Não somos os mesmos, nem
vivemos como os nossos pais. Culpa do teatro. Se existe algo neste quase meio
século de vida que me faz sentir orgulho é isso. Ressalvas à vida que meus pais
levaram? Não, apenas a viva constatação de ter traçado o meu caminho, e por
consequência, vivido a trama que o teatro e seus quiproquós prepararam para mim.
Uma vida pautada pelo abrir e fechar de cortinas, mesmo quando as cortinas
estão ausentes, e o balanço do tempo é dado pela espera da próxima
apresentação.
Essa opção não trouxe uma
vida mais amena, nem farta, nem segura, nem tranquila; trouxe a vida da
incerteza, da provocação permanente, do chacoalho constante, do estado de
alerta, da destituição da zona de conforto, do descompasso entre realidade e
ficção; aparelhos para a surdez humana, que favorecem a audição das marcas
deixadas pelas tiranias que massacram o homem, e que meus pais não conseguiram
ouvir, pois eram aturdidos pelo sistema.
Nossos ídolos tampouco são
os mesmos. Meu pai adora dinheiro. Pelo teatro abandonei o caminho do capital,
e carreguei os senões de boa-vida, idealista, ingênuo, irresponsável. O teatro
fez com que o dinheiro se tornasse para mim o que penso que é: papel que os
adultos usam para brincar de troca-troca em um jogo onde se troca papel por
coisas, e ganha aquele que tiver mais coisas ou mais papel, sem questionar se a
coisa é mais valiosa que o papel; o que se sabe é que nesse jogo, um papel de
dinheiro sempre valerá mais do que o papel que carrega um poema.
A opção do teatro me
distanciou do destino traçado pela sociedade – um destino que seria lindo,
contudo, não necessariamente meu. Outro caminho, para além das coisas que se
aprendem nos livros. Não fui engenheiro civil, nem nada do que é necessário ser
para ser alguém na vida. Fui o que meus passos trilharam sem saber o que
trilhavam, flutuando no abismo da existência, guiado pelo ideal da
transformação, do novo, da vida na terceira margem, da esperança de um mundo
melhor para todos, mesmo sabendo que não tinha capacidade nem para organizar
meu próprio mundo.
A essa altura você deve
estar me achando um sonhador, e sabemos que viver é melhor que sonhar, sim. Mas
seria possível viver e sonhar ao mesmo tempo? É essa a opção do artista. Enquanto
a vida vai se consolidando como injusta posso sonhá-la justa, motor para que meus
atos tentem transformá-la em justiça. É uma equação tola, mas todo artista é um
tolo. Tolo é aquele que resolve viver além do posto, e não transigir com as
sedutoras artimanhas do estabelecido. O que está posto, posto está. O que há
além do posto, diz muito mais da vida do que a gasolina que gastamos para
chegar até lá.
Não quero lhe falar do meu
grande amor, porém, não fosse o teatro, não teria conhecido a Katia, minha esposa,
minha produtora, minha companheira de grupo; a parceira improvável que merecia
o engenheiro, o fazendeiro rico, o empresário de sucesso. Improvável porque é
pouco provável suportar um Marcelo por mais de um ano, portanto, suportar um
Marcelo artista por mais de vinte é tão improvável quanto ganhar na Mega-Sena. Logo,
a opção que fiz pela vida que tenho conseguiu a façanha de me fazer ganhar na Mega-Sena.
A intenção desta postagem
não é lhe contar como eu vivi, apenas pontuar o quanto as nossas opções na vida
dizem de nós mesmos. O quanto estamos carregados de ancestralidade e o quanto
podemos alterar do nosso futuro. O quanto somos ditados por forças sociais e o
quão cordeirinhos inocentes somos ao acharmo-nos artistas que podemos mudar o
mundo. A intenção é perceber que por termos feito tudo o que fizemos, podemos
ser nós mesmos, e não necessariamente viver como os nossos pais.
Mesmo no que se refere ao
sentido de descendência, tudo pode ser diferente. Eu nunca quis ter filhos
biológicos, nem fiz pela Morgana – essa moça linda que enfeita a foto acima –
trinta por cento do que um pai faria por uma filha, e mesmo assim, ela me
considera como um pai. Em termos de paternidade, não posso me queixar, o teatro
deu um nó na minha existência e tive a filha que não planejei e o amor que não
mereço.
Tudo pelo avesso. Tudo
atravessado. Uma trilha na contramão. Uma íngreme, sinuosa, argilosa trilha
construída além dos preceitos sociais, sistêmicos, econômicos; e sou tolo ao
ponto de achar que isso é verdade. E é o descompromisso com o ridículo, o
destemor da burla, a imunidade à chacota que me permite ser eu mesmo, o não
planejado, o desgovernado, o idiota. Portanto, hoje, do alto da minha tolice, e
atravessada a maior parte do caminho, posso afirmar, sem receio: eles não
venceram, nem vencerão, jamais.
8 comentários:
Lágrimas...
Feliz Dia...texto arrebatador. E vamos seguindo na contramão. Que riqueza...amo
Emocionada... Que beleza de existência!
Andreilson, Luciana, Ricarda! Obrigado pelas palavras! E vamos!
Hoje ao visitar a página do Teatro e dar uma olhada na programação fui até o seu blog e encontrei este seu belo texto "Como nossos pais" com o qual muito me identifiquei e me emocionei. A humanidade, definitivamente, não está perdida. Muito grato em mostrar a sua.
Poxa, Danilo! É tão bom ver reverberar este nosso singelo excercício de reflexão permanente a que nos propomos aqui! Obrigado, e apareça mais!
Como não se emocionar com um texto desses? Nossas escolhas determinam o que somos realmente e ser artistas é uma profissão de doação, mas também capaz de exercer todas as outras profissões numa só pessoa. Quando se atua podemos ser médico, advogado, professor ou mendigo...
( jeyzon Leonardo)
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