domingo, 24 de dezembro de 2017

Confesso: adoro Natal!


Amanhã é Natal. Hoje é a véspera, que na Argentina recebe o singelo nome de “Noche Buena”. Como artista engajado que sou, deveria advogar contra toda essa palhaçada que envolve a data, e todas as datas comemorativas capitalistas, com seus consumos inexplicáveis, as constantes distorções de posse, banquetes e afins; mas não posso. Adoro comemorações. Natal, Ano Novo, aniversário, Páscoa, dia das mães, dos pais, das crianças, do teatro, do alfaiate; anos de namoro, de casamento, de amizade; anos de casa nova, de cidadania brasileira, de grupo, de cirurgia, de fazer teatral. Tenho total fascinação por tudo o que envolva uma celebração, sempre e quando seja um evento íntimo, aconchegante, numericamente econômico, audivelmente saudável, gastronomicamente farto e etilicamente complexo.

Peço perdão pela decepção que provoco com essa revelação aos queridos amigos revolucionários que sempre se acotovelaram comigo nesta nossa utópica empreitada de transformar o mundo. Contudo, em minha defesa, digo que é mais forte do que eu. Não consigo evitar. Gosto do clima, do consumo, das luzes, das desatinadas gargalhadas. Acho que é somente nessas comemorações que me permito a felicidade irresponsável – aquela que esquece o mundo que a entorna, e egoistamente esbanja alegria sem escrúpulos ou vergonha da farta desigualdade que povoa a realidade humana.

É Natal. Uma coisa tola, tosca, sem sentido; um deus que nasce e é filho dele mesmo, um velho barbudo de vermelho, neve em São Luís, nozes, frutas secas, peru, presentes que vão e vêm, luzes que piscam – Por quê? Para quê? –, essa fascinação pela décima segunda badalada, trenó com hienas (ou seriam renas?), meias e guirlandas; tudo errado, tudo esquisito, tudo fora de lógica, tudo do jeito que eu gosto. Se não existisse Natal o dia 25 de dezembro seria patético. Natal não, véspera, pois o Natal é uma coisa menor, assim como o 01 de janeiro. Natal é o dia da ressaca; de comer o que sobrou; de fazer de conta que estamos num dia que não existe, e a letargia é o único meio de passar por ele sem que as consequências dos irresponsáveis excessos venham à tona – se você for replicar com religiões, me perdoe, estou falando de outra coisa.

As vésperas é que são elas. Natal, Ano Novo... aqui em casa comemoramos até vésperas de aniversário; ou seja, o aniversariante tem direito a duas celebrações. Eu sempre me pergunto de onde vem esse meu fascínio por comemorações. Às vezes penso que está relacionado ao fato de ser tão ranheta, tão chato, tão mal-humorado, tão insatisfeito, tão revoltado, tão furioso, tão insuportável. É como se as comemorações fossem meu bode expiatório, meu momento de espasmo cerebral inconsequente, a parte feliz que me cabe, a perpendicular euforia em relação ao meu permanente fracasso, a dita felicidade.

Imagino que esse gosto pelos festejos esteja relacionado a uma infância suculenta; ao precoce falecimento da minha mãe e a respectiva interrupção de alguma rotina de celebração infantil; à ficção que crio do meu passado e suas idiossincrasias, não sei. Sei que sou um celebrante contumaz.

Um dia vou contar dos rituais que envolvem certas festas aqui em casa, e como Katia e eu formamos a melhor dupla de anfitriões que existe no universo, mas não hoje. Hoje me concentro exclusivamente em revelar e entender esse paradoxo; esse distúrbio de personalidade; essa distorção ideologia; essa disposição festiva que destrói toda minha reputação, construída arduamente através de uma robusta sociopatia, e do padecimento crônico de simpatia reversa.

Hoje não há postagem. Hoje apenas sussurro no seu ouvido que adoro comemorar; do meu jeito, com as peculiaridades que a minha vetustez genética me impõe, mas com a disposição de um menino que espera ansioso durante toda a madrugada a passagem de Papai Noel – no meu caso, a ansiedade se traduz muito mais na imagem do menino que espera os três reis magos que na do velho barbudo. Um menino. É como eu me sinto. Feliz Natal.


domingo, 10 de dezembro de 2017

Velhos em movimento


A urgência de encontrar pontes de diálogo, neste momento de aridez cultural forjada pela ausência de políticas públicas, promove um exercício criativo, provocando os grupos de teatro do país a saírem da caixinha e buscarem mecanismos de interlocução outros que os apresentados nos últimos anos.

Recentemente participei do seminário Conversas Teatro em Movimento, promovido pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, em São Paulo, onde foram anunciados os 57 espetáculos, dos 647 inscritos, que circularão pelo país com o patrocínio do programa, em 2018 – dentre eles, nosso Velhos caem do céu como canivetes. A notícia é requentada, mas a reflexão pretende munir-se de um anacrônico ineditismo para tentar enredar o leitor na teia de inutilidades que normalmente teço para manter-me fiel ao propósito de fazê-lo perder tempo.

O encontro promoveu a reunião de grande parte dos grupos de teatro do país que são referência para nós, seja pela produção artística, seja pelas formas organizacionais, seja pelos mecanismos de resistência desenvolvidos.



Como já confessei aqui, esse tipo de reunião me torna um vampiro. Quando me encontro entre colegas que celebram a mesma sorte de viver de teatro e padecem das mesmas agruras, passo a vampirizar cada reflexão, cada problematização; tento extrair de cada papo, de cada discussão, o máximo que minha burrice permite; procuro dialogar até que a síntese seja a mais razoável possível, sem perder de vista sua condição de nova tese. Um vampiro. Vampirizo meus pares sem pudor, na tentativa de extrair deles aquela singular sabedoria que só se revela num papo entre amigos.

Nesse tipo de seminário, reunião, palestra, colóquio, o que está posto formalmente sofre o desafio de conseguir superar em importância tudo aquilo que é dito nos bastidores, nas entrelinhas, nas camadas afetivas; fazendo-nos suspeitar que a relevância da ação esteja naquilo que aparentemente é a simples estrutura social que permite a sua viabilidade: o encontro. Não que o seminário em si não tenha valor, apenas pontuo valores diferentes. É como se a estrutura do pensamento apresentado formalmente nas mesas propostas só encontrasse tangibilidade nos sussurros da informalidade.

Suspeito que os promotores do evento tenham total consciência da importância do atravessamento entre o formal e o informal, e o quanto um retroalimenta o outro, com a especificidade que cada qual traz para a construção de um pensamento estruturante para o teatro de grupo do país.

