Em 2018 a Pequena Companhia
de Teatro passará por transformações tão agudas que temo não suportar a
agulhada. Uma delas diz respeito ao elenco do novo espetáculo, considerando que
Jorge resolveu não atuar na próxima montagem, e se ocupar com as outras
atividades que a encenação demandará; voltando a atuar na montagem seguinte,
prevista para 2020.
Não se engane, essa decisão
esconde uma provocação tão pertinaz quanto a tradição revolucionária do nosso
consorte. Desde sempre Jorge foi o mais incisivo quanto a necessidade da
Pequena Companhia de Teatro extrapolar as fronteiras dos quatro membros, quanto
a importância de eu dirigir e eles atuarem com outras pessoas, quanto a oxigenação
que essa hipótese provocaria, e toda uma dita de argumentos que até então
conseguíamos esvair, levando-o a se encontrar em cena de novo, fazendo teatro
por amizade, como ele costuma dizer – pois os mais íntimos saberão que ele
detesta essa conversinha chata de ator, e todas as respectivas e cansadas
palavrinhas do glossário, como técnica, pesquisa, processo, linguagem,
potência, etc.
Eu sempre entendi a
provocação, mas, como lidar com isso? Essa opção apresenta inicialmente um
problema existencial: nos obriga a procurar atrizes e atores para a nova
encenação, fato que não acontecia comigo desde os idos 2001, quando tive que me
debruçar sobre a definição do elenco de Marat/Sade – montagem com o querido e
parceiro Fernando Bicudo – que me possibilitou dirigir quatro artistas
fenomenais que não estão mais entre nós: Reinaldo Faray, Aldo Leite, Antônio
Gaspar e Guilherme Teles.
De lá para cá, os elencos se
formaram organicamente, tanto na Pequena quanto nas montagens que dirigi para
outros grupos – como a Cia. A Máscara de Teatro e o extinto Galpão de Teatro –,
e ter que retornar a esse delicado exercício tem me custado alguns anos, pois
conhecemos a decisão de Jorge desde 2013. Bem no fundo da alma que não tenho,
acreditava que essa decisão se reverteria, e passei praticamente dois anos
pensando nisso até entender que a decisão era definitiva e necessária –
argumento que esclarece ao nosso espectador o porquê da demora do novo
espetáculo, pois Velhos caem do céu como canivetes já carrega quatro anos e
quatro meses de trajetória.
E agora? É no que estamos
mergulhados. Conversando, encontrando, refletindo, indagando, vamos conhecendo
pessoas e provocando atrizes e atores que possam mergulhar nesse ensaio sobre a
memória que a nova montagem propõe, ao adaptar o conto A outra morte, de Jorge
Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo.
Essa decisão também provocou
outra reflexão no grupo, que diz respeito a inclusão, ou não, de novos membros
efetivos na Pequena Companhia de Teatro. Há algum tempo vimos percebendo que a Pequena
cresceu demais. As conquistas e projeção que conseguimos nos quase doze anos de
trajetória trouxeram demandas que começam a esgotar nossa capacidade de
atender. Fomos nos tornando multiformes e plurifacetados ao ponto de exaurir a
nossa paciência, e chegamos a atender a necessidade de faxineiro, ator,
designer, atendente, oficineiro, videomaker, administrador de mídias,
elaborador de projetos, locutor, promotor de vendas e audiodescritor com a mesma
pessoa, para citar um exemplo. Chega, não?
A ideia de convidar uma
atriz e um ator para se juntar a Cláudio Marconcine no palco da nova montagem –
sim, a Pequena Companhia de Teatro prepara um espetáculo com mais de duas
pessoas em cena pela primeira vez – traz a reboque a possibilidade de pensarmos
no alargamento definitivo do grupo. Para aumentar nossa potência criativa e
nossa capacidade de gestão, a cumplicidade permanente que um novo membro pode
trazem nos apresenta um horizonte para além da importância de fechar o elenco
para o novo espetáculo. E, a se confirmar essa decisão, enfrentaríamos um
grande desafio: quebrar a barreira da afetividade.
Diversas vezes propagado
aqui – não vou colocar nenhum link para ver se você se digna a garimpar alguma
relíquia filosófica nesse amontoado de lixo reflexivo que este blog produz –,
nosso grupo foi construído a partir da afetividade. Muito antes da nossa
existência como grupo, Cláudio, Jorge, Katia e eu existíamos como amigos. A
própria formação da Pequena – que inicialmente reuniu apenas os três últimos –
aconteceu pela constatação de que estávamos sempre juntos. Criamos um grupo de
teatro sem saber o que queríamos, como seriamos, ou porque faríamos. Só
entendíamos que, se íamos estar juntos o tempo todo, que fosse fazendo algo
inútil: teatro.
Eis outra aguda
transformação que o plural usado na abertura desta postagem escondia: como
incorporar um membro em um grupo de teatro que até então se sustentou em
fundações tão peculiares quanto as que formaram e consolidaram a Pequena
Companhia de Teatro?
A resposta está em
construção. Não temos a menor ideia, ainda, nem do formato que usaremos para
habitar as personagens da nova peça, nem dos mecanismos que levam à
incorporação de um membro em um grupo de teatro. Estamos tateando. Eu,
titubeando, tremulando, hesitando, vacilando, duvidando. A provocação de Jorge
é tão potente e oportuna que deve prenunciar os caminhos criativos da nossa
próxima década, e, com ela, a natural incerteza que faz tremeluzir a chama do
navegador de certezas que vos escreve. Contudo, como diria a mulher em um
diálogo do novo espetáculo: certezas não existem.