domingo, 19 de maio de 2019

Como se destrói um sonho?


Quem nunca sonhou com o maior amor do mundo? Quem nunca sonhou em se aposentar fazendo teatro, em ser cristalino como a água, em conhecer a verdade absoluta, em pulsar vivaz até a morte, em enxergar o rosto da paz no último suspiro, em viver a intensidade dos vulcões, em sentir o “te” da palavra teatro como quem diz te amo, em ser o melhor homem do mundo?

Meu sonho ruiu. Um pedido para parar. Meu país me pede para parar... Não, seria injusto se não ressalvasse que quem me pede para parar é quem o governa, por não ter coragem de suportar a intensidade de quem faz e diz com o maior amor do mundo. Vivi um sonho, e ele esvaiu-se na sombra dos mornos. Durante mais de trinta anos vivi esse sonho: fazer, viver, pulsar, sentir, amar, comer teatro. Vivi o sonho de sobreviver do meu ofício, e o golpe fatal da imbecilidade o destruiu. Na nova ordem que se apresenta, onde até a educação é irrelevante, o que resta para um artista vagabundo?

Hoje tudo o que escrevo é sem altruísmo, é sem querer mudar o mundo, é sem sonhar com igualdade, é sem a responsabilidade de fazer o bem para ela: a plateia. Hoje tudo o que escrevo é em benefício próprio; um lamento egoísta, único, dolorido; é para mostrar para você como uma conjuntura destrói um sonho de arte, de vida, de tesão, de paixão.

O que eu ganho com isso? Nada. É apenas a minha perversa escrotidão de mostrar para você as minhas chagas. Para você, que sempre esteve comigo, ou para você, responsável civil por minha dor de agora. César Vallejo, no poema Voy a hablar de la esperanza, se dói acima de qualquer coisa. Eu, medíocre marionete de um estado carcomido, sinto essa dor como artista. Como artista que esqueceu de viver outras confidências e apostou tudo num sonho frágil, utópico, anacrônico; o de explodir a cada estreia, o de viver a fúria da arte, o de comer somente o ovo, o biscoito, a azeitona, a coxinha, o mocotó, o queijo que o teatro me desse.

Hoje lhe dou confidências sem conteúdo. Dou-lhe minha dor, minha profunda melancolia, minha falta de coragem para seguir, minha honesta sensação de fracasso. Fui arremessado em um abismo e convidado a despenhar até o fundo. Sim, também sei que artistas têm asas, mas, as minhas, como Ícaro, estão derretidas por querer voar tão perto do sol. Meu sol é ela: a plateia. O diálogo com ela. A dança sensual da confidência, do sussurro, do abraço que acontece quando a cortina se abre. Mas não foi a plateia que derreteu minhas asas. Por sonhar em tê-la tão perto, sempre, confidente, a invejosa e ciumenta realidade as derreteu. E de tão forte ser a fúria da realidade, creio que o meu coração derreteu também.

Mas uma coisa eu sei: não vou voltar a fumar. É uma espécie de presente secreto para a plateia. Finalizei a montagem do nosso espetáculo sem as delícias da nicotina, como dizendo que bastava a sua presença, e ela se fez presente. Ensaio sobre a memória foi minha declaração de amor. Claro que não será a última, pois o corpo que perde suas asas sempre preserva os gestos do voar. Mas foi a mais intensa, a mais pulsante, a mais verdadeira, para que fique sempre muito claro que tudo o que se trilhou não foi em vão. Para que o grito que agora trago, encontre na cena o eco para retumbar. Mesmo com o sonho destruído, estarei sempre aqui. Te amo, teatro.

domingo, 21 de abril de 2019

Ensaio sobre a desordem


Queria ser Lirinha, Macedônio Fernandez, Emir Kusturica, Baskiat, Arnaldo Antunes, Carlos Motta, Goyeneche, Luiz Buñuel, Bukowski, Gero Camilo. Queria ser tantos que não sou e sou aquele que se fez dos tantos que não fui. Um universo de desejos ocultos no abismo do encantamento provocado pela arte. Flutuo entre os que não fui. Sempre nadei no desejo, orbitei e flertei com o “se”. Se eu tivesse se eu fosse se eu pudesse se eu fizesse. Sempre me plantei como um invejoso impudente. Invejo os geniais, os anárquicos, os espontâneos, os intensos, os imprevisíveis. Invejo sem pudor, com o frescor do próprio desacato que invejo.

Às vezes me arrebata um desejo de ser o que faz a diferença, o que opera o trânsito entre o sonho e a realidade. Dentro desse encantamento por desvendar, desvelar, desencadear, desenvolver, me encontro em processo, absorto pelo buraco da razão que me obriga a enxergar quem sou. Sou aquele do desassossego. Do destempero abismal. Sou o autor das minhas falas, o detentor do meu corpo, o faminto das colheitas, o trôpego amuleto que finge funcionar. Não funciono. Me funciona o tempo, e nele navego esperando o fim.

Num ensaio camuflado de prosa poética sobre meu ser, me deparo com o ensaio que ensaiamos. Ensaio sobre a memória me recorda quem somos. Somos nós. Oculto do espectador, a estética conta nossa história, algumas anedotas, e outras falhas do tempo. Num jogo de adivinhação convido você a procurar na cena as mil imagens de um autor, o jogo que carrega quarenta anos de tempo, a missiva de uma sorte militar, os descartes de um trapalhão, o designer frustrado, as tantas memórias que construíram uma cena falante, emudecida pela crueza da nossa falta de memória.

Sim e não. Numa ficção colapsada, entendemos de misturar documentos físicos aleatórios, sabendo que o espectador não vê, mas, defendo: o ator sim. O apuro da cena busca o diálogo, mas antes do encontro com o espectador, está o diálogo da cena com o ator, aquele que instrumentaliza o objeto, aquele que dá vida ao símbolo, aquele que ressignifica. Esse, vê, toca, e precisa acreditar para que o espectador possa crer. Tassia tremeu ao falar da missiva. Tergiverso? Confundo? Omito? O espetáculo brinca com isso também, e eu embarco no exercício de confundir o leitor, esse que será espectador, quando estreie o ensaio de todas as fissuras que o tempo pode ter.