Na busca de pistas visando encontrar alternativas para enfrentar o delicado momento vivido pelos grupos de teatro de pesquisa, me deparei com uma singela, óbvia, contudo potente: o rastro, a pegada, a marca. Toda pegada é uma pista do trajeto seguido por alguém. Ao deixarmos o nosso rastro de trabalho, de enfrentamento, de resistência, sem perceber estamos deixando pistas para que outros consigam superar obstáculos, experimentar alternativas, atrair outra sorte. Quando a Pequena Companhia de Teatro resiste, insiste e não desiste, está deixando uma pista, um rastro passível de se seguir para encarar situações similares, mesmo que por companhias diferentes. Da mesma forma, ao entender as pegadas deixadas por coletivos que observamos, nós também vamos reconduzindo trajetórias, suspeitando dos atalhos, atravessando pontes, ligando o tempestuoso presente ao futuro próspero.

Não existe um único encontro que não deixe em mim uma marca. Logo, meus queridos amigos vão deixando rastros das suas experiências, pegadas que posso seguir para amortizar o peso da existência. Por isso agradeço a cada um deles, meus contrafeitos mestres – como salientei no link que você não abriu e que elucida a conclusão desta postagem.

domingo, 19 de novembro de 2017

Cresça e desapareça


Vamos desaparecer. Mas, do que – ou de quem – depende a sobrevivência da nossa imagem durante essa pequena réstia de tempo que antecede o esquecimento definitivo da nossa existência após a morte? De uma árvore? De um filho? De um livro?

Ideias como as do desaparecimento, das imprecisões da história, da memória e suas flutuações ficcionais, perpassam toda a narrativa da nova montagem que a Pequena Companhia de Teatro prepara para 2018, e com ela emergem as angústias do cronista que, não tendo pouco o que fazer, ainda se compromete com uma prática que adiciona o pior tempero possível ao assunto: a instável e efêmera escrita em suportes virtuais.

Por quanto tempo nossos entes queridos lembrarão das nossas façanhas até que o esquecimento vença essa resistência empedernida que o afeto impõe aos pobres familiares ou amigos que ficam?

De alguma maneira, nossa vida é balizada pelas marcas que vamos deixando no decorrer da passagem; uma tosca anedota sempre lembrada, um feito familiar ímpar, uma batalha caseira vencida, um gol importante na várzea; pequenas pedras que formam no inconsciente coletivo do nosso entorno a imagem do que somos para os outros – único ponto de vista possível de sobrevida, pois o que somos mesmo morre conosco no exato segundo em que o surrado coração para.

Pensar que não nos preocupa o funesto desaparecimento definitivo é uma pretensão que por si só já demonstra a intensão de se perpetuar, pelo menos na própria ideia da não preocupação com o assunto, e nesse caso, é a presunção da sentença que auxiliará o marginal – no sentido de estar à margem do pensamento comum – na prorrogação do apagamento absoluto.

Queremos sim marcar nossa passagem, de alguma maneira, pela contagem regressiva que chamamos vida. Queremos ser lembrados, pelo menos um pouquinho, pois dessas pequenas lembranças depende a nossa existência. Uma personagem do novo espetáculo diz: sem a memória de alguém sobre mim eu não tenho história. Nossa existência depende dos outros. Da tenacidade dos outros em manter a nossa memória viva, até que não seja mais possível resistir, e o esquecimento seja fato.  

O entendimento da finitude incondicional é a sombra que acompanha o homem, e motor de muito do que vamos construindo durante a nossa trajetória, na tentativa de fazer pequenas marcas nos que demonstram que a nossa vida tem alguma serventia. Parentes, amigos, colegas, responsáveis por nos presentificar após a morte em frases como “fulana adorava reclamar”, “beltrano era um chorão”, “você lembra de cicrana?”. Não. Chegará um momento em que ninguém mais lembrará de cicrana, por mais generosa que seja a intenção daqueles que resistiram abnegadamente ao seu esquecimento; as gerações se encarregarão de apagar cada fragmento da sua memória, todas as suas lembranças, e a sua vida terá desaparecido definitivamente.

Na postagem anterior a esta perguntava sobre as concessões que devemos ou não fazer para o espectador. Um tema tão espinhoso como esse não seria nossa primeira opção se resolvêssemos ouvir o clamor da contemporaneidade por amenidades, fugacidades, virtualidades e afins. Mas, entendemos que os corrigidos quinze segundos de fama dizem muito do desespero que vivemos ao tentar abraçar nossa vida como única e peculiarmente significante, pois a velocidade da informação, o excesso de imagens, a vertiginosa jornada, exigem muito mais esforço para se provar uma existência; parafraseando um caro e resignado amigo, a árvore, o livro e o filho não são mais sinônimos de concretude. 

História, memória, esquecimento, matéria-prima delicada. Dizer do que não sabemos é sempre ameaçador. Abordar assuntos que nos fragilizam é sempre dolorido, tendo em vista que todos nós, membros da Pequena Companhia de Teatro, estamos próximos dos cinquenta anos. Talvez, ao buscar contribuir de alguma forma para essa reflexão, estejamos encontrando uma maneira de tentar prolongar a lembrança da existência da Pequena Companhia de Teatro no Maranhão, pois, sabemos que daqui a algumas décadas ninguém se lembrará de nós, e estaremos mergulhados no labirinto das infinitas existências que povoaram o mundo sem deixar rastro.

Labirinto como o do exercício dramatúrgico ao que venho me propondo na empreitada do novo espetáculo, e que hoje exercito aqui ao escrever estas tortuosas linhas. Espero estar deixando o rastro de coesão e coerência necessários para que se encontre a saída.

domingo, 22 de outubro de 2017

O espectador manda em você?


O que faremos? Sempre acreditei que um dos principais objetivos do teatro fosse provocar o espectador, exigir dele uma postura independente, dialética; convocá-lo a saltar para instâncias tortuosas; convidá-lo a saborear um dilema; instigá-lo a se posicionar sobre um balizamento retrógrado; apresentar-lhe um novo paradoxo; tirá-lo da zona de conforto – essa zona tão protegida pela TV que defronta o sofá da sala e se encarrega de adormecer os sentidos para a fatal noite de sono.

O discurso mais recente de interlocução, de necessidade de comunicação, de partidas mais abertas com o público, pode camuflar um destino de simplismos e nivelamentos que não necessariamente argumentam uma narrativa mais efetiva para o teatro na sua contemporaneidade. Imagino se não deveríamos ter cuidado ao colocar a necessidade de conversação a qualquer preço.  

