quinta-feira, 30 de agosto de 2018

rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (2/4)



a ideia da interpretação estabeleceu-se até meados do século xx em que o teatro era textocêntrico. a partir da transição do teatro dramático para o pós-dramático (lehmann, 1944- ), em que pese samuel beckett, com endgame (1957), que mesmo contendo uma literatura consistente a ponto de existir por si mesma, deixava uma margem significativa para o subtexto, que se mostrou e se consolidou por um longo período da história: o ator teria direito a sua própria escrita no teatro.
o conceito de teatro aqui não é na perspectiva da edificação, mas sim da cena, que deslocou o foco do texto para o ator e seu corpo e, posteriormente, para as demais dramaturgias. assim, o ator passa a ser responsável, através de seu corpo, da escritura dramatúrgica atoral, conseguindo articular um discurso através não só da oralidade, mas também com a gestualidade e seu corpo.
essa relação entre agentes responsáveis pela cena, a partir das alterações de suas responsabilidades, mudou a forma da preparação de seus atores e da composição de suas personagens. nessa construção, as várias acepções de teatro existentes na contemporaneidade dão o tom das formas associativas de coletivos e de como as relações entre seus membros se filiam, quer por afinidades ou ofício. assim, há diferenças significativas quando se propõe a dirigir um espetáculo ou encená-lo, interpretar ou representar, quando se parte de uma dramaturgia autoral ou atoral, quando há seleção de elenco para uma encenação ou convite a atores ou diretor para uma determinada encenação. essas escolhas acionam questões éticas, estéticas e políticas que repercutem não só no resultado, como também de que maneira a memória de seus participantes será exigida para a construção da cena, pois também essas escolhas estão diretamente relacionadas à ideia de ser-no-mundo, definido por heidegger (1889-1976).
como ator-pesquisador participei das três últimas montagens e, ao longo desses nove anos, percebi que minha aproximação com a visão estética, política e ética da companhia fortalecia minha necessidade de aprimoramento para com os procedimentos e com a minha orientação enquanto ator, de que, conceitualmente, eu era importante para que a cena acontecesse, já que teatro se efetiva com um ator e um espectador (grotowski, 1992). entretanto, que ator é esse que se apresenta a partir de um procedimento que não faz parte de sua gênese e como se estabelece esse contributo para a formalização da cena? nesse encontro, o trabalho do ator sobre si mesmo, buscando referências e influências na memória e no seu corpo, no seu dizer, em sua escritura, se estabelece como meio viável e concreto de construção coletiva da obra teatral. meu corpo, que é de ator, que ao mesmo tempo significa e gera significados, compõe sensorialmente, sinestesicamente a partir de um conhecimento que exige gerar significados, uma espécie de narrador benjaminiano contemporâneo imprescindível no romance, na literatura, na imprensa para existir seu discurso, sua experiência e sua memória.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (1/4)


o teatro sempre teve na memória uma de suas maiores aliadas, tanto no aspecto mais perceptível, que é, a cada récita, recuperar as marcas e o texto que foram exercitados na temporada de ensaios, como também sendo mecanismo de construção das personagens que dissimularão a realidade na ficção.
na construção desse processo, o efêmero – força motriz do teatro – insiste em fazer com que cada apresentação seja única, pois com muitas variáveis – espaço de apresentação, temperatura, estado de saúde dos atores, humores, ser uma arte presencial –, não se é possível repetir as mesmas sensações em todas as apresentações, tanto na perspectiva de quem atua quanto na de quem especta.
como os métodos e procedimentos adotados pelos grupos de teatro em suas montagens são variados, variada também é como a memória é acionada ou exigida pelos envolvidos.
na pequena companhia de teatro, utiliza-se de um único procedimento metodológico para treinamento de seus atores e composição de personagens para seus espetáculos. busca, no decorrer de sua existência, compor uma estética que privilegie a dramaturgia do ator. com isso, distancia-se de um teatro de estética naturalista e se aproxima de um teatro que busca no “extracotidiano” (burnier, 2001; barba, 1995; ferracini, 2001) uma alternativa de potencializar o trabalho do ator. nesse aspecto, a memória já se efetiva numa outra abordagem. enquanto que no teatro que se diz naturalista a “memória emotiva” (stanislávski, 2001) auxilia o ator na composição de seus estados e intenções de fala, pelo viés da interpretação, na pequena companhia a “memória individual” (halbwachs, 1999) e a “identidade” (bauman, 2005; silva, 2000) de seus membros é quem dará a substância necessária ao ator para “representar” (burnier, 2001; barba, 1995; ferracini, 2001) e ao encenador para, efetivamente, em sua formas singulares de ver, perceber e sentir o mundo, viabilizar a cena.
essas sensações são possíveis a partir da percepção do “ser-no-mundo” (saramago, 2012), que é, ao mesmo tempo, gerador de significados e significante, pois que a escrita do ator se estabelece mediante as ações do corpo na construção de representações, a partir do que experienciou, se filiou, se pertenceu e deixou-se pertencer. como cada ator tem suas singularidades e sua história individual de vida, e como esse teatro não é um teatro interpretativo, mas sim representativo, cada ator compõe a partir de seus referenciais existentes no corpo e na sua história. nesse tipo de teatro, desconsidera-se o physique du rôle, pois se representa algo à sua maneira, e de forma extracotidiana.
a memória estabelece-se também, na pequena companhia de teatro, através de registros áudio-visuais. um amontoado de fotos, vídeos, escritos, croquis, material gráfico, depoimentos, anotações, recortes de jornal, projetos elaborados, figurinos, elementos de cena, que tendem ao esquecimento quando não são revisitados, mas contam a história coletiva de um grupo de quatro amigos e que está registrado; memórias que contam uma história não oficial do teatro de grupo de pesquisa em drama no maranhão.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

