Fotos de Ayrton Valle |
Por Kil Abreu*, em São Luís.
Ao assistir ao espetáculo da maranhense
Pequena Companhia de Teatro e ao olhar o entorno onde ela se inspira, a
impressão imediata é a de que a escolha dos materiais e as operações de
linguagem sobre eles como que criam um parangolé dramático talhado à medida pra
vesti-los. O conto de Gabriel Garcia Marquez (Um senhor muito velho com suas
asas enormes) oferece o tecido, a matéria primeira, mas a montagem é fruto de
motivos, modelos e técnicas intuídas pelo próprio grupo, de modo que mesmo
estando lá, e bem assimilada, a narrativa original dá lugar a uma obra nova, em
boa medida autônoma quanto aos seus argumentos.
O ser alado que cai no terreiro, um anjo
velho (mas imprestável para a metafísica), é parente mais novo do faquir de
Kafka (Um artista da fome), e dele empresta senão o mesmo destino ao menos a
trajetória. Como aquele, é criatura marcada por uma diferença fundamental, fora
do raio da compreensão ordinária (as asas, a origem ignorada, a sobrevivência
na contingência).
Na versão do encenador Marcelo Flecha
esta incongruência viva é acolhida por um miserável, um catador de lixo. E
daqui desdobra-se já o procedimento fundamental que dá ossatura à dramaturgia:
o anjo, que no conto do autor colombiano não diz palavra, aqui não só faz as
réplicas ao outro como também cria o espaço para um diálogo
político-existencial capaz de instaurar questões novas e de fazer as
aproximações que o grupo quer explorar tendo como medida sua própria realidade.
“E a consciência destes seres exilados, quando trágica, tem a ver com o atravessamento da liberdade pela certeza da finitude tanto quanto pela certeza sobre uma vida insuficiente”
Ao ceticismo e pessimismo de quem a
seiva das idealizações diante do mundo parece ter sido toda extraída
correspondem as provocações do outro, expressas em uma espécie de fé paradoxal
– porque instaurada não através da crença ou do dogma, mas através da dúvida e
de perguntas sobre o sentido do existir. Então, de García Márquez a Kafka e de
Kafka ao próprio grupo os caminhos tendem a encurtar-se. É que em qualquer caso
o que margeia, acidentalmente ou não, todas estas narrativas – inclusive a
atual, proposta pela Pequena Companhia – é a discussão da liberdade como lugar
problemático para onde convergem os enfrentamentos entre miséria e
transcendência, entre rotina e maravilhamento (para lembrar a ótima expressão
citada pela Beth Néspoli), entre enquadramento e possibilidades de criação.
Os pontos de vista das personagens, por
opostos que pareçam, se afunilam e se irmanam em uma condição semelhante. Esta
condição é a do exilado (a própria diferença, na própria história ou no próprio
lugar). E a consciência destes seres exilados, quando trágica, tem a ver com o
atravessamento da liberdade pela certeza da finitude tanto quanto pela certeza
sobre uma vida insuficiente. Consciência do abandono de Deus tanto quanto da
instalação de um mal terreno, que parece injusto e irrevogável. Por isso a
perspectiva de pertencimento é inócua, não faz diferença ao homem que não
sonha.
Partindo deste plano de pensamento, tão
irrevogavelmente niilista do início ao fim, a Pequena Companhia o desenvolve,
no entanto, através de uma dialética bem sustentada e cheia de nuances. E faz
dela o campo, o solo fértil para um teatro provocativo. A colheita é de
qualidade. A dramaturgia alinhavada por Marcelo Flecha traz um jogo cuidadoso e
fundo entre as réplicas. Cuidadoso no aspecto que mais interessa a uma arte da
síntese como o teatro: o diálogo entre os personagens não deixa sobras, tudo se
aproveita. É ótimo alicerce para a cena. As falas são inteligentes não porque
complexas, mas porque na aparente objetividade conseguem instaurar questões que
permanecem astuciosamente abertas, à espera das nossas (plateia) colaborações
íntimas para que se arredondem. Ao mesmo tempo trazem o desacordo necessário
para fazer com que as posições em jogo se movimentem de um ponto a outro, no
sentido da argumentação. O resultado é tão bom que o contraste fica evidente
nos poucos momentos em que uma ou outra ideia parece fugir ao universo das
personagens, expressando a voz do autor lateralmente ao conflito que está em
andamento.
No plano visual do espetáculo luz,
cenário e atuações ordenam-se em um mesmo movimento orgânico. Sob o argumento de que o agora catador de
latinhas tenha sido em algum momento da vida um artista plástico cria-se não só
o espaço para a discussão sobre a natureza e função da arte como também uma
ambientação em que os objetos são tão úteis quanto altamente simbólicos. E assim o plano particular da fábula faz a
liga com o contexto social e estético em que ela é agora atualizada. Por
exemplo, há uma significativa instalação com latas de Guaraná Jesus fazendo as
vezes da coluna central de sustentação do casebre; crucifixos estilizados
servem de lenha em um fogareiro no qual não há chamas, só luz. São
desdobramentos do plano cenográfico que cavam aqui e ali aberturas para novos
sentidos, a refazerem os significados do texto de García Márquez, colocando-o a
serviço de imaginário e circunstâncias locais.
O quadro plástico se completa no
trabalho dos atores (Jorge Choairy e Claudio Marconcine). É quando se pode
colocar em perspectiva a história recente do grupo e dizer que esta montagem de
agora reafirma, com excelência, o rigor já apontado em Pai e filho, o
espetáculo anterior. São atuações ‘construtivas’, decididamente erguidas no
trabalho minucioso da estilização dos gestos e das vozes, por fora de qualquer
concepção maneirista. Sem se deixar afundar no formalismo, a criação dos dois
intérpretes inventa humanidades complexas, em composições bem cortadas, postas
a serviço de uma dinâmica viva em sons, ritmos e deslocamentos que se totalizam
em um conjunto límpido quanto aos sentidos.
Se cruzarmos obra e contexto a impressão
que se tem – após observar minimamente as circunstâncias possíveis para o fazer
teatral em São Luis do Maranhão – é de que a Pequena Companhia vem traçando uma
trajetória por fora da ordem dada. A tomar por este Velhos caem do céu como
canivetes, trata-se de um milagre criativo, o que certamente não dispensa o
trabalho e o esforço, visíveis na fatura final do espetáculo. É um trabalho
maduro quanto ao resultado artístico tanto quanto no equilíbrio justo, difícil
de alcançar, entre forma e pensamento. De alguma maneira o grupo corrige com
potência, nos seus modos próprios, as condições nem sempre favoráveis para que
se mantenha de pé um teatro vivo.
*Jornalista, crítico e pesquisador do
teatro pós-graduado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Foi crítico
do jornal Folha de S.Paulo e da revista Bravo! Dirigiu o Departamento de
Teatros da Secretaria Municipal de Cultura/SP (2003/2004), onde gerenciou
alguns dos principais programas artísticos da cidade, como o Formação de
Público e o Programa Municipal de Fomento ao Teatro. Foi curador dos festivais
de Curitiba, Recife e Festival Internacional de Teatro de São José do Rio
Preto. Por dez anos foi professor e coordenador pedagógico da Escola Livre de
Teatro de Santo André e por oito jurado do Prêmio Shell/SP. É membro da Associação
Paulista de Críticos de Arte (APCA), curador no Centro Cultural São Paulo, e colaborador do Teatrojornal.
Mantém estudos sobre dramaturgia e teatro brasileiro contemporâneo.
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