domingo, 30 de junho de 2013

Ensaio sobre os ensaios


 
A melhor pessoa do mundo é a primeira pessoa do plural: nós. O teatro é a arte do encontro – sei que algo parecido já foi literatizado. É uma arte coletiva, feita de partes, de pares.  Teatro é o conjunto, a união, a tessitura e o todo. Tenho o privilégio de trabalhar com Jorge e Cláudio. De Katia já falei aqui. Atores íntegros, comprometidos, conscientes. Seres que transformam um coletivo em algo que excede o agrupamento de artistas com objetivos comuns. Amigos, por excelência. Essas características peculiares da nossa reunião reverberam na totalidade da obra, porque os ensaios são a espinha dorsal do nosso processo, do que se pretende, da energia e força para buscar o que se quer. É no ensaio que tudo se apresenta, se desenha, se efetiva ou apodrece. Qualquer preconcepção vira argila nas mãos das personagens.  Ideias flutuam para outras concretudes, problemas viram verdadeiras epifanias, tornando as pedras do caminho matéria-prima para a construção do que se quer. Os ensaios de Velhos Caem do Céu como Canivetes não podiam estar melhores: vida pulsante na sala de ensaio da nova sede. Vigor, disposição, foco. Claro que o início da Terceira Jornada não nos possibilita arremessar ao longe um resultado, mas vejo o Ser Humano e o Ser Alado habitando a sala de ensaios, povoando nosso imaginário, construindo o elo com o espectador, dimensionando o conflito entre personagens ímpares. Ainda não sabemos bem onde estão ou como são, mas sabemos que estão lá. Sejam bem-vindos.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Perfil

Foto de Marcelo F.
Quando selecionamos o antagônico-guia para a personagem e a partir de então nos exercitamos nessa opção, o corpo vai se moldando de acordo com as exigências da escolha. Esse corpo modelado chamamos de perfil. Assim, estamos na fase de modelagem do perfil, em que o antagônico-guia é exigido a provar se é forte o suficiente para as situações/movimentos que as outras dramaturgias exigem. Quanto mais o tempo passa, mais constato que o perfil se formaliza no movimento, que mesmo com o corpo em não-movimento, a sensação da energia no espaço permanece. O corpo é inteligente e vai se formalizando, alterando o seu estado. Corpo expressivo, extra-cotidiano, pulsante, vivo, acrescentando significados, modificando formas. Momento de criação. Se o ator está disponível funciona como uma grande brincadeira, um jogo em que as regras mais ampliam do que limitam. Há prazer no que fazemos.

domingo, 23 de junho de 2013

Condição ou profissão?

 
O querido amigo virtual Alberto Júnior me tuitou perguntando (pois é, tenho Twitter e você nem sabia): ser artista é uma condição ou profissão? A resposta imediata que me veio à cabeça foi: uma condição que exige profissão. Uma condição porque ser artista vai muito além do ofício. A visceralidade da arte rompe a barreira do tempo, do ponto, do horário, do protocolo social, da equação entre desempenho e remuneração, da hierarquia, da jornada de trabalho, dessa série de fatores organizacionais que qualquer profissão demanda e que vão de encontro ao caos criativo necessário para a produção artística. No entanto, para ser artista, a contemporaneidade exige um profissionalismo capital que demanda, do romântico modelo marginal de artistas do passado, um enquadramento e rigor de produção, sob pena de ser massacrado pela produção medíocre, porém, abundante do melhor artista da semana.
 
Foto de Katia Lopes, média de Marcelo Flecha
 
 Muito prólogo para pouco tema. Sempre que começamos um novo processo de montagem a lógica do meu tempo desaparece. Minha relação com Velhos caem do céu como canivetes não respeita nem a Katia, pessoa com a qual me relaciono muito antes do espetáculo aparecer. Livro de ponto é estar acordado. No máximo, restam-se as refeições. E não faço isso propositalmente nem por pressão de produção. Não consigo fazer diferente. Se eu gastasse esse tempo para fazer algo útil seria milionário. Protocolo social de teatro é ensaio. É quando vejo gente. Jorge e Cláudio. Jornada de trabalho é metáfora para escravidão. Parece uma reclamação, mas não é. É minha condição. É assim que acontece comigo. Sou tomado por uma sensação de satisfação que me mantem em um estado permanente de vigília criativa, e mesmo assim nem sempre funciona. Fiz muitas piores coisas do que as mínimas melhores. Contudo, é dessa maneira que acontece. Da hora que acordo ao desabamento. Claro que isso merece uma reflexão, mas, felizmente, meu pensamento está comprometido com o espetáculo. Por enquanto, pensar fora da cena é desperdício.

domingo, 16 de junho de 2013

Manifesto antropomórfico

 

Fazer teatro é fazer política. É entender e questionar, ao mesmo tempo, o mundo em que se vive, seus abismos e fronteiras. Sim, porque se não há um abismo que impeça nossa passagem haverá uma fronteira para nos impedir. O teatro não deve pedir passagem, ele deve arrombar as porteiras e destruir os muros da intolerância, do preconceito, da pasteurização, da condescendência com a mediocridade, do cinismo, da desilusão. Veja que o verbo usado é “dever”, e não “poder”. O teatro não pode se dar ao luxo de escolher se agora ou daqui a pouco, ele deve ser sempre o instrumento transgressor que todo conservador abomina. Estou cansado de ver o teatro ser usado como instrumento multiplicador dessas mesmas coisas que deveria combater. Política. Mesmo que você não saiba, se você está fazendo teatro está fazendo política. Está tomando uma posição, mesmo sem saber. Está construindo ou destruindo, mesmo sem ter consciência disso. Se você faz teatro você está dizendo se a miséria é uma provação de deus ou se é escrotidão humana. Se você faz teatro você está dizendo se homo sapiens, homossexual, homonímia ou homofóbico. Se você faz teatro você está marcando um posicionamento perante a sociedade, desqualificando o inqualificável ou desobedecendo a métrica. Se você faz teatro você está, mesmo que não tenha o menor conhecimento disso, discutindo religião, arte, futebol, gênero, economia, opressão ou o sexo dos anjos. Portanto, tenha mais cuidado com a forma como você trata o teatro.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

É só impressão

Foto de André Lucap
De certo que nada existe de novo, de inédito. Tentamos remendar, reorganizar o pensamento e as coisas. Assim é o mundo a partir de nossa insatisfação. 

