parte da nossa circulação pelo mesmo programa, em 2016, com o espetáculo Pai & Filho e a nossa oficina de dramaturgia: Primavera do Leste e Campo Grande. Ou seja, as duas cidades, em um curto espaço de tempo, terão contato com todo o repertório recente, e toda a conceituação metodológica de um grupo de teatro do Maranhão, fato praticamente impossível de acontecer sem um olhar atento à qualidade de atravessamento que essa opção oferece para amenizar a fugacidade inevitável que toda circulação sutilmente esconde, e que tanto nos aflige.

No caso, não. Essas cidades ancorarão na vida da Pequena Companhia de Teatro. Os grupos de teatro que tiveram a oportunidade de passar diversas vezes pela mesma cidade sabem do que estou falando. É diferente. A relação é diferente. O olhar é diferente. O espectador vê o grupo de maneira diferente, tem a possibilidade de observar a trajetória, de estabelecer relações com o repertório, de dialogar com a cena com maior integridade; o teatrista tem contato com os métodos, tecnologias e conceito, pode cotejar obras e procedimentos, discutir caminhos; um sem-fim de sabores e digestões que um encontro não pode proporcionar, e que só se efetiva com a delícia do abraço de um REENCONTRO. Adivinho essa linha curatorial, e quero acreditar que acerto, pois a nossa alegria com toda a circulação é inenarrável, mas a satisfação de retornar se narra facilmente com o conceito, vida e sentimentos de um verbo: voltar.

A partir de amanhã, e pelos próximos 29 dias, alargaremos os números afetivos que arrolam a nossa existência. Ao término dessa jornada, serão 76 apresentações de Velhos caem do céu como canivetes, em 23 cidades de 14 estados; 31 turmas da oficina sobre o Quadro de Antagônicos, em 23 cidades de 11 estados; e, se os produtores locais botarem quente, conheceremos também o espectador de número 5.000 de Velhos caem do céu como canivetes – para uma peça apresentada preferencialmente com plateias reduzidas, é um número a ser comemorado e prepararemos algum tipo de surpresa para a felizarda ou felizardo. Aviso: repeti três vezes o nome do espetáculo porque, se você clicar no vermelhinho de cada um, terá contato com três críticas diferentes escritas sobre ele.

Claro que as outras reflexões que a iminência da viagem provocou, e as outras que a nossa circulação pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura ainda vai provocar, você acompanhará aqui. Todo domingo, após o término de cada uma das ocupações, você terá uma descrição e as respectivas elucubrações provocadas pela experiência – narrativa que você vem acompanhando desde o dia 28 de julho de 2009, primeira postagem deste blog.