Labirinticamente me espelho no eterno retorno e enfrento minha inveja. Invejo ser pedante, que usa sua invídia para se maldizer pelo que não é. Retórica da postagem anterior, não encontro meios de fugir de mim sem que as falhas deste quasímodo assustado convirjam para o poço de incertezas criadas pela arte. Nada tenho que já não tenha sido vomitado. Nada digo que não tenha sido sonegado. Nada crio que não tenha sido cansado.

Hoje escrevo conduzido pelo desajuste do cérebro, sem organizar nem formatar o discurso que tanto cansa você semanalmente. Não consigo dizer exatamente o que quero dizer. Não sei bem se quero dizer o que digo. O fracasso da postagem se aproxima, sem garantir ao leitor a sentença final. A máxima absoluta. A verdade implacável. O pentagrama incorruptível.

O destino do labirinto é perder você no desejo de vir ver o que o teatro ainda pode dizer. Ensaio sobre a memória. De 01 a 06 de maio, 19h. Duas sessões na sexta e no sábado, 19h e 21h. Aqui, na Rua do Giz, 295. Pague R$ 30,00, ou R$ 15,00, mesmo sem costume, já que viciamos você em ver nossa obra de graça. Faço graça. Não me entenda. Não hoje. Não me organize, não hoje. Não me cobre, não hoje. Não me abandone, não hoje. Sou o ser que lhe restou para amparar. Me ampare, me acoberte, me justifique, me entenda, me descubra, me leia. Se na páscoa ele ressuscitou, minha relação com a arte sempre será de Sexta-feira da paixão.

domingo, 14 de abril de 2019

O Quadro de Antagônicos e a vida que segue


Dia primeiro de maio de 2019 estreia Ensaio sobre a memória, novo espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, com dramaturgia minha, a partir do conto La otra muerte, de Jorge Francisco Isidoro Luís Borges, com Tassia Dur, Katia Lopes, Lauande Aires e Cláudio Marconcine no elenco. Sem sombra de dúvida a montagem mais complexa, mais difícil, mais problemática, mais fragmentada, mais longa da trajetória da Pequena, e arrisco cravar, da minha carreira. De Velhos caem do céu como canivetes a este ensaio sobre os vaivéns da história e sua fraca memória, vão-se cinco anos e seis meses, o espaço mais longo entre montagens do nosso grupo, e arrisco... não, prefiro não arriscar; de riscos, já basta o teatro.
Ofício de riscos, mas nunca tão plenos quanto hoje. Esta não é uma montagem qualquer. Ela é construída de vazios, de ausências, de faltas, de angústias, de desalentos, de desânimos, de solidões, de borbotões, de borboletas, de botões, de tudo o que desanda e tudo o que confessa. É uma confissão para os novos tempos. É uma experiência desatada, uma garganta desenfreada, uma lacuna de confidências, uma desigualdade. É o diagnóstico do que se tem, a causa do que se provoca, e a cura do mal que não cabe em si. É dizer sim. Sim ao fazer, sim ao teatro, sim ao gesto, sim ao feto: nasça; ainda haverá teatro.
Esse meu preâmbulo rasgado, dilacerado, nada mais é do que um exórdio, um introito uma prefação: não diz nada. São só os acordes dos meus instrumentos de trabalho desafinados: o coração, o cérebro, o que resta deste corpo decrépito, e as mãos, que já não aguentam cortes, golpes, furos e ardores. Prelúdio para falar do que não quero falar: o impudor que um dizer pode ter no trato com métodos, formas, conceitos, procedimentos, amarras, gostos, gessos e estratégias.
Desde que esta montagem começou... minto, desde que o processo da dramaturgia fluiu, percebi que muito do que a Pequena Companhia de Teatro sedimentou como sendo seu patrimônio conceitual, seu arcabouço estruturante, não serviria para dar a retumbância poética e a potência que o nosso ensaio sobre uma memória historiada demandaria. O Quadro de Antagônicos, com seus procedimentos, rotinas e ritos, não seria aplicado com a disciplina, rigor e contundência que nossas encenações exigem, pois o instrumento não contemplava as demandas desta nova montagem.
Mas, como abrir mão de um trabalho, de uma pesquisa, de uma trajetória apenas pela necessidade de construir o ambiente necessário para um espetáculo? De onde extrair a coragem para usar o Quadro tangencialmente, perifericamente? Qual foi a minha surpresa ao constatar que a ruptura seria muito mais aguda do que o mais contemporâneo dos Marcelos Flechas poderia imaginar? Enquanto eu me digladiava com a ideia de abjurar um organismo que nos é tão caro, a cena já o havia feito sem a menor parcimônia, sem o menor constrangimento, sem a menor compostura. Me desconheço como encenador na montagem Ensaio sobre a memória. Não sei quem sou. Não sei que diretor fui. Não tenho registro de mim, do meu fazer. O ensaio me conduziu. Reformulei rotinas, diversas, no mesmo dia. Tudo foi tão urgente que me engoliu. Fui levado pelo grito da cena. Fui arrastado pela vicissitude dos milagres. Fui encorajado pela confiança no dito. Fui tragado pela agonia de correr o risco. Fui desabitado de mim, pela necessidade de pôr à mostra a falha terrível que pontua nosso presente: ser um país sem memória.
Mas este rompante, esta desconversa, pontua o principal imbróglio da não conversa que tento acentuar aqui: qual a dose de oxigenação certa para práticas acertadas, métodos estruturados, sistematizações pragmáticas? Não é mensurável para mim hoje, mas não sobrecarrego a ansiedade, já engordada pela própria natureza da fragilidade de quem lida com a criação artística. Sustenho a máxima que gera todo o meu fazer artístico desde que enveredei pela estéril arte do agora: tudo sempre está a reboque da obra de arte. É ela que demanda, que guia, que ordena, que exige, e por ela devemos sucumbir, surrupiar, abandonar, voltar, recorrer, surtar. Se a obra pede o exílio, exílio será. O desterro, desterrado. A clausura? Clausurado.
Contudo, essa extrusão, esse alvedrio, essa opção por abdicar do nosso método garante alguma coisa? Não. O que isso significa? Não sei. Talvez um espetáculo menor. Talvez um hiato, um interstício, uma terceira margem. Talvez uma desilusão para os puristas. Talvez mais um espetáculo honesto, feito por artistas honestos. Pouco importa. De certo, a seta: esse era o caminho a seguir, e ele urgia. Não titubeio quanto a essa opção, e por isso hoje falo em primeira pessoa, apesar de estar tratando do complexo experimento coletivo chamado teatro. Fui o responsável por essa opção, para espanto de alguns pares, conivência de mais de um, e decepção de outros.
Se esse spoiler – e você me vendia avelhantado e obsoleto – não te fizer correr para ser o primeiro da fila na estreia, parei contigo.

domingo, 16 de dezembro de 2018

Contrariando a nova ordem


A Pequena Companhia de Teatro iniciou recentemente uma nova parceria, desta vez com a Cia. Prisma de Artes, de Fortaleza/CE, com o intuito de montar um espetáculo que reúna as urgências do coletivo cearense, com estreia prevista para o primeiro semestre de 2019.

