sábado, 23 de março de 2013

Os dois

Eram dois irmãos que compartilharam a mesma mulher.

Eram pai e filho que viviam em suas respectivas gerações.

Serão dois seres, de diferentes mundos e visões.

Cláudio e Jorge.

Como se estabelece a escolha dos atores e suas personagens, e como essa fórmula de dois pode vir a estar desgastada?

A roda.

Há um mito que diz que atores bons são atores com múltiplas facetas. Não sei sapateado, cantar. Sou humano e falho e acredito no eterno retorno. E outro: Se há algo na personagem que se identifica com o ator, é mais fácil, mais prazeroso em compô-la. 

Personagem não é roupa; nunca lhe cai bem. Se vivemos em uma comunidade, e somos humanos, certamente haverá algo que nos identifica além das pernas e da língua. Não dá para fugir disso.

Mais uma vez um espetáculo com dois atores? A tensão, geradora de conflitos, está no nosso corpo, literalmente. Ela nos faz ficar de pé. Esse ato em si, é carregado de conflitos, de tensões. Enganam-se os teóricos quanto a diferenciação de movimento e ação quando dizem que o primeiro não tem intenção. Há, só não consciente. Assim, as limitações se restringem ao universo do expectador, e não da encenação. 

Atores nunca saem ilesos da vida. Teatro é vida. Fazer teatro é como respirar, não só no aspecto da necessidade como também da continuidade do fazer. E é sempre um exercício compor personagens, quaisquer se sejam elas, contanto que se tenha tempo e espaço para tal, já que algumas encenações assassinam os atores com a ditadura do texto ou da direção. Ator precisa de oxigênio. Ator precisa de amor, carinho e afeto do diretor. Esse jogo é de interesses. O resultado é compartilhado por todos: um espetáculo!

sexta-feira, 15 de março de 2013

O ator santo

Foto: Wolfgang Panek
Tenho um xamã que sentencia: - Teatro é sua religião; sê santo. Não posso fugir. Por décadas busco o contato íntimo com o divino que sempre se mostrou longe demais. O teatro faz-me religioso. Penso nele todos os dias, converso com os meus pares sobre ele, busco a perfeição em seus rituais. Não sou, mas quero buscar a santidade no teatro. Receitas existem, certamente. Porém, o caminhar é pessoal. Professo a minha fé permanentemente nele sem, contudo, dar-lhe os devidos créditos. Ao teatro todo o reino e toda a glória. Não serei xiita com os incrédulos ou com os vendilhões do tempo - não muito, mas não exijam meu silêncio. As escrituras são diversas proporcionalmente à quantidade de fés. Meu templo continua a ser meu corpo íntegro e minha crença em um teatro vivo, verdadeiro, autêntico, cruel e reflexivo permanece inalterada. Amém!

Foto: Wolfgang Panek

domingo, 10 de março de 2013

Cultura ou tortura?


 
As personagens de Velhos caem do céu como canivetes estão em permanente processo dialético, mesmo sem ter a menor consciência disso. Em certo momento eles dizem:

SER ALADO – Por que não tens [os quatro] dentes [superiores da frente]?
SER HUMANO – Meu pai os arrancou na infância.
SER ALADO – Em sinal de sacrifico?
SER HUMANO – Não. Para trocá-los por dentes de ouro.
SER ALADO – Por quê?
SER HUMANO – Uma tradição da época.
SER ALADO – Tradição estranha.
SER HUMANO – Possuir dentes de ouro era sinônimo de ascensão social.
SER ALADO – E o ouro?
SER HUMANO – Nunca chegou, nem a fartura.

Qual é o limite entre tradição e mutilação? Até onde a cultura se justifica por si? Touradas são cruéis, mas não consigo imaginar a humanidade sem sua beleza. Por outro lado, agulhas na pele me causam extremo desconforto. Apesar do fragmento transcrito não ser o tema da encenação, herói e anti-herói azedam por zonas que vão além dos motes motores da pré-dramaturgia. Esse poderá ser um deles, mesmo que não seja. Fica a pergunta: o que faria você arrancar seus dentes?

sexta-feira, 8 de março de 2013

A crítica

A tensão é mola para qualquer repertório de palavras e atitudes. Crítica que é boa mesmo, a gente coloca no currículo para conseguir financiamento. Quem lê jornal e crítica para assistir a um espetáculo teatral está em grandes centros, com teatros sempre lotados e caros, sem informação dos grupos responsáveis e com disposição para folhear jornal e programações/agendas. 