Fazemos teatro. Não fazemos televisão, dança, cinema, literatura, artes visuais, música. Fazemos teatro, com a qualidade sígnica, mítica e metafórica que ele oferece para a relação necessariamente provocativa que dele se espera, conforme tangenciei aqui. Outras linguagens não podem intervir, aconselhar, ou preconizar uma forma melhor de diálogo entre o espectador e o teatro, pois, esse diálogo difere em conceito, condimento e contexto das dialéticas que se estabelecem (ou não) entre o espectador e as outras linguagens artísticas, ou entre os diversos instrumentos de entretenimento contemporâneo.

O que me preocupa é o vale tudo na busca desse espectador, quando a obra deixa de ser autônoma, e passa a ser refém de uma demanda quantitativa, com o argumento de não estar fazendo um teatro para poucos. Vale tudo? Se a morte é fundamental para a narrativa em questão, devemos transformá-la em um desmaio, pelo simples fato da ideia ser mais simpática ao espectador? A novela já faz isso; o teatro pode mais.

Certa vez, conversando com um amigo que não via há muito tempo, recuperou uma frase que, segundo ele, eu tinha dito uma década atrás, e que só agora ele conseguira compreender efetivamente. A frase versava sobre a relação entre teatro e público, e parece ser que dizia que não devíamos abrir concessões. A frase não me surpreendeu, nem me foi estranha a ideia de ser de minha autoria, pois sempre pensei assim. O diálogo não se constrói com concessões. Uma tese precisa ser contestada por uma antítese, para que dela surja a síntese desejada. A tese não precisa apenas abrir mão de si pela necessidade de dialogar com o outro, se deste outro não vem a argumentação necessária que provoque a reflexão sobre a tese em questão. O teatro não precisa facilitar o discurso para aumentar a relação com o público. O dogma do teatro depender do público é perigoso. Se em uma relação um depende mais do outro, a autonomia desse um é insustentável. Antropologicamente falando, o espectador depende do teatro tanto quanto o teatro depende do espectador, não se iluda.

Sim. O espectador também depende do teatro, mesmo aquele que nunca viu uma única peça sequer. Ele pode não fazer a menor ideia do que o teatro seja, mas esse cidadão depende do teatro, mesmo sem saber. Assim como o teatro depende dele. Igualmente. Equilibradamente. Equitativamente. Então, para mim, o fato do teatro depender do espectador nunca se apresentou como uma ameaça; nunca foi uma sentença que me levasse a cogitar concessões; nunca se assentou como um fantasma que exigisse uma resposta artística à altura das suas expectativas; essa sentença nunca me oprimiu, pois, sempre soube que esse espectador dependia tanto do teatro quanto eu dele. Uma relação só pode ser saudável se preservada a independência das partes. É nisso que acredito e, por acreditar nisso, é sobre esse fundamento que trabalho.

É notório que tudo o que tenho falado nas postagens pregressas, e tudo o que venha a se falar nas do porvir, estão relacionadas com a nossa nova montagem em curso, e que conversa com um dos escritores mais emblemáticos da literatura mundial, Jorge Luís Borges. Logo, as sentenças absolutas formuladas aqui são o blefe de um criador submergido em dúvidas, inseguranças, desconfianças, agonias, revezes, agruras, vacilações, perguntas.

O que faremos? Estamos dispostos a simplificar o complexo? A enfeitar o feio?  A adoçar o amargo? A camuflar as injustiças? A mudar o rumo? A soprar o ardor? A acalmar a tempestade? A remediar a dor? Estamos dispostos a facilitar a vida do espectador, e torná-la amena ao ponto de não sentir diferença entre uma ida ao teatro e uma xícara de chá na frente da TV? Eu não.

domingo, 8 de outubro de 2017

Por que escrever um texto de teatro?


Amanhã embarco para Teresina, finalizar minha participação no projeto SESC Dramaturgias, que me possibilitou exercitar um diálogo profícuo sobre o texto teatral e seus desenhos. Curiosamente, em 2017, me dedico à feitura do texto da nova montagem da Pequena Companhia de Teatro, que parte de um conto de Jorge Luis Borges intitulado A outra morte. Como minha escrita acontece concomitantemente ao atravessamento geográfico que o SESC me propôs, é natural que a nova dramaturgia venha contaminada de inúmeras problematizações que se agruparam no decorrer da vivência dialética provocada pela minha passagem por Caxias/MA, Vitória/ES, Maceió/AL e Teresina/PI.

O que é ser dramaturgo na contemporaneidade? O que compreende efetivamente essa função, quando descartamos as plurais dramaturgias atuais e nos concentramos no autor de textos teatrais – aquele maldito, anacrônico e solitário cidadão que senta em uma cadeira, diante de uma mesa, para escrever o que habita o palco, mesmo sem a certeza de que esse palco seja habitado por aquilo que ele escreve?

A minha particular condição me é favorável, pois, normalmente, o que escrevo vem sendo levado à cena por nosso grupo, e só escrevo pela necessidade de compor um dizer para esse fim; mas, como fica a vida do dramaturgo autônomo, aquele ser que não faz parte de um coletivo; aquele indivíduo que imagina poder construir um discurso com potência mínima que justifique a sua feitura e a travessia para a tridimensionalidade, independentemente de ter perspectivas de que isso aconteça?

O tema é delicado. Nas quatro cidades onde discutimos o assunto, durante meu perambular sesquiano, foi unânime a constatação da significativa diminuição do exercício da escrita para teatro; a redução de escritores que se dispõem a enfrentar o gênero dramático; a ausência de novos textos para possíveis montagens; a escassa produção literária do gênero. O que sim fica claro é o deslocamento do “modus operandi” dessa função, sua integração a um conceito maior de teatralidade, e suas flutuações de construção e estilo, com suas respectivas idiossincrasias; mas não é esse o foco desta postagem, e sim, a produção literária do gênero.

A quem serve, efetivamente, o texto de teatro isolado, escrito no gabinete, descolado do atravessamento cênico provocado por um grupo de teatro ou coletivo de artistas que o horizontalize? Será que ainda existe espaço para? Quais motivações ainda perduram para que um escritor pense em escrever para teatro? Sabemos que a finalidade de um texto teatral é o palco, e, naturalmente, o escritor desse gênero só encontrará sentido na sua produção se esta atingir esse fim. Então, que mecanismos a contemporaneidade oferece para que essa produção ainda faça sentido?