Passamos uma semana em Fortaleza – momento capital para o atravessamento do pensamento e das práticas de cada grupo – atentos às demandas oriundas das aflições que compõem o quadro das nossas lutas, e afinados na percepção de estudar o melhor caminho para dar eco a elas.

Sinto que tudo está cada vez mais urgente. Teatro é ação. É movimento. Quanto mais um coletivo se move, se desloca, se transmuta, se reinventa, maior a pujança surgida. Quanto mais um grupo encena, maior a probabilidade de responder às urgências provenientes da contemporaneidade.

Nesse caminho, depois das preliminares discussões sobre o que dizer, motivado por alguns textos e gatilhos provocadores, mergulhamos num intenso exercício de experimentação, tentando fazer aflorar de maneira mais orgânica o compromisso do discurso com esse agora de que trato no parágrafo acima.

Atores em processo de experimentação se revelam, se entregam ao descompromisso com a lógica, se metamorfoseiam sem temer o ridículo, fazendo com que a verdade seja uma órbita pulsante em cada experimento. Como nosso caminho ainda não estava comprometido nem com forma ou conteúdo, o torvelinho de opões foi sendo desvelado, assegurando um repertório de alternativas interessantes, embaladas na atmosfera do contemporâneo, pela fragmentação do discurso, pelo descolamento com uma narrativa dramática, e pela amarga sensação de estarmos vivendo uma distopia.

Agora nos dedicamos ao encaminhamento mais organizado do dizer, estabelecendo metas e prazos para definirmos concentradamente as possibilidades levantadas, porque uma coisa é consensual entre a Prisma e a Pequena: a força do discurso é crucial para a saúde da encenação, tendo em vista que o comprometimento dos envolvidos depende exclusivamente da identificação destes com o objeto de pesquisa. É o momento em que não se pode titubear, pois toda a sequência do trabalho pode ficar comprometida se não houver clareza e confiança no dito, para que a defesa desse postulado se materialize na potência aplicada pelo grupo na construção da cena.

Somar ações, encontros, estratégias, parcerias, pensamentos e práticas é a forma que o teatro de grupo do país tem para enfrentar a nova ordem que se avizinha, certos da tragédia que assolará a cultura brasileira: quem fala em fundo do poço não sabe o que é profundidade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Partes de mim


Semana passada estive em Mossoró, para a serenata surpresa e íntima, promovida pela “A Máscara”, e dirigida por Damásio Costa, para uma das minhas amigas mais queridas, a atriz Tony Silva. Aproveitando a ocasião, pudemos espremer o tempo e avançar nas discussões e procedimentos da próxima montagem do grupo, prevista para 2019, com direção minha, como você já sabe, pois leu aqui.

Nossa discussão, que se encaminhava para a adaptação do romance “A Polaquinha”, de Dalton Trevisan, sofreu um pequeno revés, e nos percebemos discutindo pertinência, contemporaneidade, desejos, oportunidades; definindo que será uma das nossas três montagens juntos, mas não necessariamente a primeira.

Esse titubeio oxigenou meu discernimento e alimentou o assunto da escrita semanal que me imponho aqui, e que tem sido motivo de análise severa quanto a efetiva necessidade da permanência do exercício, tendo a falta de frequência como aliada na argumentação para a suspensão do martírio de me revelar semanalmente. Inflamável, o conflito explodiu nas entranhas e sangrou, expondo as vísceras do teatro de grupo na contemporaneidade: o que dizer?

Minha tentativa hoje é discorrer sobre todas as influências que afetam uma opção orgânica de temática definida por um grupo e as consequências que essa ponderação possam infligir na obra de arte em questão.

Como sempre me apresento como vidraça, digo: a Mulher, personagem emblemática da nossa próxima montagem, foi vestida durante um período pela atriz Jyesse Ferreira, em um desempenho preciso que oferecia a representação exata que a personagem demandava. Somava-se a essa sorte, a imagem estética do corpo total da atriz, que traduzia a Mulher com acerto. Em um determinando momento do processo, quando nos deliciávamos em descompromisso criativo experimentando aleatoriamente propostas dos atores para o figurinos das personagens, me deparo com a concretude da Mulher: Jyesse, com sua particular beleza, descalça, com uma saia volumosa e patética, e nua no que se refere a todas as partes do corpo que o pano não cobria. A Mulher perfeita. Não como símbolo de perfeição, percebam que escrevi com maiúscula, pois a personagem se chama Mulher, logo, a personagem perfeita. Tergiverso para atiçar a sua curiosidade.

Você deve estar se perguntando, o que essa glosa significa? Qual a relação com o dizer desta postagem? Revelo: após o registro da imagem epifânica pelas minhas retinas, me deparei questionando a opção. Em trinta anos de teatro, nunca havia vivido a sensação de confrontar uma demanda orgânica da cena com o entorno com a qual ela vai dialogar. Falamos de censura, de conveniência, de cuidados, de enquadramento, de todas uma hermenêutica que jamais deveria habitar o diálogo de uma obra de arte em construção.

Eis a questão. O quanto o mercado, as curadorias, o espectador, o viés político   tem influenciado as opções do teatro de grupo na contemporaneidade? Quanto a conveniência influencia a cena? Tenho me deparado com uma frequência fenomenal com comentários referentes às motivações que determinaram o destino de encenações das mais diversas: ter uma pegada mais contemporânea; uma estética mais enxuta para facilitar a circulação; o problema da internacionalização é o idioma; preferimos não arriscar para não limitar; o espectador quer se divertir; melhor evitar polêmica; melhor provocar polêmica...

