sábado, 31 de janeiro de 2015

Antagônicos e o descarte

O Quadro de Antagônicos compreende dezoito palavras a receberem representações físicas, conforme relacionadas aqui. Uma das particularidades que torna o QdA um instrumento eficiente na construção de uma personagem teatral é o descarte, a exclusão, a via negativa. Diferentemente de outras práticas teóricas onde a experimentação do ator visa catalogar o que de melhor é produzido nessa experimentação, no nosso caso é o descarte do que não é interessante que orienta a prática. Parece a mesma coisa, mas é diferente. Quando o ator descarta um antagônico, depois de experimentar fisicamente todo o quadro, na busca do melhor antagônico para a construção da sua personagem, ele aumenta o tempo de pesquisa, pois, ao descartar um, permanece experimentando os outros dezessete. Se o ator fizesse previamente a escolha de apenas um antagônico, baseada no tipo físico que melhor dialoga com a personagem em questão, e começasse a trabalhar somente com esse antagônico, o ator reduziria em 95% as chances de encontrar caminhos mais orgânicos na construção da sua personagem. Para isso, é imperativo não gerar nenhuma preconcepção, prejuízo ou preconceito, sob pena de limitar a potencialidade criativa das experimentações. Dando um exemplo grosseiro: se a personagem a se construir é gorda, a escolha racional do antagônico Peso, além de óbvia, reduziria significativamente as alternativas de nuances que poderiam aparecer na construção da personagem, a partir da experimentação física de antagônicos menos óbvios, como a Tensão, a Lentidão ou, até mesmo, a própria Leveza. O que o Quadro de Antagônicos propõe é uma ruptura com a ditadura da seleção, da escolha do melhor, proporcionado ao ator um trânsito por regiões que ele jamais escolheria. Essa inversão alarga a extensão de alternativas, pluralizando os caminhos para a construção de uma personagem. Na contramão das estruturas técnico-teóricas vigentes, a negação, a recusa, a sobra, o descarte, podem ser um caldo de potência criativa esperando alguém vir sorver.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Penso, logo, resisto


Creio que pela idade que me distancia destas, algumas pessoas me chamam de professor. Não sou professor, não tenho licenciatura. Nem, ao menos, curso superior. Tampouco sou intelectual, como arriscam outros mais despudorados e gentis. Me considero um pensador. Penso. Não pensasse, rastejaria. Pensador como você, que pensa por que estou a elucubrar sobre este assunto. Trato-o em defesa do pensamento. Em defesa da presença do pensamento no teatro. Em defesa da reflexão. As recentes experiências sensórias, fragmentadas, desconstruídas, processuais, performateatrais, pós-qualquer-coisa, estão extinguindo o pensamento. Pensar não é mais uma condição basilar para a fruição de teatro. A relação do espectador com a fortuna polissêmica e polifônica contemporânea pode ser a de “um jegue olhando para um castelo”, como diria o velho Adelmo. Basta contemplar o incompreensível e se assombrar com a magnitude sensória daquilo que nada contém. Nem pensamento nem sentimento. Espectador que sou, estão me subtraindo o direito de pensar, e me coagindo a um sentir não emocional; a um sentir tátil, olfativo, gustativo, esteticovisual, ruidossonoro. A contemporaneidade não tem esse direito. Quando me percebo partícipe do fetiche ególatra de algum neoteatrista – ao espectar outras das tantas experiências modernoarcaicas – a única sensação que emana do meu corpo é o calor provocado pela ira. Me ofende participar desse joguinho pseudovanguardista. Me ofende a presunção de acharem que conseguem camuflar o engodo. Me ofende que subestimem minha inteligência ao recriar o famigerado clichê do choque. Me ofende a subtração do meu pensar. Já a pecha de antiquado-careta-retrógrado-velho que começa a se desenhar no pensamento de alguns amigos, durante a leitura deste artigo, fazendo surgir aquele risinho no canto da boca, não me ofende, me defende. Porque não renego minha história nem a história da humanidade. Foi a soma do meu quase meio século de vida, construído a partir do exercício do pensamento, que me trouxe até aqui. Que me possibilita separar arte de artistice. Por isso reitero: o estupro ao pensamento deve parar. Parará, com as décadas. Lamento que, até lá, nosso cérebro já não esteja apto para o pensamento, e sim, embrutecido pelo instinto sensório peculiar a qualquer animal da fauna terrestre.