domingo, 14 de abril de 2019

O Quadro de Antagônicos e a vida que segue


Dia primeiro de maio de 2019 estreia Ensaio sobre a memória, novo espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, com dramaturgia minha, a partir do conto La otra muerte, de Jorge Francisco Isidoro Luís Borges, com Tassia Dur, Katia Lopes, Lauande Aires e Cláudio Marconcine no elenco. Sem sombra de dúvida a montagem mais complexa, mais difícil, mais problemática, mais fragmentada, mais longa da trajetória da Pequena, e arrisco cravar, da minha carreira. De Velhos caem do céu como canivetes a este ensaio sobre os vaivéns da história e sua fraca memória, vão-se cinco anos e seis meses, o espaço mais longo entre montagens do nosso grupo, e arrisco... não, prefiro não arriscar; de riscos, já basta o teatro.
Ofício de riscos, mas nunca tão plenos quanto hoje. Esta não é uma montagem qualquer. Ela é construída de vazios, de ausências, de faltas, de angústias, de desalentos, de desânimos, de solidões, de borbotões, de borboletas, de botões, de tudo o que desanda e tudo o que confessa. É uma confissão para os novos tempos. É uma experiência desatada, uma garganta desenfreada, uma lacuna de confidências, uma desigualdade. É o diagnóstico do que se tem, a causa do que se provoca, e a cura do mal que não cabe em si. É dizer sim. Sim ao fazer, sim ao teatro, sim ao gesto, sim ao feto: nasça; ainda haverá teatro.
Esse meu preâmbulo rasgado, dilacerado, nada mais é do que um exórdio, um introito uma prefação: não diz nada. São só os acordes dos meus instrumentos de trabalho desafinados: o coração, o cérebro, o que resta deste corpo decrépito, e as mãos, que já não aguentam cortes, golpes, furos e ardores. Prelúdio para falar do que não quero falar: o impudor que um dizer pode ter no trato com métodos, formas, conceitos, procedimentos, amarras, gostos, gessos e estratégias.
Desde que esta montagem começou... minto, desde que o processo da dramaturgia fluiu, percebi que muito do que a Pequena Companhia de Teatro sedimentou como sendo seu patrimônio conceitual, seu arcabouço estruturante, não serviria para dar a retumbância poética e a potência que o nosso ensaio sobre uma memória historiada demandaria. O Quadro de Antagônicos, com seus procedimentos, rotinas e ritos, não seria aplicado com a disciplina, rigor e contundência que nossas encenações exigem, pois o instrumento não contemplava as demandas desta nova montagem.
Mas, como abrir mão de um trabalho, de uma pesquisa, de uma trajetória apenas pela necessidade de construir o ambiente necessário para um espetáculo? De onde extrair a coragem para usar o Quadro tangencialmente, perifericamente? Qual foi a minha surpresa ao constatar que a ruptura seria muito mais aguda do que o mais contemporâneo dos Marcelos Flechas poderia imaginar? Enquanto eu me digladiava com a ideia de abjurar um organismo que nos é tão caro, a cena já o havia feito sem a menor parcimônia, sem o menor constrangimento, sem a menor compostura. Me desconheço como encenador na montagem Ensaio sobre a memória. Não sei quem sou. Não sei que diretor fui. Não tenho registro de mim, do meu fazer. O ensaio me conduziu. Reformulei rotinas, diversas, no mesmo dia. Tudo foi tão urgente que me engoliu. Fui levado pelo grito da cena. Fui arrastado pela vicissitude dos milagres. Fui encorajado pela confiança no dito. Fui tragado pela agonia de correr o risco. Fui desabitado de mim, pela necessidade de pôr à mostra a falha terrível que pontua nosso presente: ser um país sem memória.
Mas este rompante, esta desconversa, pontua o principal imbróglio da não conversa que tento acentuar aqui: qual a dose de oxigenação certa para práticas acertadas, métodos estruturados, sistematizações pragmáticas? Não é mensurável para mim hoje, mas não sobrecarrego a ansiedade, já engordada pela própria natureza da fragilidade de quem lida com a criação artística. Sustenho a máxima que gera todo o meu fazer artístico desde que enveredei pela estéril arte do agora: tudo sempre está a reboque da obra de arte. É ela que demanda, que guia, que ordena, que exige, e por ela devemos sucumbir, surrupiar, abandonar, voltar, recorrer, surtar. Se a obra pede o exílio, exílio será. O desterro, desterrado. A clausura? Clausurado.
Contudo, essa extrusão, esse alvedrio, essa opção por abdicar do nosso método garante alguma coisa? Não. O que isso significa? Não sei. Talvez um espetáculo menor. Talvez um hiato, um interstício, uma terceira margem. Talvez uma desilusão para os puristas. Talvez mais um espetáculo honesto, feito por artistas honestos. Pouco importa. De certo, a seta: esse era o caminho a seguir, e ele urgia. Não titubeio quanto a essa opção, e por isso hoje falo em primeira pessoa, apesar de estar tratando do complexo experimento coletivo chamado teatro. Fui o responsável por essa opção, para espanto de alguns pares, conivência de mais de um, e decepção de outros.
Se esse spoiler – e você me vendia avelhantado e obsoleto – não te fizer correr para ser o primeiro da fila na estreia, parei contigo.

