domingo, 28 de agosto de 2016

As tolas palavras de um charlatão


A falta de reflexão crítica é o principal fator que amarra o desenvolvimento da cena teatral maranhense. Falo da nossa aldeia por não possuir nenhum fundamento para alargar a análise além das fronteiras do nosso umbigo. Nossa produção só adquirirá uma potência que extrapole as fronteiras do nosso estado quando tivermos condições de enxergar a nossa mediocridade e, a partir desse exercício, provocar nossa criatividade na busca da excelência que o teatro exige, pois, arte não admite meio-termo.

Nossa dificuldade em lidar com a crítica (tomo o termo em sentido único, pois não acredito em crítica destrutiva, por menos favorável que ela seja) vem entorpecendo a análise de nossa produção. E assim, fomos nos tornando uma classe corporativa, onde elogios superficiais abundam e tudo o que vemos é genial – mesmo que uma simples virada de costas desconstrua a opinião inicial, e retornemos para o nosso ego vociferando a real opinião.

Se você precisar de um companheiro para admitir, eu ajudo. Desde minha adolescência venho lutando com a dificuldade de assimilar as críticas no que se refere ao meu fazer teatral, e, frequentemente, me observo estruturando um discurso de compreensão para abafar minha dolorosa labuta com esse exercício. Por quê? Porque alguns artistas (estou lhe dando a chance de se isentar) lidam com o fantasma da mediocridade, a pretensão da genialidade, com a vontade de estar fazendo algo relevante, com a utopia de mudar o mundo. Só consegui começar a entender a função das críticas quando comecei a admitir os meus fracassos. Ainda estou tentando.

Nós temos a liberdade de fazer uma reflexão crítica sobre o trabalho de algum colega e expô-la sem constrangimento? Estamos preparados para ouvir uma reflexão crítica do nosso colega e recebê-la sem constrangimento? Arrisco a dizer que não, e, por isso, ouvimos, repetimos e institucionalizamos os acenos de parabéns, bravos e uhus. Maravilhoso, genial e fantástico também são adjetivações comuns. Menos. Enxerguemos o lugar do teatro maranhense na cena teatral brasileira dos últimos trinta anos e perceberemos que nosso autoelogio não contribuiu em nada para o amadurecimento do nosso fazer.

Hoje escrevo no contexto do FestLuso – Festival de Teatro Lusófono, em Teresina, dentro do NORTEA – Núcleo de Pesquisadores Teatrais do Nordeste, fórum propício para oxigenar o pensamento, para exercitar a humildade, para identificar nossas falências, para tentar entender nosso lugar na cena, para perceber a nocividade da vaidade artística – tema da minha próxima postagem. Aqui, o exercício da reflexão permanente se estabeleceu, propiciando-me o tempo e a distância necessária para enxergar o óbvio.

Não saberia diagnosticar por que nos tornamos essa fonte inesgotável de hipocrisias. Só tenho suspeitas. A primeira passa pelo afeto. Ao não estar preparado para sofrer críticas (a utilização do verbo sofrer não é gratuita) nos precavemos elogiando os nossos pares, por receio de que o efeito desta seja o mesmo que sentimos quando criticados, e com isso, deixamos de estabelecer parâmetros reflexivos para o artista que espera (ou deveria esperar) a verdade do nosso olhar perante a obra apresentada.

Precisamos admitir isto, sobre pena de cairmos no ostracismo artístico, retroalimentando nosso egocentrismo. Quem de nós já teve a coragem de dar, sem receio, uma opinião verdadeira perante o olhar afetuoso, fraterno e esperançoso do artista amigo que a espera, como se esta fosse a sentença definitiva para a obra em questão? Reflexão crítica, opinião, ponto de vista, impressão: é apenas isso. O meu olhar não refletirá a verdade, mas a negação de um olhar verdadeiro refletirá na trajetória do espetáculo, pois, o silêncio esconderá o contraponto necessário para os vivas, aplausos e loas.

Precisamos ser mais amigos. Mais sinceros. Mais delicados. Mais dedicados. Precisamos entender que a arte não resiste sem verdade, e que a verdade é fundamental para a análise de qualquer obra, pois os diversos e múltiplos olhares ajudam a reorganizá-la. Não é possível que sejamos assim com nossos amigos. Digamos a verdade, ou admitamos que não estamos em condições de dizê-la pelo envolvimento afetivo com o interlocutor. Desconfiemos se só ouvimos elogios. Cobremos a honestidade dos próximos, dos pares.