índios




acho que justificativas entediam ou desacreditam um pouco o que vem posteriormente e fugir à regra é por demais exigente. deixei de publicar aqui por crer desnecessário forçar uma escrita desmedida. àquela época, a ausência era restrita ao silêncio, ao desdesejo, à aridez. alguma coisa mudou aqui dentro e fora de mim. produzir tem disso: reforça a circulação do pensamento na perspectiva da ação e sim, estamos em montagem do novo espetáculo e o processo criativo de um ator também passa pelo exercício da escrita e da interlocução – independentemente da forma ou abordagem. 


outra consideração a ser estabelecida é a das palavras nesta postagem (e nas que virão, às quartas-feiras) serem minúsculas. recupero minha prática em escrever sem o viés da norma culta (sic) da língua para reforçar o meu dizer, em que pese, na oralidade, um nivelamento da possível importância atribuída a alguns vocábulos. e viva valter hugo mãe! 

já se foram alguns dias de treinamento a partir o “quadro de antagônicos”, e agora não mais com jorge choairy na sala de ensaio, mas com jyesse ferreira, xico cruz e katia lopes, sendo minha quarta montagem na pequena companhia, com marcelo na encenação e mesmo procedimento metodológico. mesmo procedimento? tudo muda: pessoas, visões, espaços, territórios, confluências, percepções, crenças, corpos. uma outra experiência se presentifica e a maturidade e o amadurecimento exigem um revisitar, uma reflexão outra da experiência que se reforça ou se refuta na atualidade. tudo está passível dessa análise e soma-se a isso a exigência da performance em cena, da degradação do corpo no tempo, das neuroses, dos humores. 

a vontade e o desejo ainda caminham de mãos dadas, unidas, sem moléstia alguma. um possível cansaço recupera a sensação de humano se contrapondo à virtualidade tacanha, modorrenta e aterradora. um fluxo de sensações e sentires que viabiliza a criação, as relações, a arte, a obra, surge e é compartilhada, analisada, requerida. produção e trabalho são importantes para a conjuntura política atual, onde a ausência dos entes públicos, independentemente da esfera, o famigerado golpe e o recrudescimento da vilania, forçam uma presença laboral crítica mais contundente e eficaz. não dá para ser diferente ou indiferente. nossa arte exige um respeito que não sentimos, e por vezes nos diminuímos, nos cremos menores, desprestigiados, incapazes, desnecessários. a vida funciona sem arte, sem teatro, mas a que preço? a sábia mãe diz muito da tempestade que se avizinha para refletir o que nos reserva após sua passagem. por hoje, o trabalho e o prazer são companheiros de resistência. amanhã, uma arma cortante: nossa voz clama por sair.

domingo, 5 de agosto de 2018

O poder do atravessamento


Passei o mês de julho em Mossoró, cumprindo uma agenda cavalar, que na maioria das vezes ocupava até quatro períodos (manhã, tarde, noite e início da madrugada), motivo pelo qual a desatenta leitora e o leitor distraído ficaram sem minhas elucubrações dominicais – para seu alívio.

