domingo, 19 de fevereiro de 2017

Parto sem dor, ou o dia em que um diretor de teatro decidiu tentar se divertir em vez de ficar medindo os centímetros entre o nada e coisa nenhuma



O melhor amigo do encenador é a cena, do ator a ação, do dramaturgo o drama, do figurinista a figura, do cenógrafo a cênica, do sonoplasta o sonido, do iluminador a luz. Quando esses se tornam um peso, há algum problema.

Há dias que um grande amigo insistiu em que devo me divertir mais. Não sei muito bem qual é o fundamento dessa opinião, mas devo admitir que a arte, para mim, nunca foi prazerosa. Como tudo o que emerge através dela vem de uma profunda insatisfação existencial com a forma como construímos o mundo e suas relações, é natural que a prática artística pese em mim como pedra. Contudo, de que maneira entender o crítico entorno, questioná-lo, e ainda assim extrair o prazer necessário para que o exercício artístico não seja um martírio? É o que venho me perguntando enquanto norteio os fundamentos do próximo espetáculo. Pretendo que entremos de cabeça nele quando, definitivamente, eu tenha conseguido solucionar essa equação.

Os caminhos parecem simples, se imaginarmos que o teatro não passa de uma grande aventura ilógica, jocosa e efêmera. O principal deles, que venho praticando desde a criação da Pequena, é a despretensão, por absoluta consciência da inutilidade da arte, e da certeza do pouco poder de transformação que dela emana. O problema é que atualmente isso já não basta. Como já falei aqui, num momento como o que vivemos é necessário imaginar, ou mesmo se iludir com a hipótese de que alguma coisa dita através do teatro seja transformadora ao ponto de fazer sentido. Mas, tudo isso é filosofia de botequim, e penso que o que meu amigo tentou tocar vai muito aquém da existência, e se refere aos pequenos prazeres da cena, do gesto, do movimento preciso, do vaivém dos objetos, das luzes, do suspiro no fim do ensaio.

Nesse caso, o problema consiste em não saber onde está o problema, ou se há um. A concepção e confecção de um espetáculo me é cara, me é prazerosa, mas devo admitir que, dirigida por mim, é sisuda. Sou demasiadamente sério para algo que no discurso é carregado de despretensão. Porém, desconfio que haja um caminho, e minha condição artística malfeita a me manter como permanente aprendiz, me possibilitaria o sopro da suspeita, se eu decidisse que sempre há tempo para se aventurar.

Precisaria aprender a me desprender. Exercitar o desapego. Esforçar-me em perceber que desenvolvi um sentido de posse sobre a obra artística na qual me envolvo que afeta o pleno sentido da arte; o de pairar livremente pela vida transformando aquele desprevenido que se defronta com sua força. O aprisionamento da obra imposto por mim – perdoem o dramático exagero – sufoca a sua trajetória e me confere a sisudez habitual à qual a abnegada leitora e o despegado leitor estão acostumados. Desapego. Diversão. Despretensão. Conferir à obra uma das suas principais funções: a de dançar com os seus criadores a fluida e divertida dança da concepção e confecção.

Como a transformação ocorrida em mim a partir de cada espetáculo criado é percebida pelos meus pares a olho nu, espero que a experiência desta nova aventura que se avizinha me devolva ao mundo leve e solto. Livre já seria um exagero.