Como sempre consigo ser mais patético do que você imagina, vou me tomar como exemplo: um sujeito com parca produção dramatúrgica, que não tem isso como ofício, que não se alinha com a prática como mero exercício, e que nunca pensou em encenar os próprios textos – ressalvo que apesar da autoria das duas últimas dramaturgias da Pequena Companhia de Teatro, estas partiram de obras literárias já existentes, e coube a mim construir um dizer que, mesmo autônomo, se origina em outro suporte. Desde 2009 não escrevo um texto teatral que não esteja relacionado com algum tipo de encenação eminente, parceria pertinente, construção proeminente, ou pragmática contratação. Literariamente tenho até me dedicado a um romance em detrimento ao desejo de escrever para teatro (a perversidade do seu sorriso ao ler essa sentença escancara a sua sordidez, e posso até ouvir a sua sutil exclamação ao constatar minha pretensão: Você?!). O que motivou o arrefecimento da minha produção na última década, se em parte da década anterior produzi em média um texto por ano? (Como prometi, o tosco exemplo se ancora no patético proponente.)

Você deve ter percebido que hoje me dedico quase que exclusivamente a arguir, e penso que seja um sintoma do que está assentado. A contemporaneidade conseguiu esvaziar as motivações que justifiquem a dita dramaturgia convencional? Há redução de oferta, ou Caxias, Vitória, Maceió e Teresina são exceções que confirmam uma produção de textos teatrais prolífera, acentuada e relevante? Será sempre São Paulo o exemplo que vem à sua cabeça para fazer a réplica? Os grupos de teatro conseguirão oxigenar se alimentando apenas de narrativas próprias? A desnecessidade da escrita dramatúrgica pode apequenar a busca de conhecimento técnico e, com isso, reduzir a qualidade da produção? Ainda é possível qualificar um texto se está desconectado de um organismo teatral embrionário? O texto teatral descolado de uma montagem que o provoque ainda é necessário? É o crepúsculo do dramaturgo no seu sentido etimológico?

Claro que o cano das questões, com as críticas que se aderem, apontam diretamente para a minha cabeça, autor que estou de um texto teatral, transposto de um conto, construído dialogicamente, para ser montado pelo grupo de teatro do qual faço parte, e que há tempos não escreve sob outra condição. Logo, a provocação que lhe faço não é gratuita. Nunca foi. Pois, você, há anos, mesmo sem saber, vem servindo de cobaia, consultora, confidente, juiz, coautor, mártir, e espero que sua paciência e generosidade nos mantenha assim.  Portanto, me responda, ou me ajude a perguntar.

domingo, 24 de setembro de 2017

Teatro de grupo: o grito que não se cala


Sorrateiramente, a atual conjuntura político-cultural brasileira, que atende pelo nome de desmonte, ataca o teatro de grupo do país no seu ponto mais sensível: a montagem de novos espetáculos. Nos últimos tempos, acompanhamos o minguar de toda e qualquer iniciativa do Ministério de Cultura no que se refere a projetos de apoio a montagens inéditas, e a consolidação dessa realidade não é fortuita.

Se a ideia é desconstruir a teia de pensamento reivindicatório que o teatro de grupo representa – com sua profunda capilarização por todo o país –, qual a melhor forma de descoser essa potente rede de contestação? Atacando a produção inédita.

Perceba que projetos de circulação, apesar de escassos, ainda perduram nas esferas públicas e privadas, contudo, todo e qualquer programa que incentivava novas montagens desapareceu como num passe de mágica. Com isso, enquanto circula-se pelo país com o repertório existente, vai se perdendo o fôlego que o novo espetáculo dá para a continuidade da trajetória dos coletivos do país; ou seja, um desmonte sorrateiro, perspicaz, ladino, criminoso. Quando grupos menos estruturados, ou com menor poder de articulação, forem pleitear os poucos projetos de circulação que ainda existirem, perceberão que não conseguiram viabilizar um novo espetáculo para circular, fazendo minguar o volume de novas montagens no país. Por consequência, ao constatar o encolhimento da produção de novos espetáculos, o próprio projeto de circulação remanescente passa a não fazer sentido, justificando-se a extinção, e consolidando o desmonte da rede de grupos. Nem montagem nem circulação; cala-se o grito.

Agora, o que os detentores do poder já deveriam ter entendido é que o couro do teatro de grupo do país é feito de uma textura indefectível e indecifrável; ele não rasga, não tora, não pui, não cede; está além da vaidade individual, além do mercado, além das prioridades pessoais do artista; ele resiste porque seu objetivo sempre foi a consolidação de uma sociedade mais justa, igualitária, humana. É o que o teatro de grupo busca com sua inacabável resistência, embrenhada nos mais recônditos recantos do país.

Portanto, não adianta puxar, esticar, pressionar, desmontar, pois, a nova montagem é a principal arma de contestação de uma companhia de teatro, e para manter esse instrumento vivo, os coletivos sempre reinventarão mecanismos outros que os postos no seu tempo, colaborativos, autofinanciados, agregativos, comunitários, pactuais; garantindo o grito que um novo espetáculo dá, quando a cortina se abre pela primeira vez.

Claro que grupos ficarão pelo caminho, outros se dissolverão por acreditar na oratória do mercado, alguns tropicarão entre sonho e realidade, diversos cederão aos apelos do consumo; mas a grande maioria dos grupos de teatro deste interminável Brasil resistirão, como sempre, por entender que a sua responsabilidade transcende o desejo individual. Ela evoca o bem comum, único objetivo que faz com que os artistas mais diversos se congreguem nessa difícil e desafiadora micro-sociedade-igualitária chamada grupo de teatro.

 

domingo, 10 de setembro de 2017

Besta é tu


Amanhã viajo para Teresina, facilitar uma oficina de escrita dramatúrgica pelo projeto SESC Dramaturgias, última cidade que visitarei este ano provocando dramaturgos, após ter passado por Caxias/MA, Vitória/ES e Maceió/AL, pelo mesmo projeto. Antes, já estive em Teresina para participar do NORTEA/Encontro de Pesquisadores do Nordeste, dentro do FestLuso; antes, pelo SESC Amazônia das Artes, com Velhos caem do céu como canivetes; antes, com Pai & Filho, pelo Myriam Muniz de Teatro; antes, para ver a estreia de “Quando as máquinas param”, do Harém; antes, com Deus Danado, participando de outra edição do FestLuso; antes, com “Ramandá e Rudá”, no Theatro 4 de Setembro; e antes, e antes, e antes de antes. Uma intrínseca relação com a cidade, construída através do teatro.

O teatro tem isso de admirável. Nos faz erguer pontes espontâneas onde nenhum outro instrumento de engenharia consegue erigir. Somos levados pela força do seu desacato, e vamos rompendo barreiras, ramificando sonhos, reconhecendo identidades, revendo amigos; porém, a principal virtude do seu vigor contraventor é nos fazer confrontar a estática, desafiar a inércia, combater a letargia, sempre na expectativa de um novo ou surpreendente porto – porque o novo pode vir da surpresa de nos levar novamente a um lugar querido.