Quando a história do autor é contada pelos livros, a do pintor o é pelas suas telas - qualquer artista é reconhecido por sua obra.

Conceituar artista e obra o tempo dita. Se se conhece a obra em construção de um artista contemporâneo é porque se gosta e acompanha sua trajetória. O contrário disso é a satisfação ou desapontamento pelo recorte. 

Estamos fazendo história quando percebemos que é o segundo espetáculo em que eu e Jorge C. contracenamos. Queremos chegar a um número que satisfaça aos quatro membros da Pequena. Esse é o jogo. O céu continua a ser o limite. 

O passo de hoje foi a definição do antagônico-guia das personagens. A partir de segunda seguimos com a jornada dramatúrgica dos atores. Contaremos nossa história para aqueles que quererão acompanhá-la.

domingo, 9 de junho de 2013

Velhos e a estética do feio

A montagem de Velhos caem do céu como canivetes vem possibilitando o aprofundamento no que se denominou anteriormente aqui como a estética do feio. O desafio está em não tornar o feio bonito, e sim, mantê-lo feio e interessante. Explico: o Ser Humano, anti-herói do novo espetáculo, é um catador de lixo e pretenso artista plástico, medíocre e frustrado. A qualidade estética do espetáculo deverá ou deveria acompanhar essa premissa sem escorregar para um abrandamento estético que dilua seu estranhamento e favoreça a aceitação visual do olhar padronizado – olhar acostumado à admiração do belo e à censura do feio. O resultado precisa estar no limiar desse paradigma, deslocando o olhar do espectador para um lugar novo, onde o visto reverbere no humano ser, sem o apelo insípido do belo. Contudo, a encenação deve também oferecer uma unidade estética que potencialize as três dramaturgias que costumamos chamar de capitais, oriundas do tripé autor → ator ← encenador. Para tal, a obviedade de um caleidoscópio sujo, gritante e desconexo apresentaria um resultado meramente estético e de pouco valor dramatológico. Limiar. Essa é a palavra. O difícil trânsito pelo limite, pela beira, pela borda, pela margem. Difícil tarefa. Como todas são quando o tratado é o ato teatral. Afinal, teorias e ladainhas à parte, o que você quer ver é um bom espetáculo.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Bufão

O grande dilema entre o que querem que você seja, o que você é; o que você aceita e o que rejeita, renega.

Do que somos feitos? O que queremos? Os prazeres? 

Semana de resguardo em detrimento de mudanças climáticas mundanas. Desfaz-se o jogo e recomeça a vida. A roda da fortuna, diriam. A garganta inflamada lê a notícia de que Michael Douglas  nega que atribuiu câncer a sexo. É preciso assistir ao Faroeste Caboclo para me sentir melhor. Uma outra viagem e sem alucinógenos e o corpo distante dos abraços e beijos. Processos são assim. Em dado momento, imersão; em outros, distração.

domingo, 2 de junho de 2013

Procedimento de montagem – As Jornadas


Estamos perto de finalizar a Segunda Jornada do processo de montagem do espetáculo Velhos Caem do Céu como Canivetes.
 
Na Primeira Jornada, que chamamos de Pré-expressiva, utilizamos o Quadro de Antagônicos para o aprimoramento do ator, visando o alargamento do seu repertório sem nenhum compromisso com a nova encenação. É um período de investigação e experimentação corpórea, que não tem por objetivo o desenvolvimento de parâmetros expressivos, e sim a percepção da totalidade do corpo, seu funcionamento, suas extensões e limites. Momento de treinamento por excelência.
 
 
Na Segunda Jornada, que chamamos de Expressiva, nos valemos do mesmo instrumento, porém, com outro foco, a expressividade. O Quadro de Antagônicos é operado na busca da construção das personagens, através de experimentações físico-rítmico-energéticas. Os atores buscam os perfis das personagens a serem construídas através do experimento e descarte de antagônicos, como Cláudio tratou aqui. Depois de quarenta ensaios o fim desta jornada se aproxima com bons sinais de expressividade para o Ser Alado e o Ser Humano.
 
 
Das duas jornadas anteriores procede a última, denominada  Jornada Dramatúrgica. As personagens passam a experimentar seus perfis e a aumentar a produção de dramaturgia atoral – que inclui a construção da cena através da experimentação no espaço de conflito. Nesta jornada soma-se o texto, que passa a ser inserido concomitantemente aos experimentos na busca de referências para a montagem. Aqui é exigida dos atores a maior potência criativa e creio ser a jornada mais prazerosa de todas, pois é dela que resulta a cena que você vê. Trocando em miúdos, é mais ou menos isso. Bem mais do que menos, se levarmos em conta as horas de trabalho, as gotas de suor e a inesgotável fonte de incertezas que habita qualquer nova encenação.