quinta-feira, 13 de setembro de 2018

rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (4/4)



a memória é acionada em todas essas etapas, em vários aspectos e circunstâncias. na parte pré-expressiva, o corpo aciona a memória e a memória aciona o corpo em fluxo, para sentir as referências que tem acerca das palavras que servirão de estímulo às sensações, para posterior geração de significados, independentemente de que a memória não seja clara o suficiente para adquirir forma consistente e orgânica, verdadeira e crível no corpo.
tomemos como exemplo dois atores: o primeiro que esteja com sobrepeso e que leve uma vida sedentária e o segundo que pratica atividade física de alto impacto e que tem a musculatura visivelmente definida. ambos exercitarão a tensão. o primeiro terá dificuldades iniciais em recorrer à memória para sentir tencionamentos em seu corpo e não passará verdade a quem o observa. o segundo não terá essa mesma dificuldade, pois o exercício cotidiano fará com que a memória exponha, com certa facilidade, essa sensação, e será crível aos olhos do espectador. com a prática do procedimento, ambos terão a oportunidade de fortalecer essa memória, criar novas memórias a partir dessa experiência e acioná-las mais organicamente num outro momento do processo de treinamento e/ou montagem de um espetáculo. ambos, depois, exercitariam o relaxamento (antagônico da tensão) e as performances seriam outras; o primeiro ator teria mais facilidade em ser orgânico em sua performance, e o segundo teria que praticar mais, inversamente à primeira exemplificação. assim, quanto mais tempo se exercita o método, mais potencial terá a memória em recorrer às sensações porque passou, pois que o “hábito” fortalece a “experiência útil” de aplicarmos a técnica em “acontecimentos semelhantes” posteriormente, como a repetição dos ensaios, a rememoração e o constante revisitar para as apresentações (menezes, 2000).
na expressividade, ambos os atores acionam a memória para experimentar essas sensações na construção de suas personagens; se ela é essencialmente tensa, apressada, ágil, lenta, masculinizada, feminilizada e, em cada um dos antagônicos elencados no procedimento adotado, dá a quem exercita um caráter de verdade a partir das sensações existentes no corpo.
escolhas físicas repercutem nas características da personagem. nesse momento não são acrescentadas memórias psicologizantes, como a lembrança de alguém que poderia ser considerada apressada, lenta, pesada, feminina etc, para a composição da personagem, pois como estética e politicamente a companhia não se coaduna com o realismo/naturalismo, bem como fortalece e valoriza a dramaturgia atoral, o corpo dita um ritmo diferenciado na composição das personagens, o que distancia da ideia de se espelhar em alguém que se conheceu, recuperando na memória sua forma de andar, de dizer, de agir, em detrimento das composições que o próprio corpo representará a partir das sensações que as palavras do procedimento, numa recuperação ou formação de memórias, sentenciará.
no terceiro momento, há uma espécie de reforço da memória para fazer com que a composição da personagem se solidifique, dê organicidade e permanência no tempo e também nas ações físicas necessárias à compreensão da diegese do espetáculo, gerando com o corpo e em conjunto com as outras dramaturgias sua própria dramaturgia atoral, em que o corpo do ator articule uma dimensão dialética com o texto, com a luz, com o cenário, com o espaço etc.
para que o corpo aprenda, apreenda e se recupere em sua dimensão de gerador de significados, há a necessidade de seguir os rastros das mesmas sensações, desde o processo pré-expressivo, mas principalmente a partir do expressivo, retomando a composição que caracteriza cada uma das personagens, e que nomenclaturamos como origem: momento que, dentro de um espaço de tempo, o ator recupera, relembra através de movimentos1, a corporeidade de sua personagem.
no espetáculo “pai & filho”, em que eu faço o pai, preciso de 15 minutos para que meu corpo se lembre e se reorganize na estrutura corpórea da personagem. seguindo uma rotina, e já devidamente caracterizado, os pés enraizados e alinhados à cintura pélvica, com a pélvis encaixada, conto mentalmente 10 segundos para elevar a cabeça, como se alongasse a coluna; mais 10 segundos e encaixo os ombros, como se puxassem lateralmente a ambos; 10 segundos e elevo o peitoral como se fosse um pombo ou como se projetasse os mamilos para o teto; 10 segundos, como se puxassem o meu corpo para trás, objetivando reencontrar o ponto de equilíbrio, contraio as omoplatas; 10 ou 20 segundos nessa posição (no teatro antropológico, na mímica corporal dramática, na dança, convencionou-se chamar de posição neutra ou zero). sentindo o peso (o antagônico que guiará toda a personagem) da gravidade sobre os ombros, vou lentamente fazendo com que o corpo se curve em direção ao chão. cabeça, pescoço, ombros, cintura escapular, tronco, joelhos flexionados, braços pendendo ao lado do corpo, até que os dedos das mãos alcancem o chão. inspiração e expiração fortes, porém lentas. o corpo reage a esse peso com a força (antagônico que auxilia o peso na construção de significados e que irá antagonizar com ele a escrita do ator), elevando-o até ficar novamente na posição neutra. esse movimento se repete por duas vezes. os olhos se abrem e percorrem o espaço acima, abaixo, lateral esquerda e direita, se fecharão para a repetição do movimento de ir ao solo a partir da força da gravidade mais duas vezes. após, o corpo está pronto para se deslocar como a personagem e começar a projetar partes do texto e a exigir do corpo que retome, relembre, algumas ações em mímica da personagem, no espetáculo, como atarraxar uma lâmpada, borrifar veneno, costurar a própria calça e a camiseta do filho, andar em ritmos diferentes etc. depois de 15 minutos, calço os sapatos, coloco o alfaiateiro no ombro direito e o linheiro no ombro esquerdo e pego o rolo de tecido com a mão direita e o coloco sob o braço direito e pouso a mão esquerda sobre o rolo de tecido, e espero o momento do início do espetáculo.
o teatro é efêmero e cada apresentação é diferente da outra porque existem muitas variáveis envolvidas. entretanto, esse percurso será exigido para que se recupere a ideia original da obra de arte, aquilo que fez com que ela fosse exposta à apreciação pública. para que tenha efeito essa ideia original, necessário se faz que aproximemos cada uma das apresentações como se fosse uma única em forma e conteúdo.
alguns instrumentos são utilizados para preservação e recuperação da memória na pequena companhia de teatro: diário de encenação, catálogo de ideias, filmagens, fotografias, clipping, produção textual, arquivos digitais, que são acionados quando há alguma querela entre as memórias individuais para recuperar uma cena, uma ação ou movimentação específica. os atores na companhia nunca tiveram a prática do registro escrito. algumas tentativas foram experienciadas, mas há um lapso temporal importante entre a execução do movimento, da ação e do gesto para a tomada das anotações. se for no instante do acontecimento, desgasta o ritmo do processo criativo. se se deixa para um outro momento, a escrita fica comprometida, dada a distância da sensação, do fato.
independentemente da não sistematização dos registros coletados desde seu surgimento, a pequena companhia de teatro tem esse hábito como mecanismo de contar sua própria história. quanto mais informações forem preservadas, mais possibilidade haverá de a história ser contada pela perspectiva de seus integrantes, em que pese o desinteresse do estado em preservar a história do teatro de grupo no país.
1 diferentemente do vocábulo ação que se caracteriza por ter, necessariamente, uma intenção, o movimento apenas o é.



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