O que deve ser incorruptível em um dizer artístico? Até que ponto a concessão é uma arma ou uma farsa? Não caberia à arte a crueza da verdade necessária, independentemente do diálogo com o seu entorno? Não caberiam às vanguardas o não enquadramento? Fazemos teatro ou promovemos unanimidades? Provocamos ou pasteurizamos?

Mesmo depois de trinta anos tropegando nos trilhos tortos do teatro de grupo e seus azares, a experiência não me brinda com a serenidade típica e cadenciada da idade. Hoje, estou pouco confortável com a nova ordem que se desenha. Não me sinto em condições de arbitrar valor ao caminho mais acertado para decompor tudo o que está posto e provocar uma nova desordem. Insistir na ruptura? Investir no decote? Como se estrutura a cena cíclica do mundo? Como progride um universo; do caos ou da harmonia? Queremos aceitação ou queremos transgredir? Qual é o meu lugar na cena? Qual é o lugar do teatro de grupo?

Outro dia escrevi que decidi ser jovem depois de velho, e cheguei atrasado. Blefe? Continuo um velho empedernido? Você me vê transigindo com o que não me representa pelo valor atribuído aos vinténs da contemporaneidade? Você me enxerga enquadrando uma obra para ampliar a repercussão do seu dizer? Você me entende como sujeito de uma construção pré-moldada? Você reconhece o dilema ou acredita no meu jogo de cena? Não, não são perguntas retóricas. Me responda: como você me vê?

domingo, 4 de novembro de 2018

Como montar um espetáculo em tempos de crise?


Como sempre. Como todo grupo de teatro brasileiro fez nestes últimos trinta anos em que me entendo por teatreiro. Sem dinheiro, sem apoio, sem aceno, sem visibilidade, sem holofotes, sem marqueteiro, sem diploma, sem lenço, sem documento, sem perspectiva, sem futuro. Com vigor, com vontade, com tesão, com afeto, com empenho, com afinco, com humor, com desejo, com responsabilidade, com sobriedade, com corpo, com sangue, com sonhos, com utopia.

Ensaio sobre a memória é o nosso projeto de vida atual. É o que queremos e precisamos fazer, independentemente das condições dadas – ou surrupiadas – para a sua execução. É a nossa necessidade. É o que o nosso comprometimento demanda. É o grito que precisamos dar para não sermos omissos no momento em que o país mais precisa do teatro de grupo. Como podemos perder a memória assim? Como a nossa falta de memória pode ter nos levado a isto que estamos vivendo? Como diria uma personagem da nossa peça: “Entendo que nossa carne não tem a fibra que devia ter... estamos todos adormecidos, uma espécie de letargia mórbida que nos faz aceitar tudo... não há um mínimo de resistência”. Como a memória pode ser tão frágil ao ponto de padecerem as lembranças mais atrozes que a humanidade conseguiu produzir?

É o que estamos tentando entender. O que é memória? O que é história? O que estamos fazendo com o nosso passado? O que sabemos do nosso passado? Por que a memória insiste em se esconder quando o país mais precisa dela? Sabemos o que fazer: resistir, combater, anarquizar, questionar, surpreender, assaltar. O teatro de grupo sempre soube o que fazer, e nunca se escorou na falta de recursos para calar um grito, pois crise para o teatro de grupo neste país sempre foi rotina. Sabe como a Pequena está fazendo? No peito. Não me perguntem como, não me perguntem o porquê, só posso dizer que fazemos porque é necessário.

Sempre acreditei nisso, no nosso poder de resistência. Mesmo agora, quando a nossa montagem recebe um golpe grave, agudo, resistimos; nos readaptamos, nos reconstruímos, nos regeneramos; nos reconhecemos vivos, pulsantes, combativos; dispostos a erguer a voz da memória, a combater a distopia, a revisitar os percalços da história, a passear pelo cambaleio do passado para tentar entender o titubeio do presente – é que teatro de grupo é de outra natureza; quanto mais nos podam, mais crescemos.

A solução está em lançar mão de velhas formas e tentar formatar caminhos menos ortodoxos. Alargar as parcerias, intensificar o diálogo, refletir sobre as ocorrências do passado, dissociar da prática a possível letargia gerada pelas intempéries – Cláudio tem transitado bem por esse pensamento nas últimas postagens. Um novo espetáculo se constrói do que pulsa no seu entorno sócio-político-cultural, mesmo que o seu dizer esteja descolado na sua temática. Não é o nosso caso, pois a temática abordada pelo destino de Pedro Damián dialoga diretamente com a atual conjuntura; mas também tentamos incorporar essa atmosfera na busca da potência pulsante que as agruras de uma realidade jamais esperada nos apresenta, e conduzimos nossa prática para além do universo ficcional, capilarizando na montagem as estratégicas que a nova ordem nos impõe.

O caminho mais acorde com a nova realidade é a guerrilha. Valer-se das táticas de guerrilha para a montagem, para a divulgação, a repercussão, para o financiamento, para a manutenção. Agora estamos sós. Não se espere nada do poder público federal. Muda o rumo. Remontar práticas passadas – passamos por tudo isso inúmeras vezes – e invencionar práticas futuras. Agora, mais do que nunca, recupero uma das postagens de maior repercussão deste blog: Entretecendo a teia da revolução.

Em outra postagem perdida no limbo cibernético eu imaginava a pergunta solidária da fiel leitora e do cruel leitor: o que eu, do meu lugar de plateia, posso fazer pelo fortalecimento do teatro de grupo brasileiro num tempo de crise como esse? Hoje, mais do que nunca, suas possiblidades são inúmeras. Se não achar uma única resposta, me provoque, pois pode ser o tema da minha próxima postagem.