Agora, pelo poder da palavra escrita, meu encontro com pessoas que desejam dialogar sobre formas, metodologias e ferramentas dramatológicas; sempre na torcida de construir novas pontes, fazer novos enlaces, tecer novas teias; pois, a mais potente prova da natureza profícua do teatro é que provavelmente não encontre nenhum amigo ou parceiro antigo participando da atividade. Claro que abraçarei todos nos momentos de folga, mas o teatro não só promove reencontros, como auspicia novos encontros, com pessoas que não se conhecem, mas se reúnem em torno de um objetivo comum, neste caso, escrever para teatro.

Se você tiver curiosidade, já versei muito sobre minha experiência nesta empreitada dramatúrgica, basta clicar aqui para aprofundar a leitura; mas um ponto que pouco abordei nas postagens anteriores diz respeito a esse frescor presente em cada encontro; essa curiosa química que faz com que diferentes se juntem para tratar de algo que os atrai. Logo, o teatro tem um poder de socialização incomum, promovido pelo tête-à-tête, pelo corpo-a-corpo, pelo enredamento de seres díspares em torno de desejos comuns.

Não fosse o teatro eu seria um anacoreta. O meu leque de relações sociais se resumiria a um entorno tão restrito que não sei se poderia ser enquadrado como um estado de sociabilidade. A reserva promovida pelo meu fastio em lidar com pessoas teria me transformado em um homem das cavernas – homem que minha querida amiga Tony Silva costuma contar que eu era quando nos conhecemos. O teatro socializando a besta, ou o besta. De besta, mesmo; metido, antipático, presunçoso, pernóstico, arrogante.

Ah, o teatro! Somente nesta ação, a oficina Do narrativo ao dramático: a transposição de gêneros como instrumento de confecção de dramaturgias, promovida pelo SESC, conheci mais de cinquenta pessoas; e dessas tantas com as quais mantive um intenso diálogo e frutuoso aprendizado, algumas reverberam até hoje; não mais no campo de um grupo de pessoas que participaram de uma atividade formativa, mas de companheiros de dúvidas, parceiros de conversas, colegas de ruína, consortes para a vida.

É o teatro aproximando as pessoas e nos lembrando que precisamos do contato presencial entre as gentes para que o próprio teatro sobreviva. Teresina, aqui vou eu!

domingo, 27 de agosto de 2017

Se no teatro servissem mocotó, meu mundo estaria completo


Teatro é como mocotó: se você gosta, você sabe onde encontrar. Não precisa de propaganda, endereço, dia, agenda, clima; se gosta, acha. Toda vez que ouço as frases: “não fiquei sabendo”, “não achei o endereço”, “faltou divulgação”, lembro de mocotó. E se você é especialista, não só acha, como conhece todos os lugares que servem a iguaria, e sabe dizer sem pestanejar qual é o melhor mocotó da cidade. É uma questão de gosto, conhecimento e hábito. Acontece igual com o teatro.

O problema do teatro não é divulgação, é hábito. A forma que a sociedade desenvolveu para camuflar a fissura na sua formação cultural atende pelo nome de divulgação – ou outras tantas desculpas esfarrapadas que se ouvem quando há a necessidade de se mostrar antenado e esconder a falta de hábito de ir ao teatro. Hábito, tal qual o hábito de ler, ir ao estádio, fazer exercícios; são hábitos culturais que prescindem de desculpas mercadológicas, marketológicas, comercialógicas, economicológicas. Você tem ou não tem. Em toda a minha vida acho que nunca vi uma propaganda de mocotó... talvez uma ou duas.

O que esse diagnóstico revela é que são elas. Qual a possibilidade de um cidadão ter o hábito de ir ao teatro se durante toda a sua formação não soube o que é, nunca frequentou, e tampouco acompanhou qualquer gesto dos pais na menção dessa prática? Nenhuma. Tiro por mim: é muito provável que eu tenha assistido a minha primeira peça de teatro já adulto – a virtude que o envelhecimento traz são os balanceios da memória, os disparates das lembranças e cronologias, facilitando a minha escrita ao construir a ficção que preciso no momento, transformando-a na mais pura verdade sem a necessidade despudorada de ter que inventar a história, pois imagino estar tirando-a do mais profundo recanto da minha lembrança.

Com uma realidade social como a nossa, é muito pouco provável que ações de formação de plateia surtam efeito a curto ou médio prazo. Gratuidade, divulgação massiva, estratégias de marketing, são ações que favorecem a fruição do espetáculo que é objeto da campanha, do projeto, da ação, mas não necessariamente estarão formando um espectador de teatro. Espectador de teatro não se forma, se torna, a partir da formação “de mundo” que recebeu, do entendimento concreto do sentido de cidadania; e não através de ações concentradas na linguagem, como as necessárias aulas de teatro nas escolas e demais instrumentos que se tem visto por aí para tentar melhorar a relação do cidadão com o teatro. É muito mais do que isso. É entender que a fruição do teatro não é firula, favorece o cidadão na compreensão da sua origem, no entendimento da sua identidade, no assentamento da sua brasilidade.

É aí que entra a famigerada função do estado. Grande parte da formação do cidadão fica a cargo da qualidade das políticas públicas, e nesse caso, a multiplicidade de exemplos mundiais não nos deixa mentir. O hábito de ir ao teatro é um exemplo de civilidade, pois os códigos de linguagem que ali são operados demonstram a qualidade na formação do cidadão que frequenta, não sendo possível atribuir essa fissura no hábito somente à educação familiar. É o estado que se omite e falha na construção de cidadania. Por isso sempre nos surpreendemos com países onde o povo tem o hábito de ir ao teatro, e ficamos maravilhados com a sua civilidade. Essas comunidades certamente tiveram acesso a políticas públicas culturais de qualidade por séculos seguidos. Você não vê, mas o estado está lá, responsável pela parte que lhe compete na formação do cidadão. Não é da noite para o dia.

E de que maneira o cidadão que não faz teatro pode contribuir para a formação desse hábito? Tentando entender a sua falta de hábito, penso eu. Tentando entender que preguiça é essa que assola seu corpo no momento de se levantar do sofá. Não inventando desculpas esfarrapadas por não ter assistido a um espetáculo que ficou semanas seguidas em cartaz. Escrevendo na linha do tempo das suas redes sociais o quão significativa foi a sua experiência ao prestigiar o espetáculo da vez. Arrastando junto para a experiência o letárgico amigo que não larga o Game of Thrones.  Conhecendo os teatros da cidade para não ficar comentando “onde é?” na postagem que estampa o endereço, a localização e ainda traz um mapinha desenhado. Chegando pontualmente, para auxiliar a assimilar que ver teatro é diferente que ver televisão ou cinema. Enfim, se você quer ajudar para que o hábito de ir ao teatro no Brasil se torne um dia uma realidade, você pode ajudar de muitas formas, mas a principal é assistindo, e tornando esse seu exercício um hábito.

