domingo, 21 de agosto de 2016

Entretecendo a teia da revolução


Anteontem encerramos nossa participação no SESC Amazônia das Artes, e mês passado concluímos nossa circulação pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. A experiência de circular e suas consequências já foram postas aqui diversas vezes, sobre plurais pontos de observação. Todavia, em todos, a ressalva quanto a importância dessa deslocação permanente para que um grupo de teatro possa manter uma pulsação contundente, artística e financeira.

No decorrer dos últimos anos, precisamente treze, esse exercício foi possível graças a uma atenção específica por parte do governo federal, através dos mais diversos programas de fomento ao teatro, que culminou em um fortalecimento de coletivos teatrais palpável, reconhecível, admirável. Esse esforço conjunto, operado por estes dois atores – grupos e governo – possibilitou que plateias de todo o Brasil tivessem acesso ao teatro de todo o Brasil, experiência capital para o desenvolvimento de cidadania (o espectador conhece o país através dos dizeres apresentados por cada estado), para o fortalecimento do sentido de pertencimento (o país é nosso, e cada parte dele diz da nossa identidade) e para a redução dos preconceitos de classe, gênero, região, cor, religião etc.

Agora, o grave momento político vivido e os claros e daninhos caminhos sinalizados pelo Ministério da Cultura, me provocam a reflexão quanto a pouca atenção que foi dada por nós, grupos de teatro de todo o Brasil, para a consolidação de uma rede sólida de teatro que caminhasse paralelamente à esfera pública, e construísse condições de autonomia gerencial, formativa,  financeira – não cito a autonomia artístico-criativa porque creio que essa permaneceu imutável independentemente de qualquer tipo de pressão recebida. Inúmeras experiências aconteceram, com os mais diversos nomes, e semana passada, enquanto circulávamos, acontecia o III Congresso do Teatro Brasileiro, em Goiânia. Foi pouco. Para o poder que nos foi dado na última década, nossa articulação como atores políticos foi parca, e nossa ação de construção estrutural de inter-relações artísticas e sócio-político-econômicas foi tímida, por vezes, preguiçosa.

Nos foi dada a oportunidade de tecer uma teia indestrutível, onde o poder do intercâmbio, do conhecimento mútuo, da colaboração recíproca entre vinte e seis estados de um gigantesco país seria o principal instrumento de combate às arbitrariedades e desmandos de qualquer projeto político que atentasse contra o cidadão. Sei que muito foi feito (movimentos, ocupações, congressos, encontros, cartas, manifestações etc.), o que tento dizer é que, ainda assim, foi muito pouco, se comparado às condições dadas. Não soubemos entender o momento e acreditamos que poderíamos viver, permanentemente, em um estado minimamente justo. Doce ilusão.

Nos cabe alargar o tempo despendido, aprender com a experiência, e fortalecer essa teia com caminhos além das estratégias que usamos até aqui. Talvez o sinal esteja no passado, quando o único mecanismo que o teatro amador utilizava para não ser massacrado era nada mais do que um contar com o outro. No fim dos anos oitenta, o grupo Ger“ar-te”, de Balsas, sabia que o grupo “Oásis”, de Imperatriz, estava lá, e podia contar com ele.  Recebíamos inúmeros artistas em nossas casas para falar da vida, que é o que o teatro faz. Nós somos muitos e, hoje, fortes. Poderíamos ser mais, e quanto maior essa força, maior o poder para movimentar as estruturas que engessam o poder público e, por consequência, o país.

O que tento dizer é que o poder do enlaçamento, do emaranhado, da tessitura, do embrenhar-se, do enredamento, do ajuntamento foi subutilizado. A força de poder contar com centenas de grupos de teatro Brasil adentro para assentar a nossa independência foi subestimada. Nos apoiamos nos pequenos sinais dados para a construção de uma política pública cultural eficiente (editais, prêmios, fomentos, leis, bolsas etc.) e pouco usamos nosso principal apoio, o mosaico de grupos de teatro incrustados por todo o país. O que digo agora é: podem contar com a Pequena Companhia de Teatro para o diálogo, para a reflexão, para as discussões, para as manifestações, mas, também, para o colchonete no chão, para a divisão do pão, para a toalha limpa; podem contar conosco para conseguir chegar a um dos estados mais pobres do pais com seus discursos artísticos, estéticos, políticos, que são o esteio da revolução que o teatro pode promover através da capilarização dos seus dizeres.

Sim, é um mea-culpa o que faço aqui. Como artista, fiz muito pouco. Como grupo de teatro, fizemos muito pouco. Como já disse, tenho conhecimento de tudo o que foi conseguido, e reconheço nosso esforço para conquistar o que temos. Ccontudo, se você, grupo de teatro combatente, ativo, militante, não entende que tento lançar um olhar além das nossas conquistas, ou sua vaidade não permite reconhecer o que não foi feito, não vejo solução para dissipar a tempestade que se avizinha.

2 comentários:

Beth Néspoli disse...

Como argumento é perfeito, é o que tem de ser feito. Na prática, foi tentado muitas vezes. Acompanhei quatro dos encontros do Redemoinho, um movimento cujo intuito, na origem, era exatamente esse o que você diz, a formação de uma rede de apoio e intercâmbio artístico entre grupos de todo o Brasil. Foi uma experiência inesquecível, para mim, o compartilhamento das ideias, dos questionamentos, dos pontos de vista éticos e estéticos de artistas que eu só conhecia, quando conhecia, por suas obras. Em especial no primeiro encontro, que se deu na sede do Grupo Galpão, em Minas, passei a conhecer um pouco da história dos Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, do Imbuaça, de Sergipe. Não fui até Goiânia, mas o meu parceiro, editor do Teatrojornal - Leituras de Cena, Valmir Santos, foi até lá e publicamos um relato em nosso site. É torcer para que desta vez a rede só aumente e as convergências éticas e estéticas possam ser mais fortes do que as divergências ideológicas.

Marcelo Flecha disse...

É verdade, Beth. Infelizmente a prática não é tão eficiente quanto a nossa língua. Também participei de várias iniciativas, mas parece que a liga não se efetiva... Amanhã mesmo, estarei abrindo o NORTEA, que é um encontro de pesquisadores de teatro do Nordeste, no FestLuso, que é um festival de língua lusófona que acontece em Teresina, e vou abordar esse assunto. Eu li o artigo do Valmir, e fiquei bastante entusiasmado, de novo (risos). Como estávamos circulando não conseguimos estar presentes no congresso. Talvez a dificuldade (que certamente se acentuará) seja o caminho para entendermos o quão importante é esse suporte coletivo... como sou um romântico, sempre acredito que em um momento a coisa aconteça (risos). Mas você aponta o nó: as divergências ideológicas não poderiam afetar uma teia que pretende reunir convergências éticas e estéticas. Obrigado por seu olhar sempre lúcido. Abraço, querida!