 

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

faca de dois legumes




em época de vacas magras, a ideia de transitar pelas contradições é tábua de salvação para o fazer cultural-artístico no maranhão, um estado que privilegia os grandes eventos e desconstrói a participação da comunidade em criar sua arte, dar vazão à sua subjetividade. sem recursos e estímulos torna-se inviável querer gestar cultura.

se falarmos na prefeitura municipal de são luís, a prática se alinha e se afina com a do estado do maranhão. o governo federal inexiste desde o golpe que tirou dilma roussef da presidência e pelo andar da carruagem o futuro que nos aguarda é aterrador.

com a frequente e continuada ausência do poder público viabilizando o fazer artístico-cultural, as práticas e os olhos se voltaram para a iniciativa privada como sesc, sesi, o boticário, itau, valle do rio doce e uma dezena de instituições que são, de alguma forma, subsidiadas com recursos públicos, quer proveniente da arrecadação do governo e posterior repasse, por meio de contribuições que as empresas são obrigadas a pagar sobre o valor da sua folha de pagamento, quer pela lei da renúncia fiscal, em que as empresas, através de suas fundações, determinam onde disporão seus recursos, arbitrando suas programações.

quando nos aceitamos e nos reconhecemos sobreviventes na arte e, na atual conjuntura, não nos predispusermos à esfera da contradição, não conseguiremos elaborar o pensamento para nos encaixarmos (esse é o termo adequado) nos parâmetros estabelecidos pela iniciativa privada. o discurso de pensar na obrigatoriedade do estado (no sentido de nação) como agente subsidiador de práticas artísticas, pede passagem para aceitar a interferência da iniciativa privada em atribuir valor à sua obra. mediado pelo estado a perspectiva se restringia a valores, geografia e linguagem. não se atribuía valor estético nem político à obra como fator de seleção.

o diálogo estabelecido nessa reflexão parte do pressuposto que, mesmo sendo entidades privadas (em alguns casos são paraestatais), os recursos destinados às suas ações são públicos.

nossa prática só se efetivará se repensarmos nosso processo, nossas angústias. não sairemos ilesos dessa reflexão. mas, precisamos repensar nossa função enquanto artistas ou enquanto padeiros, copeiros, serventes. a época dos editais públicos deixou de existir. a ideia de sobreviver sem mudar nosso discurso e nossa prática não tem mais espaço. se não nos pluralizarmos, deixaremos de ser profissionais na arte para sermos outra coisa - qualquer coisa - para sobrevivermos em uma sociedade que pensa diferente da gente a ponto de não nos quererem mais. estamos morrendo aos poucos. nossa sobriedade se esgota para dar lugar ao delírio de quem passa fome buscando uma migalha de pão para o jantar, vendo sua dignidade de esvair como areia entre os dedos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

miserere


a chatice virou prima-irmã da incerteza e da insegurança, e nestes dias de dúvidas, tudo é reconfigurado numa fração de segundos: nosso voto nunca foi tão incerto.


miséria. miséria. o mundo que você me traz é uma miséria. 
você não pode me culpar por ter tentado evitar toda essa miséria, diz a personagem.


sempre nos arvoramos em dizer que fazemos só teatro e que vivemos financeiramente dele. desde o golpe que tirou a presidenta dilma, legitimamente escolhida pelo voto direto, as artes vêm sofrendo um desmonte em suas políticas de financiamento e fortalecimento dos segmentos, através da inexistência de editais públicos e de ações efetivas do ministério da cultura. mobilização e o ministério é preservado. contudo, sem as garantias anteriormente implantadas pela gestão de lula e dilma. hashtags criadas, palavras de ordem aos borbotões, ocupações pelo país. alguma coisa mudou? insatisfações persistem no tempo e o abismo se precipita. eleições. quanto mais se fala, mais se solidifica. preguiça em ler sobre tudo – até sobre meu candidato.




entendo que nossa carne não tem a fibra que devia ter... 
estamos todos adormecidos, uma espécie de letargia mórbida que nos faz aceitar tudo... 
não há um mínimo de resistência…, diz a personagem.


e lá vem as manifestações antecedidas por mobilizações virtuais. caras-pintadas, cidades acionadas… e o tiro sai pela culatra. amplia-se a discussão, o rancor, o ódio.


esta semana tive uma experiência atípica. experimentei exercitar uma ação terrorista proposta dentro da programação do conexão dança e intervimos na rua grande. ouvi desaforos, incômodos desnecessários, nome de candidatos e partidos sendo associados à ação. não me causou desconforto o experimento, não é isso. porém, a reflexão que faço e questiono – não tenho respostas para quase nada – é que passo a crer que importa mais uma justificativa inócua de nossa incapacidade de propor e fazer mudanças através de atitudes contraproducentes.


preciso ler “zona autônoma temporária”, de hakim bey, sugerido pela princesa, para compreender melhor onde me encaixo, onde a arte se encontra, onde estarei depois das eleições, como sobreviverei. tudo é tão obscuro e latente, que escolher um candidato hoje não equivale a votar nele amanhã; que as propostas defendidas hoje não serão, necessariamente, as que serão postas em prática; começar ensaios de um novo espetáculo de teatro não quer dizer, necessariamente, estreá-lo dentro do previsto.


numa época de ânimos aflorados, de posicionamentos incisivos, cortantes, minha acidez e ironias acabaram por perder força. a modorrice impera no meu castelo de cartas. espero o passar das horas e a conjuntura astral melhorar para propor alguma coisa que, não só me tire dessa parvoíce, como também seja algo com um mínimo de dignidade de nota.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

mercado de cu é rola ou a profissionalização nos olhos dos outros é refresco


walter mercado, mercado das pulgas, mercado financeiro, mercado livre, mercado do peixe. uma entidade. onipresente. marginal é aquele que não se enquadra. nicho. empreendedor. compra e venda de serviços ou produtos. o teatro que faço não é produto. ator. sindicato. piso salarial. garantia de direitos trabalhistas. brodagem. modelagem. publicidade. políticas públicas de cultura.

meninxs, eu vi!

sonhei que não passava fome e que minha profissão era valorizada. ninguém que não fosse capacitado e habilitado exercia a atuação. pagava meus boletos, me apresentava gratuitamente subsidiado pelo estado (res publica) e encontrava uma potência nas pessoas que se possibilitavam ao abraço generoso da criação.

estamos tão distantes do ideal que não exercemos nossas atividades dentro do espectro das leis, pois nos consideram – os artistas – como vagabundos, mamadores de tetas governamentais, amigos que executam suas funções sem serem remunerados, sindicalistas desamparados por uma instituição ilegalmente constituída… um horror. nos colocamos com o pires na mão a mendigar esmolas, nos enquadramos como pedintes, uma subcategoria profissional, um desempregado… não somos artistas; precisamos ser mei, uma pessoa jurídica para que o mercado – principalmente no campo do audiovisual – nos acolha.

