domingo, 2 de setembro de 2018

Qual é a sua verdade?


Encerramos a quarta semana do processo de montagem de Ensaio sobre a memória, novo espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, com previsão de estreia para novembro, inspirado no conto A Outra Morte, de Jorge Luis Borges. No elenco, Jyesse Ferreira, Xico Cruz e Cláudio Marconcine (Nem tudo é verdade. No parágrafo há falsas verdades, verdades omitidas e quase mentiras).

Independentemente de método, procedimento, sistema, invencionice, metodologia ou caos, qualquer fazedor teatral quer, no fundo no fundo, atingir a verdade cênica – aquela célula orgânica, pulsante e crível chamada de bom espetáculo. Queremos atingir a verdade. Queremos que o espectador reconheça no nosso fazer a honestidade, empenho e reflexão que só a verdade pode reverberar. Queremos um diálogo verdadeiro, franco. O que o teatro deseja é estabelecer com o espectador um pacto de confidencialidade íntimo, verdadeiro; sem simulacros, sem mentiras, sem meias-verdades, sem falsidades, sem desculpas de botequim, sem falsas promessas, sem confissões dúbias – sem que o espectador fique com aquela sensaçãozinha desagradável de pensar: essa Pequena tá me enrolando. Para nós, teatreiros, o espetáculo é o nosso confessionário: nele assentamos o nosso compromisso de fidelidade com a plateia, e a única coisa que pode dar atestamento a esse voto é a verdade. Exagerei? Não creio. Num mundo tão blasé, o teatro exige de nós intensidade, e como o que exercito neste blog é a tentativa de traduzir o que lá se passa, sempre me apresento a você assim, com a intensidade de quem acredita na eternidade da nossa relação – mesmo sabendo que você, traiçoeira leitora, leitor infiel, me trocaria antes do fim deste parágrafo por qualquer escritorzinho mixuruca que sussurre ao seu ouvido palavrinhas doces.


Mas, o que é a verdade? O que na nossa vida é verdade? Quantas verdades padecem em poucos meses? Quantas verdades são trocadas por vinténs? Quantas verdades sucumbem a um bom argumento? Quantas verdades um olhar consegue esconder? Quantas verdades são destruídas pelo acúmulo de pequenas mentiras? Quantas mentiras se tornam verdades pela simples repetição? Quantas das nossas histórias são verdadeiras? Quantas verdades são política? Quantas condenações aconteceram por verdades forjadas? Quanto de verdade a história nos contou?

Nossa montagem propõe tratar disso, e daquilo, e daquilo outro. E hoje se depara com a busca da verdade no seu principal instrumento dramático: o ator. É nesta fase, em sala de ensaio, que tudo o que se busca, se experimenta, se experiencia e se pesquisa, tenta fazer pulsar no corpo do ator essa verdade cênica que traduzirá com eficiência todos os dizeres que propomos reflexionar no espetáculo. Conseguir isso é o nosso desafio, e único condutor que norteia a nossa empreitada.

A prova disso é o quanto o Quadro de Antagônicos – nosso método de montagem – vem sofrendo modificações, alterações, reconfigurações, a partir de cada encenação. Como o que buscamos é a verdade cênica, o que sistematizamos até aqui nunca foi posto como norma, e sempre estivemos atentos a qualquer tipo de engessamento que essa metodologia pudesse apresentar, tendo em vista que o que nos motiva e guia é o resultado final: um espetáculo honesto.


Porém, a verdade, em tempos áridos como os de hoje, costuma ser frágil. E por isso nos entusiasmamos com a ideia de refletir sobre a memória, a história, a verdade, a tortura... frágil como o filamento de uma lâmpada incandescente. Frágil como uma promessa. Frágil como o último suspiro. Frágil como uma paixão adolescente. Frágil como o desejo de construir uma sociedade mais justa. Frágil como o sonho mais repetido neste blog: mudar o mundo.

Mas não se aflija, tenha em mim uma âncora de esperança. Há verdades incorruptíveis que me perpassam desde o dia em que me percebi fazendo teatro. Por exemplo: não sou homem de fases, de momentos; sempre fui de eternidades. Minha opção pelo teatro é minha melhor causídica. Penso na Pequena eternamente; morrerei nela, mesmo que amanhã seja expulso por excesso de intensidade. Nunca neguei ser um indivíduo insuportável. Portanto, sei que estou sujeito a isso.

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