Mesclo a condição de artista e espectador propositadamente, pois em um estado onde não há reflexão crítica formal, onde os meios de comunicação só se dedicam a reproduzir releases, nós cumprimos essa dupla função, mesmo que a contragosto. A recente passagem de Beth Néspoli e Kil Abreu pela Semana do Teatro no Maranhão foi fundamental para sinalizar os caminhos de uma reflexão crítica delicada, produtiva, atenta, dedicada; contudo, conseguimos perceber a importância e reavaliamos nosso posicionamento quanto à forma de receber diferentes opiniões? Espero que sim. Espero que eu esteja totalmente errado, que seja o único que tenha dificuldade em lidar com críticas, que seja o único que omita sua real opinião, que a realidade da cena maranhense seja apenas um problema sócio-político-cultural, e não tenha nada a ver com falta de autocrítica. Tomara. Dessa maneira, bastaria me banir e todos viveriam felizes para sempre.  

domingo, 21 de agosto de 2016

Entretecendo a teia da revolução


Anteontem encerramos nossa participação no SESC Amazônia das Artes, e mês passado concluímos nossa circulação pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. A experiência de circular e suas consequências já foram postas aqui diversas vezes, sobre plurais pontos de observação. Todavia, em todos, a ressalva quanto a importância dessa deslocação permanente para que um grupo de teatro possa manter uma pulsação contundente, artística e financeira.

No decorrer dos últimos anos, precisamente treze, esse exercício foi possível graças a uma atenção específica por parte do governo federal, através dos mais diversos programas de fomento ao teatro, que culminou em um fortalecimento de coletivos teatrais palpável, reconhecível, admirável. Esse esforço conjunto, operado por estes dois atores – grupos e governo – possibilitou que plateias de todo o Brasil tivessem acesso ao teatro de todo o Brasil, experiência capital para o desenvolvimento de cidadania (o espectador conhece o país através dos dizeres apresentados por cada estado), para o fortalecimento do sentido de pertencimento (o país é nosso, e cada parte dele diz da nossa identidade) e para a redução dos preconceitos de classe, gênero, região, cor, religião etc.

Agora, o grave momento político vivido e os claros e daninhos caminhos sinalizados pelo Ministério da Cultura, me provocam a reflexão quanto a pouca atenção que foi dada por nós, grupos de teatro de todo o Brasil, para a consolidação de uma rede sólida de teatro que caminhasse paralelamente à esfera pública, e construísse condições de autonomia gerencial, formativa,  financeira – não cito a autonomia artístico-criativa porque creio que essa permaneceu imutável independentemente de qualquer tipo de pressão recebida. Inúmeras experiências aconteceram, com os mais diversos nomes, e semana passada, enquanto circulávamos, acontecia o III Congresso do Teatro Brasileiro, em Goiânia. Foi pouco. Para o poder que nos foi dado na última década, nossa articulação como atores políticos foi parca, e nossa ação de construção estrutural de inter-relações artísticas e sócio-político-econômicas foi tímida, por vezes, preguiçosa.

Nos foi dada a oportunidade de tecer uma teia indestrutível, onde o poder do intercâmbio, do conhecimento mútuo, da colaboração recíproca entre vinte e seis estados de um gigantesco país seria o principal instrumento de combate às arbitrariedades e desmandos de qualquer projeto político que atentasse contra o cidadão. Sei que muito foi feito (movimentos, ocupações, congressos, encontros, cartas, manifestações etc.), o que tento dizer é que, ainda assim, foi muito pouco, se comparado às condições dadas. Não soubemos entender o momento e acreditamos que poderíamos viver, permanentemente, em um estado minimamente justo. Doce ilusão.

Nos cabe alargar o tempo despendido, aprender com a experiência, e fortalecer essa teia com caminhos além das estratégias que usamos até aqui. Talvez o sinal esteja no passado, quando o único mecanismo que o teatro amador utilizava para não ser massacrado era nada mais do que um contar com o outro. No fim dos anos oitenta, o grupo Ger“ar-te”, de Balsas, sabia que o grupo “Oásis”, de Imperatriz, estava lá, e podia contar com ele.  Recebíamos inúmeros artistas em nossas casas para falar da vida, que é o que o teatro faz. Nós somos muitos e, hoje, fortes. Poderíamos ser mais, e quanto maior essa força, maior o poder para movimentar as estruturas que engessam o poder público e, por consequência, o país.

O que tento dizer é que o poder do enlaçamento, do emaranhado, da tessitura, do embrenhar-se, do enredamento, do ajuntamento foi subutilizado. A força de poder contar com centenas de grupos de teatro Brasil adentro para assentar a nossa independência foi subestimada. Nos apoiamos nos pequenos sinais dados para a construção de uma política pública cultural eficiente (editais, prêmios, fomentos, leis, bolsas etc.) e pouco usamos nosso principal apoio, o mosaico de grupos de teatro incrustados por todo o país. O que digo agora é: podem contar com a Pequena Companhia de Teatro para o diálogo, para a reflexão, para as discussões, para as manifestações, mas, também, para o colchonete no chão, para a divisão do pão, para a toalha limpa; podem contar conosco para conseguir chegar a um dos estados mais pobres do pais com seus discursos artísticos, estéticos, políticos, que são o esteio da revolução que o teatro pode promover através da capilarização dos seus dizeres.