A pauta principal dizia da remontagem de “Deus Danado”, tema que ocupou a minha última postagem, três semanas atrás. As outras atividades foram se formando motivadas por um desejo improvável – visto que nem de gente eu gosto –, e que perpassa toda a minha recente trajetória: a interlocução, o atravessamento, o diálogo, a comunhão. Onde existir um convite para uma conversa, lá estarei tentando aproximar realidades, convergir díspares, juntar amigos, aglomerar experiências.


Em Mossoró, a Cia. A Máscara de Teatro/RN, a Cia. Pão Doce/RN, o Balaio Coletivo/MA, a Pequena Companhia de Teatro/MA, o Pavilhão da Magnólia/CE, a Cia. Prisma de Arte/CE, a Cia. Bagana de Teatro/RN, viveram um intercâmbio espontâneo, intenso, fértil e generoso construído apenas pela vontade de querer conversar. Formalmente, a iniciativa do Balaio em se aventurar em uma vivencia de sete dias com a Pão Doce – e por tabela com a Máscara e a Pequena –, foi basilar para o desdobramento espontâneo de todos os outros encontros.

Há anos que defendo o poder do atravessamento, e sempre ressalvo o quanto essa interlocução foi fundamental para que a Pequena Companhia de Teatro chegasse onde chegou: a lugar nenhum. Minha defesa insiste em frisar o quanto o intercâmbio encurta os caminhos, atalha soluções para os problemas, gera potência criativa, favorece a sustentabilidade. Um exemplo que dou sempre: para que passar dias tentando resolver um problema de gestão do nosso grupo, inventando soluções, quebrando a cabeça, se bastariam duas ou três ligações para coletivos amigos, e perguntar como resolveram essas questões. Todos já passaram pelas mesmas coisas, e nossos pares têm as mais diversas soluções para os mais improváveis problemas. Esse é o poder do atravessamento.


Minha obsessão pelo desvelamento provocado pela conversa fez com que eu desenvolvesse uma ideia que a Pequena Companhia de Teatro passará a chamar de Cozinha Teatral. Não vou dar detalhes disso agora, mas o que esse projeto busca é gerar maior intimidade na relação dialógica. Em Mossoró conseguimos isso, em alguns momentos. Quanto de verdade contamos nos nossos encontros com grupos amigos? Quanto escondemos das nossas falências? O que gostaria de perguntar para os meus pares e a vergonha não deixa? Como falar das amarguras mais íntimas?


Tenho sido um provocador de constrangimentos, mas percebo que tem funcionado. Em Mossoró experimentamos isso. Revelar a falha, contar as agruras, saborear a inveja, desmascarar a empáfia, confidenciar as dores – em um dos encontros vivi um dos momentos mais tocantes da minha vida no relato de uma querida amiga, ao tratar das angústias provocadas pelo desejo de viver de teatro. Temas espinhosos mesmo! Dinheiro, relacionamento, abandono, traição; temas tão cabeludos que chegam a ruborizar o sujeito mais frio, insensível e tosco do planeta: eu.

Tudo em prol do teatro de grupo. Do diálogo entre grupos de teatro. Da consolidação de um atravessamento eficaz entre coletivos. Tudo em prol do fortalecimento de uma teia de afetos que defendo em uma das postagens mais populares e mais lidas deste blog: Entretecendo a teia da revolução – oito anos lendo o blog e você ainda não sabe que se o título está em vermelho é porque o link da postagem está escondido atrás das palavrinhas esperando você clicar? 


Em tempos de crise como o que estamos vivendo, a experiência dos nossos pares é um dos principais patrimônios de que dispomos para achar soluções, comparar realidades, executar planos, desenvolver visão estratégica; mas essa experiência precisa ser apresentada sem simulacros, honestamente, generosamente, para que a vivência seja instrumento de potência e não de falsa glória. A interlocução não pode se tornar a locução das nossas vaidades. Sejamos verdadeiros, para que a verdade construa pontes de comunicação, laços de realidades, convergência de eficácia. Quanto mais eficazes forem os grupos de teatro do país maior será a resistência da teia formada por eles.


Minha reflexão hoje é universal, motivo pelo qual evito personalizar, particularizar. Os nomes, os afetos, os cuidados não caberiam em uma única postagem, por isso minha opção em falar de grupos, de coletivos, daquilo que sustenta o fazer teatral do país. É o conhecimento e reconhecimento de nós mesmos, o entendimento das nossas diferenças e referências, o intercâmbio de expertises, e a generosidade entre partes do mesmo todo que acentuam a força do teatro de grupo como sinônimo de resistência socio-político-cultural. Dialoguemos.