não quer, tem quem queira!

assim, marginais que somos, sentamos e choramos sobre o leite derramado. hibernamos em nossas “casavernas” sem motivação e esperança para levantar uma bandeira sequer. tudo é trágico e risível. e tudo pode piorar. e tudo é nada, sem potência, sem a ternura ou a garra que precisamos para a nossa revolução doméstica.

me vejo fazendo propaganda eleitoral, me vendendo aos lobos e posando de profissional; me vejo mudando de carreira/profissão/ideal para comprar meu apartamento a prestação, minha moto financiada, meu smartphone de última geração.

a arte deveria ser gênero de primeira necessidade, muito antes do pão. nossa sociedade rejeita essa alternativa. o mercado das urnas sustenta uma política cruel de invisibilidade artística e consequentemente uma visão alterada da realidade que nos circunda. esse poço continua sem fundo. nenhum bem, dado o quadro atual, virá nos tirar dele.



quinta-feira, 20 de setembro de 2018

as eleições e as políticas públicas de cultura


tenho o hábito de detestar discussões acaloradas virtuais. considero totalmente improdutivo polarizações e tenho preguiça de curtir, de comentar – de compartilhar dou um desconto razoável. acompanho os debates dos candidatos à presidência pela internet, pois há tempos desisti de ter televisão – ela emburrece... imagine como eu ficaria. ao governo do maranhão, acompanho as entrevistas – também virtuais –, que simulam os apresentadores do jornal nacional, mais imbecilizados ainda. em comum, nada consistente, significativo ou sequer ventilado acerca de políticas públicas para a cultura. ciro gomes tentou alguma coisa com o tico santa cruz e a michelle cabral comentou algo sobre o haddad, mas não chequei a informação. tentei buscar as propostas do boulos, mas não encontrei na página do psol seu programa ou diretrizes de governo. se são tão difíceis assim de serem verbalizadas em entrevistas, levo a crer que nenhum deles está interessado em divulgar suas propostas para esse segmento – ou não têm mesmo.



em casa chegam panfletos e informes sobre os candidatos locais e nenhum deles trata sobre o assunto. de fato, se a prefeitura e o estado não se preocupam, esse tema cai no esquecimento, e nem mais em época de propaganda eleitoral sugerem mudanças. assim, nos resta a continuidade de nada ou de coisa nenhuma; órfãos de pai e mãe, sem avós ou tias para nos criarem e nos manterem vivos; ausência total do estado na condução de políticas públicas para a cultura.

diariamente estamos trabalhando para a montagem do novo espetáculo, sem financiamento público ou privado, fazendo nosso papel e ocupando um espaço que deveria ser subsidiado. somos o retrato daqueles que não se vergam diante da incapacidade monstruosa daqueles que têm o papel de cuidar para que nossa comunidade esteja permanentemente refletindo sobre a realidade. vivemos numa mobilização tacanha e imbecil na virtualidade. o que nos falta, ainda, é o encontro; espaços de interlocução estão cada vez mais raros. sentimo-nos sós; olhamos para um lado, para o outro e só vemos pessoas pela janela do computador. o mundo está bastante chato é uma primeira assertiva. a segunda é que a arte deve provocar reflexão, análise e impacto. já a terceira, é que permanecemos marginais, jogados ao limbo, desesperançosos com qualquer mudança.

o que nos sobra senão permanecermos exercendo nosso ofício? nossa mobilização se estabelece na condução do que nos move. continuar a fazer o que insistem em minar, em desmobilizar é a nossa maior resposta, nosso maior posicionamento, nossa maior política.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (4/4)