É possível. Em sete anos adquiri o hábito de escrever para você semanalmente através desse exercício. Claro que tudo o que escrevo, e principalmente o que este texto concentra, é permeado de superficialidades, simplismos e chacotas, mas não podia ser diferente. Se já não existe o hábito de ver teatro, que dirá de escrever sobre? Faço a minha parte, expondo periodicamente minhas falências como escritor, na esperança de que você se torne um espectador.

Hábito. Escrever, ir à praia, soltar pipa, dormir de bruços, tomar chimarrão, ir ao teatro. É tudo uma questão de hábito. Agora, se a peça de teatro coincidir com a minha vontade de comer mocotó, vá ao teatro, mas não me chame... chegue logo sexta-feira! Não vejo a hora de comer um belo prato de mocotó!

P.S. – Zerei a vida. As fotos são do mocotó que comemos ontem no encerramento da temporada do espetáculo “Atenas: mutucas, boi e Body”. Para minha surpresa, pois havia acabado de escrever a postagem quando o Lauande mencionou o cardápio.

domingo, 13 de agosto de 2017

Como nossos pais


Não somos os mesmos, nem vivemos como os nossos pais. Culpa do teatro. Se existe algo neste quase meio século de vida que me faz sentir orgulho é isso. Ressalvas à vida que meus pais levaram? Não, apenas a viva constatação de ter traçado o meu caminho, e por consequência, vivido a trama que o teatro e seus quiproquós prepararam para mim. Uma vida pautada pelo abrir e fechar de cortinas, mesmo quando as cortinas estão ausentes, e o balanço do tempo é dado pela espera da próxima apresentação.

Essa opção não trouxe uma vida mais amena, nem farta, nem segura, nem tranquila; trouxe a vida da incerteza, da provocação permanente, do chacoalho constante, do estado de alerta, da destituição da zona de conforto, do descompasso entre realidade e ficção; aparelhos para a surdez humana, que favorecem a audição das marcas deixadas pelas tiranias que massacram o homem, e que meus pais não conseguiram ouvir, pois eram aturdidos pelo sistema.

Nossos ídolos tampouco são os mesmos. Meu pai adora dinheiro. Pelo teatro abandonei o caminho do capital, e carreguei os senões de boa-vida, idealista, ingênuo, irresponsável. O teatro fez com que o dinheiro se tornasse para mim o que penso que é: papel que os adultos usam para brincar de troca-troca em um jogo onde se troca papel por coisas, e ganha aquele que tiver mais coisas ou mais papel, sem questionar se a coisa é mais valiosa que o papel; o que se sabe é que nesse jogo, um papel de dinheiro sempre valerá mais do que o papel que carrega um poema.

A opção do teatro me distanciou do destino traçado pela sociedade – um destino que seria lindo, contudo, não necessariamente meu. Outro caminho, para além das coisas que se aprendem nos livros. Não fui engenheiro civil, nem nada do que é necessário ser para ser alguém na vida. Fui o que meus passos trilharam sem saber o que trilhavam, flutuando no abismo da existência, guiado pelo ideal da transformação, do novo, da vida na terceira margem, da esperança de um mundo melhor para todos, mesmo sabendo que não tinha capacidade nem para organizar meu próprio mundo.

A essa altura você deve estar me achando um sonhador, e sabemos que viver é melhor que sonhar, sim. Mas seria possível viver e sonhar ao mesmo tempo? É essa a opção do artista. Enquanto a vida vai se consolidando como injusta posso sonhá-la justa, motor para que meus atos tentem transformá-la em justiça. É uma equação tola, mas todo artista é um tolo. Tolo é aquele que resolve viver além do posto, e não transigir com as sedutoras artimanhas do estabelecido. O que está posto, posto está. O que há além do posto, diz muito mais da vida do que a gasolina que gastamos para chegar até lá.

Não quero lhe falar do meu grande amor, porém, não fosse o teatro, não teria conhecido a Katia, minha esposa, minha produtora, minha companheira de grupo; a parceira improvável que merecia o engenheiro, o fazendeiro rico, o empresário de sucesso. Improvável porque é pouco provável suportar um Marcelo por mais de um ano, portanto, suportar um Marcelo artista por mais de vinte é tão improvável quanto ganhar na Mega-Sena. Logo, a opção que fiz pela vida que tenho conseguiu a façanha de me fazer ganhar na Mega-Sena.

A intenção desta postagem não é lhe contar como eu vivi, apenas pontuar o quanto as nossas opções na vida dizem de nós mesmos. O quanto estamos carregados de ancestralidade e o quanto podemos alterar do nosso futuro. O quanto somos ditados por forças sociais e o quão cordeirinhos inocentes somos ao acharmo-nos artistas que podemos mudar o mundo. A intenção é perceber que por termos feito tudo o que fizemos, podemos ser nós mesmos, e não necessariamente viver como os nossos pais.

Mesmo no que se refere ao sentido de descendência, tudo pode ser diferente. Eu nunca quis ter filhos biológicos, nem fiz pela Morgana – essa moça linda que enfeita a foto acima – trinta por cento do que um pai faria por uma filha, e mesmo assim, ela me considera como um pai. Em termos de paternidade, não posso me queixar, o teatro deu um nó na minha existência e tive a filha que não planejei e o amor que não mereço.

Tudo pelo avesso. Tudo atravessado. Uma trilha na contramão. Uma íngreme, sinuosa, argilosa trilha construída além dos preceitos sociais, sistêmicos, econômicos; e sou tolo ao ponto de achar que isso é verdade. E é o descompromisso com o ridículo, o destemor da burla, a imunidade à chacota que me permite ser eu mesmo, o não planejado, o desgovernado, o idiota. Portanto, hoje, do alto da minha tolice, e atravessada a maior parte do caminho, posso afirmar, sem receio: eles não venceram, nem vencerão, jamais.