Sim, é um mea-culpa o que faço aqui. Como artista, fiz muito pouco. Como grupo de teatro, fizemos muito pouco. Como já disse, tenho conhecimento de tudo o que foi conseguido, e reconheço nosso esforço para conquistar o que temos. Ccontudo, se você, grupo de teatro combatente, ativo, militante, não entende que tento lançar um olhar além das nossas conquistas, ou sua vaidade não permite reconhecer o que não foi feito, não vejo solução para dissipar a tempestade que se avizinha.

domingo, 7 de agosto de 2016

Como crescer ficando pequeno?


Com a recente aprovação da nossa ocupação do Centro Cultural BNB de Fortaleza, em novembro, através do Edital de Seleção de Projetos Culturais, chegamos a pouco mais da metade do ano de comemoração da nossa década de teatro passando por três regiões do país, Norte, pelo SESC Amazônia das Artes (terça-feira partiremos para a 2ª etapa), Centro-Oeste, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, e agora, uma mordiscada no nosso Nordeste. Ainda temos três meses livres para convites do Sudeste e Sul para fecharmos o aniversário com chave de roda.

Isso tudo que o parágrafo menciona, e que nos alegra profundamente, esconde um fato gravíssimo que vimos percebendo no decorrer dos últimos anos, e que hoje, como de costume, exponho aqui no blog, este muro de indagações: como crescer mantendo-se pequeno?

A pergunta pode parecer anedótica, mas explicarei seu propósito antes mesmo de você tentar responder ou desvendar. Durante os últimos anos percebemos que nossas conquistas e o robustecimento do nosso currículo tem sido prejudicial na busca de alguns mecanismos de viabilização teatral – leia-se editais e projetos de ocupação, circulação, montagem, manutenção etc. Acredite, o fato de termos nos tornado uma companhia de teatro estruturada, contínua, profissional e produtiva, virou, em certa medida, um problema.

A assertiva vem sendo percebida por outros grupos de teatro parceiros, de trajetórias incomparavelmente mais contundentes que a nossa, o que reforça a necessidade do debate que proponho a partir desta explanação: pode algo ou alguém ser punido por sua excelência? Claro que quando uso o termo excelência estou me referindo a eles, pois nós ainda galgamos, aos sobressaltos, um trilhar na busca de atingir o patamar das nossas referências, que, na maioria, são coletivos teatrais de queridos amigos.

Essa realidade pressupõe que grupos de teatro consolidados são tão estruturados que prescindem dos poucos instrumentos de apoio à produção teatral que existem no país, e que vivem em condições estáveis e confortáveis. O equívoco nefasto esconde a principal realidade de 99% dos grupos de teatro brasileiros, o de não fazerem a menor ideia do que acontecerá com eles no ano seguinte, independentemente do estágio de organização que o coletivo tenha atingido.

Se a esse problema estrutural soma-se a desconsideração por parte dos mecanismos de viabilização cultural, por pressupor a não necessidades desses, pode-se deduzir que quanto maior a trajetória do grupo maior a possibilidade de que ele acabe, o que forja um contrassenso tipicamente brasileiro. Então deveríamos tentar não crescer? Ficarmos um pouquinho piores? Não deixar transparecer nossas conquistas? A querida leitora, o caro leitor, entenderão que o dilema que aqui exponho, apesar de seríssimo, é tão irônico que não me privaria jamais de utilizá-lo para uma chacota: devemos camuflar nossas vitórias e alardear nossas derrotas?

Entendo que o favorecimento ao novo, à iniciação, ao começo é fundamental para a oxigenação da arte, e que todo aquele que começa precisa de apoio para poder se desenvolver, porém, também é verdade que nós começamos na unha, sem apoio nenhum, totalmente clandestinos, e tivemos que provar, a muito chão, porrada e decepção, que estávamos aptos a receber algum tipo de aceno, e nem por isso desistimos.

Mais uma vez vou tropeçar na ausência de políticas públicas, único caminho para aprofundar a compreensão da necessidade de estudos, mapeamentos, diagnósticos e apreciações que a sofisticada linguagem teatral requer; para que problemas capitais como o que aqui exponho não se alastrem, tornando-nos professadores de falácias com a tese de que quanto melhor for o grupo de teatro para a comunidade pior será para ele. Somente políticas públicas bem estruturadas conseguem enxergar além do óbvio, e problematizar questões que fogem do senso comum, do debate virtual, do bate-boca em rede social. Na atual conjuntura, esse sonho está ficando cada vez mais distante, e continuaremos, indefinidamente, tentando fazer no peito o que os governos não fazem por puro desrespeito.

Claro que você, que está começando a fazer teatro, deve pensar que reclamo de barriga cheia. Na verdade, e mais uma vez, estou pensando no seu futuro, se você tiver estômago, persistência, criatividade, coragem, ideal, ânimo e paciência para chegar até lá.