a memória é acionada em todas essas etapas, em vários aspectos e circunstâncias. na parte pré-expressiva, o corpo aciona a memória e a memória aciona o corpo em fluxo, para sentir as referências que tem acerca das palavras que servirão de estímulo às sensações, para posterior geração de significados, independentemente de que a memória não seja clara o suficiente para adquirir forma consistente e orgânica, verdadeira e crível no corpo.
tomemos como exemplo dois atores: o primeiro que esteja com sobrepeso e que leve uma vida sedentária e o segundo que pratica atividade física de alto impacto e que tem a musculatura visivelmente definida. ambos exercitarão a tensão. o primeiro terá dificuldades iniciais em recorrer à memória para sentir tencionamentos em seu corpo e não passará verdade a quem o observa. o segundo não terá essa mesma dificuldade, pois o exercício cotidiano fará com que a memória exponha, com certa facilidade, essa sensação, e será crível aos olhos do espectador. com a prática do procedimento, ambos terão a oportunidade de fortalecer essa memória, criar novas memórias a partir dessa experiência e acioná-las mais organicamente num outro momento do processo de treinamento e/ou montagem de um espetáculo. ambos, depois, exercitariam o relaxamento (antagônico da tensão) e as performances seriam outras; o primeiro ator teria mais facilidade em ser orgânico em sua performance, e o segundo teria que praticar mais, inversamente à primeira exemplificação. assim, quanto mais tempo se exercita o método, mais potencial terá a memória em recorrer às sensações porque passou, pois que o “hábito” fortalece a “experiência útil” de aplicarmos a técnica em “acontecimentos semelhantes” posteriormente, como a repetição dos ensaios, a rememoração e o constante revisitar para as apresentações (menezes, 2000).
na expressividade, ambos os atores acionam a memória para experimentar essas sensações na construção de suas personagens; se ela é essencialmente tensa, apressada, ágil, lenta, masculinizada, feminilizada e, em cada um dos antagônicos elencados no procedimento adotado, dá a quem exercita um caráter de verdade a partir das sensações existentes no corpo.
escolhas físicas repercutem nas características da personagem. nesse momento não são acrescentadas memórias psicologizantes, como a lembrança de alguém que poderia ser considerada apressada, lenta, pesada, feminina etc, para a composição da personagem, pois como estética e politicamente a companhia não se coaduna com o realismo/naturalismo, bem como fortalece e valoriza a dramaturgia atoral, o corpo dita um ritmo diferenciado na composição das personagens, o que distancia da ideia de se espelhar em alguém que se conheceu, recuperando na memória sua forma de andar, de dizer, de agir, em detrimento das composições que o próprio corpo representará a partir das sensações que as palavras do procedimento, numa recuperação ou formação de memórias, sentenciará.
no terceiro momento, há uma espécie de reforço da memória para fazer com que a composição da personagem se solidifique, dê organicidade e permanência no tempo e também nas ações físicas necessárias à compreensão da diegese do espetáculo, gerando com o corpo e em conjunto com as outras dramaturgias sua própria dramaturgia atoral, em que o corpo do ator articule uma dimensão dialética com o texto, com a luz, com o cenário, com o espaço etc.
para que o corpo aprenda, apreenda e se recupere em sua dimensão de gerador de significados, há a necessidade de seguir os rastros das mesmas sensações, desde o processo pré-expressivo, mas principalmente a partir do expressivo, retomando a composição que caracteriza cada uma das personagens, e que nomenclaturamos como origem: momento que, dentro de um espaço de tempo, o ator recupera, relembra através de movimentos1, a corporeidade de sua personagem.
no espetáculo “pai & filho”, em que eu faço o pai, preciso de 15 minutos para que meu corpo se lembre e se reorganize na estrutura corpórea da personagem. seguindo uma rotina, e já devidamente caracterizado, os pés enraizados e alinhados à cintura pélvica, com a pélvis encaixada, conto mentalmente 10 segundos para elevar a cabeça, como se alongasse a coluna; mais 10 segundos e encaixo os ombros, como se puxassem lateralmente a ambos; 10 segundos e elevo o peitoral como se fosse um pombo ou como se projetasse os mamilos para o teto; 10 segundos, como se puxassem o meu corpo para trás, objetivando reencontrar o ponto de equilíbrio, contraio as omoplatas; 10 ou 20 segundos nessa posição (no teatro antropológico, na mímica corporal dramática, na dança, convencionou-se chamar de posição neutra ou zero). sentindo o peso (o antagônico que guiará toda a personagem) da gravidade sobre os ombros, vou lentamente fazendo com que o corpo se curve em direção ao chão. cabeça, pescoço, ombros, cintura escapular, tronco, joelhos flexionados, braços pendendo ao lado do corpo, até que os dedos das mãos alcancem o chão. inspiração e expiração fortes, porém lentas. o corpo reage a esse peso com a força (antagônico que auxilia o peso na construção de significados e que irá antagonizar com ele a escrita do ator), elevando-o até ficar novamente na posição neutra. esse movimento se repete por duas vezes. os olhos se abrem e percorrem o espaço acima, abaixo, lateral esquerda e direita, se fecharão para a repetição do movimento de ir ao solo a partir da força da gravidade mais duas vezes. após, o corpo está pronto para se deslocar como a personagem e começar a projetar partes do texto e a exigir do corpo que retome, relembre, algumas ações em mímica da personagem, no espetáculo, como atarraxar uma lâmpada, borrifar veneno, costurar a própria calça e a camiseta do filho, andar em ritmos diferentes etc. depois de 15 minutos, calço os sapatos, coloco o alfaiateiro no ombro direito e o linheiro no ombro esquerdo e pego o rolo de tecido com a mão direita e o coloco sob o braço direito e pouso a mão esquerda sobre o rolo de tecido, e espero o momento do início do espetáculo.
o teatro é efêmero e cada apresentação é diferente da outra porque existem muitas variáveis envolvidas. entretanto, esse percurso será exigido para que se recupere a ideia original da obra de arte, aquilo que fez com que ela fosse exposta à apreciação pública. para que tenha efeito essa ideia original, necessário se faz que aproximemos cada uma das apresentações como se fosse uma única em forma e conteúdo.
alguns instrumentos são utilizados para preservação e recuperação da memória na pequena companhia de teatro: diário de encenação, catálogo de ideias, filmagens, fotografias, clipping, produção textual, arquivos digitais, que são acionados quando há alguma querela entre as memórias individuais para recuperar uma cena, uma ação ou movimentação específica. os atores na companhia nunca tiveram a prática do registro escrito. algumas tentativas foram experienciadas, mas há um lapso temporal importante entre a execução do movimento, da ação e do gesto para a tomada das anotações. se for no instante do acontecimento, desgasta o ritmo do processo criativo. se se deixa para um outro momento, a escrita fica comprometida, dada a distância da sensação, do fato.
independentemente da não sistematização dos registros coletados desde seu surgimento, a pequena companhia de teatro tem esse hábito como mecanismo de contar sua própria história. quanto mais informações forem preservadas, mais possibilidade haverá de a história ser contada pela perspectiva de seus integrantes, em que pese o desinteresse do estado em preservar a história do teatro de grupo no país.
1 diferentemente do vocábulo ação que se caracteriza por ter, necessariamente, uma intenção, o movimento apenas o é.



quinta-feira, 6 de setembro de 2018

rastros e memórias: do registro ao treinamento e a criação atoral na pequena companhia de teatro (3/4)