domingo, 30 de julho de 2017

Afetos como antenas de comunicação


Desde ontem aportamos em Mossoró, após concluirmos a ocupação do Centro Cultural BNB de Fortaleza, durante as últimas duas semanas. A partir de agora cumpriremos uma jornada afetiva, que preambulei na postagem Antenas para os afetos e que agora desenvolvo. Estamos com a oficina sobre o  Quadro de Antagônicos, ontem e hoje; apresentaremos Velhos caem do céu como canivetes, na terça, 19h30, no Teatro Municipal Dix-Huit Rosado, e na quinta, 20h, nos apresentaremos em Natal, no barracão dos Clowns.
Como venho ressaltando em quase todas as últimas postagens deste blog, o futuro do teatro de grupo no país está fadado a retroceder trinta anos, capitaneado por um desmonte estrutural e um desmanche sistemático de tudo aquilo que o Ministério da Cultura se tornou na última década; obrigando os grupos a desenvolver estratégias outras para garantir a sua produção artística, fundamental para a sobrevivência do pensamento autônomo brasileiro.
Uma das apostas da Pequena Companhia de Teatro para confrontar essa perversa realidades são os afetos. Explico: nossa ocupação em Fortaleza foi patrocinada pelo BNB, por consequência, o maior custo de produção já está pago, que compreende o deslocamento da equipe e cenário, e na atual conjuntura, a possibilidade desse mesmo espetáculo se apresentar em Mossoró e Natal é mínima. Como temos uma enorme relação com essas cidades, e achamos fundamental que conheçam esse trabalho, resolvemos abrir mão de um cachê mínimo por apresentação e estender nossa jornada até as duas cidades, no peito e na raça, sabendo que, por logística de espaço e número de apresentações, não teremos nenhum tipo de retorno financeiro, a não ser para pagar os custos; vamos porque queremos que essas cidades vejam o espetáculo; faremos isso por afeto.
Da mesma maneira, e principalmente, quem nos recebe aporta com uma parcela incomensurável de afeto, concentrada na Cia. A Máscara de Teatro – com o apoio da prefeitura, e diversos outros parceiros –, em Mossoró, e nos Clowns de Shakespeare, Arlindo Bezerra e Chrystian Saboya, em Natal. Ou seja, uma soma de afetos provindos dos mais recônditos labirintos das nossas amizades possibilitará que as comunidades de Mossoró e Natal assistam a um espetáculo que não chegaria a elas se dependesse de políticas públicas para a circulação do pensamento dos grupos de teatro de pesquisa pelo país – instrumento basilar para a formação de cidadania e para a materialização identitária do ser brasileiro. 

São estratégias heterodoxas, táticas de guerrilha, maluquice de artista, nada ideal, nada leves, mas necessárias para confrontar uma realidade que busca aniquilar o nosso pensamento e as nossas ações. Enquanto um pensamento comum que contemple o teatro de grupo de todo o país não emergir, vamos executando pequena ações, trilhando novos caminhos, pensando em como marcar nossa realidade com a resistência que nos identifica; e o nosso primeiro e principal instrumento para isso é o afeto.
Ver o esforço descomunal da Cia. A Máscara de Teatro para que a empreitada seja possível faz valer cada gota de suor do nosso esforço e cada centavo perdido, pois é bom que se enfatize que tanto nós quanto cada um dos nossos parceiros nesta maluca campanha estão trabalhando praticamente de graça – e uso a Máscara como exemplo de todos os outros queridos amigos que tornaram viável a nossa ida. Fazemos porque acreditamos que o rastro deixado por nossas ações fertiliza o solo árido de hoje, preparando uma colheita digna para os que virão. 

São essas lógicas excêntricas que precisam ser praticadas pelos grupos do país na busca de formatar estratégias fora da curva, que possibilitem a nossa caminhada até atravessar o tenebroso inverno que o país vive. Os longos papos com o Nelson, do Pavilhão da Magnólia – grupo querido que não mediu esforços e nos brindou com um caminhão de afetividade em Fortaleza, tornando nossa estada viva e pulsante – convergiram para esse pensamento: precisamos uns dos outros, muito além das estruturas mercadológicas que o sistema tenta impor para um setor tão efêmero e imaterial quanto o teatro. 
Afetos. Antenas para os afetos. Vale a pena carregar o peso dos cases, enlonar o reboque e dirigir por horas a fio se nos recebem os braços abertos dos nossos queridos amigos. Vale o esforço, vale o cansaço, vale o foco na desambição; vale a pena saber que estamos fazendo a nossa parte, contribuindo com um grãozinho de areia para que este país seja um pouco menos capital e um pouco mais humano.

domingo, 23 de julho de 2017

O indelével efeito da invisibilidade


Depois dos mil quilômetros de estrada, e da alegria singular com que o Grupo Pavilhão da Magnólia nos recebeu, já se passaram seis dias e chegamos à metade da nossa ocupação do Centro Cultural BNB de Fortaleza, concluindo a oficina de dramaturgia, três apresentações de Velhos caem do céu como canivetes e seus respectivos debates, a exposição do figurino que o Chico Coimbra fez para a performance Literatura Viva e o lançamento do meu livro.
Nosso projeto de ocupação dialoga diretamente com a atual conjuntura cultural brasileira, no que tange a dificuldades, desafios, superações, e a urgente necessidade de desenvolver estratégias de gestão e sustentabilidade. Prova disso foi o nosso deslocamento por via terrestre – de carro e reboque –; a assimilação progressiva da aridez do espaço de apresentação, pouco propício para espetáculos de teatro; o ajuste no orçamento, procurando realizar o maior número de atividades no menor espaço de tempo; e a extensão da jornada para outras paragens, tema da postagem de domingo que vem.
O momento é de observância, prontidão e diálogo. E é no diálogo que percebemos o escárnio com que os poderes públicos estadual e municipal tratam os grupos de teatro de pesquisa do Maranhão e de São Luís – não vou falar do poder público federal porque, além de não mais existir, venho reiterando esse desmonte constantemente nas postagens anteriores. Em diálogo com os queridos amigos do Pavilhão, fiquei estupefato com o número de instrumentos de políticas públicas estaduais e municipais que contemplam os grupos de teatro do estado: editais de ocupação de espaços, de manutenção de grupos, de pesquisa continuada; são tantos e tão variados que não conseguiria quantificar nem qualificar, pois me foi impossível reter em uma conversa a diversidade de opções e ofertas que protegem o pensamento teatral e sua difusão no estado do Ceará. O curioso é que a classe continua a reivindicar e exige uma atenção permanente, certos de que o que está posto ainda não é o suficiente para garantir uma política pública cultural de qualidade para o teatro de grupo.
Fiquei assombrado. Levando em consideração que a Pequena Companhia de Teatro, nos seus 11 anos de trajetória, nunca recebeu do governo estadual ou municipal um único aceno, seja ele por qualquer instrumento de democratização de políticas culturais que não sejam as famigeradas leis de incentivo – que bem sabemos são um equívoco, e vêm sendo questionadas em todo o país há mais de duas décadas – me fez enxergar o óbvio: o quanto estamos distantes de um mínimo de dignidade. Lembrado que falo de dentro de um grupo que já circulou por 67 cidades de 25 estados, participou dos principais projetos de circulação do país, montou 4 espetáculos, ganhou 4 prêmios Myriam Muniz de Teatro e tem sede própria viável com os mais diversos projetos de formação e difusão; o que dirá um grupo jovem que pretende se firmar no seu fazer? Por essa década passaram prefeitos e governadores de todos os tipos e a receita sempre foi a mesma, ignorar, como já falei aqui.
É lamentável. Confesso a vocês que preferia não ter tido a conversa com o pessoal do Pavilhão. Preferia continuar achando que os outros estados estão tão lascados quanto nós, no que se refere a garantir um mínimo de dignidade para um setor que é responsável por auxiliar a manter viva a dignidade humana.
Isso reforça o nosso atual e árduo caminho: aguçar a visão estratégia, refletir sobre sustentabilidade, alargar o diálogo com o país, estabelecer parcerias, reivindicar o óbvio; pois sabemos, há mais de uma década, que no que se refere a políticas públicas municipais e estaduais, estamos sós.
Claro que não poderia deixar de fazer aqui o mea-culpa: se o estado do Ceará e Fortaleza têm esse olhar para o teatro de grupo foi por uma permanente vigilância da classe artística local, por lutas reivindicatórias constantes, por um poder de enfrentamento respeitável, por uma disposição para o confronto, por uma consciência de união entre os diferentes quando necessário, por uma classe que entende que se não for na bruta, o respeito para com a arte não acontece.
Nesse sentido, pouco fiz. Sempre acreditei que se estabelecêssemos um trabalho sério, honesto, comprometido, bastaria para que o poder público percebesse que a nossa invisibilidade corrobora significativamente para a formação de cidadania, e, por consequência, para o próprio governo, mesmo que a nossa intenção seja apenas contribuir para o desenvolvimento do nosso estado. Doce ilusão. A história prova que o caminho das conquistas são o confronto e a reivindicação.
A única vantagem é que nada muda. Como nunca tivemos políticas públicas culturais, tudo continua como sempre foi, e como era quando decidi que viveria de teatro, nem que fosse na marra, quase trinta anos atrás, independentemente do político da vez. Só faço teatro porque não entendo o mundo.