Não somos bons de escuta. Gostamos mais de falar do que de ouvir e compreender o outro. Reflexo do homem da atualidade que é carente e vive na frente de computadores, em redes sociais (sic). Somos lacônicos e nosso ego é grandiloquente. Aos amigos, os benefícios; aos inimigos, os malefícios; ao resto, a indiferença. Daí se reside o "falem mal, mas falem de mim".

Reconhecimento é bom. Torna-nos mais dignos do nosso trabalho. A interlocução se faz necessária. Dar voz ao espectador não é tarefa tão difícil. O insuportável é dar-nos o direito de ouvir o que eles têm a dizer.

Tudo é circunstancial.

domingo, 3 de março de 2013

Retalhos de pensamento pra não gastar juízo

 

Dois domingos sem postar. Você não percebeu, mas foram. Não é bem um bloqueio criativo, é que estou espremendo meu cérebro na dramaturgia de Velhos e não posso cometer excessos. Vivo de lapsos criativos, se desperdiçados, impera o médio.  (Não vou colocar o link em Velhos. É só dar-se o trabalho de descer duas postagens e saber do que se trata). Fevereiro se foi e, com ele, os pedreiros da reforma da nova sede. Benzadeus! Agora é o tempo da mudança: caixas, faxinas, reboque... Nunca estive tão perto da felicidade. Uma família maravilhosa, uma companhia composta de amigos, projetos a perder de vista, saúde mental (ou a pretensão de achar que a tenho), um espaço físico fantástico para o exercício artístico, amigos que me aturam, novo espetáculo em processo e a casa dos sonhos não sonhados – como bem marcou meu amigo Gilberto na sua última imersão dialético-bodejal em São Luís. Uma das discussões permeou esse assunto e consequentemente, os motivos da realidade que vivo. Atribuí-los à sorte – como já falei aqui – resultaram simplistas e descabidos para dois pretensos seres pensantes em exercício. Surpreendeu-me uma lógica que não saberia reproduzir aqui, mas que serviu como um contra-argumento efetivo. O problema é lidar com isso. Estou descobrindo que Marcelo Flecha, quase feliz, é um homem insuportável. Sem a ranhetice, o peculiar humor, o desalento, sou mais intolerável ainda. E fazer os mais próximos padecer esse inferno tem me deixado constrangido. Acho que o remédio está em manifestar meu estado em doses homeopáticas para não espantar os que ainda me suportam. Portanto, "Cuidado: homem feliz".

sexta-feira, 1 de março de 2013

Arcada dentária


Fios de cabelo; quantos temos? Depois de mortos, nem os vermes os querem. Impressões digitais identificam os vivos. A pele é demais perecível. Arcada dentária, os ossos, as alterações sofridas, servem também para identificação. Algumas coisas se perdem e outras são preservadas.

O ator é humano. Alguns processos buscam, a partir dessa identificação a composição de personagens. Quer na mitologia pessoal quer na repetição de movimentos corporais cotidianos característicos de cada um, esses elementos tendem a fortalecer a busca da escritura de uma dramaturgia para o ator. Provém dele - ao menos aparentemente. 

O interesse, parece-me, é buscar alguma coisa orgânica a ponto de se sentir ligado à  criação. Imagino que as repetições de composições, ou elementos surgidos, possam respingar em toda a obra do ator. Como dissociar o que já fora do que está por vir são outros vinténs. A sensação de desamparo, quando me deparo com algum material consistente, a ponto de lidar com ele em processos criativos, angustia. Julgo-me e serei julgado por isso. Esse ligâmen existe. A consciência disso faz com que o ser, produtor de significados, oxigene ainda mais seu corpo já formalizado para uma outra formalização, e mais outra, mais outra, outra. Por isso essa permanente reconceituação de corpo. 

A cada espelho quebrado, um dente é perdido ou achado.