7 comentários:

Giba disse...

Querido amigo, pra variar sua crise nos deixa sempre a solidadrizar-se no esse esgarçar da sua/nossa existência, e por outro lado é apaixonante perceber que, honestamente, o querido irmão está a sempre se arriscar. Está sempre de viés e em um viés do desconforto, tal fundamental para a arte. Não estou a enaltecer a dor como necessária para a arte, como em tempos remotos se apregoava, pelo contrário, acho isso uma bobagem, mas sim o quão é quando você nos seus exercícios de expor parte do que se reparte, em um processo de criação, mergulha num revolto mar quase indecifrável. Seu relato é precioso. Seus riscos tão dolorosamente necessários, são motivos de parte de sua existência e o causa maior do seu fazer artístico. Se alguém teve o prazer de acompanhar essa trajetória, e sou um desses, orgulhosamente um desses, sabe que tudo isso é imensamente você, e é tanto, e é tão honesto, e é tão doloramente, e é tão arte, que sempre ficaremos no aguardo, prazerosamente e avexadamente no aguardo do seu próximo fazer/montagem, porque sabemos que nela reside aquilo que é sempre tão necessário e será sempre para a existência humana: a arte, que você sempre nos presenteia. Um grande cheiro do amigo-irmão... e se acalme caboclo... o meu coração é que é recauchutado.

Giba disse...

denecessárias erratas..., mas mesmo assim, por teimosia: no esse = nesse / tal fundamental = tão fundamental / o quão é quando você = o o quão você / e o causa = e a causa

Jacque disse...

O teatro é necessário. Avante.

Rodrigo França disse...

O iventivo se dá a partir dos obstáculos vislumbrados! Esse trabalho com um coletivo em cena maior que dois, para mim é algo novo na Pequeña que atiça a curiosidade e torna-se um manifesto político sobre o fazer teatral no Maranhão. Já sinto a coceirinha de ir ver!

Marcelo Flecha disse...

Meu caríssimo irmão Gilberto, homem de soltas alegorias. Como ler suas palavras ainda são o tempero para o destempero do meu coração angustiado. Aguardo, ansioso, por mais uma estreia como você na plateia. Saudades mil!

Marcelo Flecha disse...

Rodrigo querido! Estaremos juntos novamente, em outro arremessar-se ao vazio de uma estreia. Seu lugar é cativo. Saudades!

Marcelo Flecha disse...

Necessário, Jacque! Sempre necessário!