domingo, 16 de julho de 2017

Acordei de bom humor após sonhos intranquilos


Hoje faço um bate-e-volta para o Rio de Janeiro, participar de um debate sobre o SESC Dramaturgias, que será transmitido amanhã, às 14h30, por videoconferência para todo o país, pois na terça, bem cedinho, pego o volante da Pequena Móvel, e rumaremos para Fortaleza cumprir com a nossa agenda de ocupação do CCBNB destrinchada nesta postagem aqui.
Como vamos bater um papo sobre a experiência em participar do projeto a partir da oficina de escrita dramatúrgica que ministrei em Caxias/MA, Vitória/ES e Maceió/AL, antecipo o meu balanço para instrumentalizar os queridos leitores que por ventura vierem a acompanhar o debate em alguma das unidades regionais do SESC para onde a videoconferência será transmitida. 
Assentarei a provocação naquilo que motivou minha proposta para o SESC e que vem sendo discutida aqui no blog: o excesso de narrativização do teatro contemporâneo. Esse assunto pontuou permanentemente o diálogo com as pessoas que participaram das oficinas, e gerou uma inquietação quanto à necessidade de discutir o fato e entender o que esse sintoma da contemporaneidade tenta nos dizer. Como penso que será necessário me debruçar em outra postagem sobre o assunto após ruminar a colheita das réplicas e tréplicas que recebi, não aprofundarei esse mote hoje; todavia, o conteúdo da problematização está escondido na palavrinha que aparece em vermelho neste parágrafo, é só clicar para abrir a Caixa de Pandora.
Debruçar-me-ei sobre quatro pontos que considero cruciais na experiência vivida, dois negativos e dois positivos. Começarei pelos negativos, para dar tempo de diluir meu azedume, fazendo com que o ledor termine a leitura com uma imagem menos ranzinza deste ranheta contumaz que tanto reclama.
O primeiro ponto negativo é que meu Henrique é sem H... Era para ser uma piada; se você não riu, é a prova patente de que você é tão ranheta quanto eu. O segundo, e aqui ressalvo abordar o tema em termos gerais, não sendo generosos com as situações que fugiram à regra, percebi uma dificuldade do SESC em conseguir adequar a clientela da oficina para o recorte mais específico sugerido pela oferta, desnivelando a possibilidade de aproveitamento por parte das pessoas atendidas pela ação; fiquei com a sensação de que pessoas outras, que respondessem mais organicamente às especificidades, pudessem ter ficado de fora não por indiferença, por desaviso.
Já os pontos positivos foram apenas confirmados, pois haviam sido levantados como suspeitas em postagens anteriores que nem vou lincar, por saber que você não se dará o trabalho de clicar. O primeiro diz respeito ao cuidado do SESC em viabilizar uma carga horária significativa, 32h – tendo em vista que uma disciplina acadêmica gira entre 40 e 60 horas, disponibilizar uma atividade formativa com essa extensão comprova o compromisso do SESC com o aprofundamento do estudo das múltiplas dramaturgias postas hoje. Não é muito comum atividades formativas receberem essa atenção quanto ao tempo necessário para que uma facilitação seja realizada largamente, possibilitando ao participante um debruçar-se efetivo, contrapondo-se a certa superficialidade que permeia projetos que incluem formação, inclusive nossos.
A segunda, e que a edição deste ano traz como novidade, é a possibilidade de a oficina ser ministrada em dois momentos, com um intervalo de tempo importante entre os dois. Esse acertado formato possibilitou o confronto entre teoria e prática. Aquilo que fora postulado no primeiro encontro, recebera um outro momento para a verificação das postulações no tête-à-tête com o postulante, arremessando oficineiros e oficinados em um delicioso jogo dialético, repleto de comprovações, antíteses, problemas, réplicas, contradições, esclarecimentos, teses, tréplicas, abraçados pelo empenho na busca da síntese, tão esquecida nas tratativas dialéticas contemporâneas, principalmente virtuais.
No trinchinchim, minha experiência aponta para algo que vem sendo pontuado por onde passo, nas quase setenta cidades que visitei nos últimos anos com diversos projetos: o fato de o SESC ser um ocupador potente da lacuna que as políticas públicas culturais do país não conseguiram preencher, e que agora, na atual conjuntura política de desmonte e desmanche, será alargada até virar uma grande vala onde será sepultada a cultura brasileira.
São apenas umas pitadas de tempero que jogo por cima, para marinar o papo que acontecerá amanhã, e que você poderá acompanhar, se tiver disposição para dar um pulinho na unidade do SESC da cidade que você habita. Como frequentemente faço jejum, chegarei para o debate com fome, e espero que as questões levantadas por você, meu intrépido leitor fantasma, saciem este faminto prosador de inutilidades.