quinta-feira, 6 de setembro de 2018

rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (3/4)



o quadro de antagônicos, metodologia adotada pela pequena companhia de teatro, é alicerçada em palavras, aos pares, e que sugerem sinestesias, dando ideia de antagonismos para fortalecer o conflito inerente ao fazer teatral – aqui mais especificamente relacionado ao drama –, a saber: peso/leveza; força/fraqueza; dilatação/retração; agilidade/dureza; velocidade/lentidão; masculino/feminino; samurai/gueixa; tensão/relaxamento; mínimo/máximo; contenção/expansão.
essas palavras devem ser experienciadas no corpo do ator, não de forma ilustrativa, figurativa, como alguém fazendo força ou carregando um peso, o que equivaleria a uma intenção, resultando em uma ação1. como o corpo é acionado quando se pensa no vocábulo “força”, e não se demonstre força, mas que seja forte por si só? nesse momento, a memória é acionada para referenciar as representações de força que o ator detém em sua lembrança e outras experiências que possam fazem com que as palavras façam algum sentido para o ator,
essas palavras têm significados específicos e conflitantes em sua etimologia. como sugerem sinestesias, o ator, em seu treinamento, deve senti-las, sem contudo interpretá-las ou representá-las, e concomitante a essa experiência, o encenador também deverá perceber essa sensação e, consequentemente, o espectador, mas esse último como traço da personagem representada. nesse pequeno recorte, temos três experiências possíveis: a de quem sente, a de quem vê quem sente e a de quem sente o que vê2. nesta metodologia, o ator faz suas escolhas e dialoga com o encenador. reconhecer a metodologia e participar dela só fará sentido se o trabalho do ator sobre si mesmo for exercida e abrigada.
a memória também é acionada quando da preparação para entrar em cena, quando, num dado momento, os atores se posicionam para originar suas personagens, isto é, fazer com que a repetição de determinados movimentos faça com que o corpo se lembre da estrutura físico/energética conseguida na sala de ensaio.
o corpo, através desse treinamento, sistematiza sinestesicamente sua própria compreensão. o corpo reflete sobre “as coisas em si” e, posteriormente, uma “reflexão sobre os rastros”, “uma espécie de vestígio” (gagnebin, 1997).
mesmo sendo método, há diferenças de compreensão e de entendimento, pois que os corpos são diferentes e diferentes também são suas composições e histórias. haverá sempre uma singularidade da execução desses procedimentos e em seus resultados em cena. diferentes atores, mesmo procedimento, diferentes percepções e diferentes resultados. nesse aspecto, privilegiar a escrita do ator equivale a aceitar a diversidade de resultados num mesmo processo.
a metodologia preconizada pela pequena companhia de teatro delineia momentos diferentes para exercitar o corpo, dividindo o trabalho em três momentos que são, ao mesmo tempo dissociados e interseccionados: pré-expressivo, expressivo e dramatúrgico. o primeiro exercita o sistema sem compromisso com construção de personagens ou definições de ações ou intenções de cena. o segundo já se preocupa com construção de personagens, excluindo antagônicos que não se coadunam com as outras dramaturgias ou que não encontram ressonância ou afinidade com a organicidade que se busca. o terceiro momento já expressa a necessidade de elaboração de ações a partir da dramaturgia do autor, articulando intenções, fala e ações. esses momentos existem em separado temporalmente, mas não se excluem, pois são praticados no mesmo dia em sala de ensaio, mas o foco é sempre em um deles, em que pese a racionalidade da escolha.

1 para a primeira parte do treinamento e composição de personagens, a eficiência do método só será possível mediante a compreensão do ator sobre a diferença entre movimento e ação. o movimento será exigido mais na primeira parte do treinamento; já a ação, num momento posterior, quando a estrutura física da personagem estará já codificada.
2 podemos fazer um paralelo com a memória que é recuperada pelo corpo do ator, que viveu o momento e o recuperou pela lembrança; o encenador que vê, escuta a articula, através de suas memórias com as do ator que lhe são apresentadas através de representações corporais; e o espectador, que sente, cria sua memória através da experiência dos outros (halbwachs, 2006). também podemos aqui referenciar pollak (1992), quando trata sobre “os elementos constitutivos da memória” em “acontecimentos vividos pessoalmente” e “vividos por tabela”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Pela pequena prática em oficina com Marcelo Flecha, o texto esclarecer bem o momento, é direto e o Quadro de antagônicos aponta como um caminho viável da busca por um teatro verdadeiro. A relação entre ator e personagem é necessária e para dar esse significação do corpo do ator mostra que não se esgota no fato de ser personagem. O “método” apresentado pela companhia mostra como agir com essas relações entre as camadas de signos que agem no espaço teatral.Aires de Oliveira