o quadro de antagônicos, metodologia adotada pela pequena companhia de teatro, é alicerçada em palavras, aos pares, e que sugerem sinestesias, dando ideia de antagonismos para fortalecer o conflito inerente ao fazer teatral – aqui mais especificamente relacionado ao drama –, a saber: peso/leveza; força/fraqueza; dilatação/retração; agilidade/dureza; velocidade/lentidão; masculino/feminino; samurai/gueixa; tensão/relaxamento; mínimo/máximo; contenção/expansão.
essas palavras devem ser experienciadas no corpo do ator, não de forma ilustrativa, figurativa, como alguém fazendo força ou carregando um peso, o que equivaleria a uma intenção, resultando em uma ação1. como o corpo é acionado quando se pensa no vocábulo “força”, e não se demonstre força, mas que seja forte por si só? nesse momento, a memória é acionada para referenciar as representações de força que o ator detém em sua lembrança e outras experiências que possam fazem com que as palavras façam algum sentido para o ator,
essas palavras têm significados específicos e conflitantes em sua etimologia. como sugerem sinestesias, o ator, em seu treinamento, deve senti-las, sem contudo interpretá-las ou representá-las, e concomitante a essa experiência, o encenador também deverá perceber essa sensação e, consequentemente, o espectador, mas esse último como traço da personagem representada. nesse pequeno recorte, temos três experiências possíveis: a de quem sente, a de quem vê quem sente e a de quem sente o que vê2. nesta metodologia, o ator faz suas escolhas e dialoga com o encenador. reconhecer a metodologia e participar dela só fará sentido se o trabalho do ator sobre si mesmo for exercida e abrigada.
a memória também é acionada quando da preparação para entrar em cena, quando, num dado momento, os atores se posicionam para originar suas personagens, isto é, fazer com que a repetição de determinados movimentos faça com que o corpo se lembre da estrutura físico/energética conseguida na sala de ensaio.
o corpo, através desse treinamento, sistematiza sinestesicamente sua própria compreensão. o corpo reflete sobre “as coisas em si” e, posteriormente, uma “reflexão sobre os rastros”, “uma espécie de vestígio” (gagnebin, 1997).
mesmo sendo método, há diferenças de compreensão e de entendimento, pois que os corpos são diferentes e diferentes também são suas composições e histórias. haverá sempre uma singularidade da execução desses procedimentos e em seus resultados em cena. diferentes atores, mesmo procedimento, diferentes percepções e diferentes resultados. nesse aspecto, privilegiar a escrita do ator equivale a aceitar a diversidade de resultados num mesmo processo.
a metodologia preconizada pela pequena companhia de teatro delineia momentos diferentes para exercitar o corpo, dividindo o trabalho em três momentos que são, ao mesmo tempo dissociados e interseccionados: pré-expressivo, expressivo e dramatúrgico. o primeiro exercita o sistema sem compromisso com construção de personagens ou definições de ações ou intenções de cena. o segundo já se preocupa com construção de personagens, excluindo antagônicos que não se coadunam com as outras dramaturgias ou que não encontram ressonância ou afinidade com a organicidade que se busca. o terceiro momento já expressa a necessidade de elaboração de ações a partir da dramaturgia do autor, articulando intenções, fala e ações. esses momentos existem em separado temporalmente, mas não se excluem, pois são praticados no mesmo dia em sala de ensaio, mas o foco é sempre em um deles, em que pese a racionalidade da escolha.

1 para a primeira parte do treinamento e composição de personagens, a eficiência do método só será possível mediante a compreensão do ator sobre a diferença entre movimento e ação. o movimento será exigido mais na primeira parte do treinamento; já a ação, num momento posterior, quando a estrutura física da personagem estará já codificada.
2 podemos fazer um paralelo com a memória que é recuperada pelo corpo do ator, que viveu o momento e o recuperou pela lembrança; o encenador que vê, escuta a articula, através de suas memórias com as do ator que lhe são apresentadas através de representações corporais; e o espectador, que sente, cria sua memória através da experiência dos outros (halbwachs, 2006). também podemos aqui referenciar pollak (1992), quando trata sobre “os elementos constitutivos da memória” em “acontecimentos vividos pessoalmente” e “vividos por tabela”.

domingo, 2 de setembro de 2018

Qual é a sua verdade?


Encerramos a quarta semana do processo de montagem de Ensaio sobre a memória, novo espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, com previsão de estreia para novembro, inspirado no conto A Outra Morte, de Jorge Luis Borges. No elenco, Jyesse Ferreira, Xico Cruz e Cláudio Marconcine (Nem tudo é verdade. No parágrafo há falsas verdades, verdades omitidas e quase mentiras).

Independentemente de método, procedimento, sistema, invencionice, metodologia ou caos, qualquer fazedor teatral quer, no fundo no fundo, atingir a verdade cênica – aquela célula orgânica, pulsante e crível chamada de bom espetáculo. Queremos atingir a verdade. Queremos que o espectador reconheça no nosso fazer a honestidade, empenho e reflexão que só a verdade pode reverberar. Queremos um diálogo verdadeiro, franco. O que o teatro deseja é estabelecer com o espectador um pacto de confidencialidade íntimo, verdadeiro; sem simulacros, sem mentiras, sem meias-verdades, sem falsidades, sem desculpas de botequim, sem falsas promessas, sem confissões dúbias – sem que o espectador fique com aquela sensaçãozinha desagradável de pensar: essa Pequena tá me enrolando. Para nós, teatreiros, o espetáculo é o nosso confessionário: nele assentamos o nosso compromisso de fidelidade com a plateia, e a única coisa que pode dar atestamento a esse voto é a verdade. Exagerei? Não creio. Num mundo tão blasé, o teatro exige de nós intensidade, e como o que exercito neste blog é a tentativa de traduzir o que lá se passa, sempre me apresento a você assim, com a intensidade de quem acredita na eternidade da nossa relação – mesmo sabendo que você, traiçoeira leitora, leitor infiel, me trocaria antes do fim deste parágrafo por qualquer escritorzinho mixuruca que sussurre ao seu ouvido palavrinhas doces.


Mas, o que é a verdade? O que na nossa vida é verdade? Quantas verdades padecem em poucos meses? Quantas verdades são trocadas por vinténs? Quantas verdades sucumbem a um bom argumento? Quantas verdades um olhar consegue esconder? Quantas verdades são destruídas pelo acúmulo de pequenas mentiras? Quantas mentiras se tornam verdades pela simples repetição? Quantas das nossas histórias são verdadeiras? Quantas verdades são política? Quantas condenações aconteceram por verdades forjadas? Quanto de verdade a história nos contou?

Nossa montagem propõe tratar disso, e daquilo, e daquilo outro. E hoje se depara com a busca da verdade no seu principal instrumento dramático: o ator. É nesta fase, em sala de ensaio, que tudo o que se busca, se experimenta, se experiencia e se pesquisa, tenta fazer pulsar no corpo do ator essa verdade cênica que traduzirá com eficiência todos os dizeres que propomos reflexionar no espetáculo. Conseguir isso é o nosso desafio, e único condutor que norteia a nossa empreitada.

A prova disso é o quanto o Quadro de Antagônicos – nosso método de montagem – vem sofrendo modificações, alterações, reconfigurações, a partir de cada encenação. Como o que buscamos é a verdade cênica, o que sistematizamos até aqui nunca foi posto como norma, e sempre estivemos atentos a qualquer tipo de engessamento que essa metodologia pudesse apresentar, tendo em vista que o que nos motiva e guia é o resultado final: um espetáculo honesto.


Porém, a verdade, em tempos áridos como os de hoje, costuma ser frágil. E por isso nos entusiasmamos com a ideia de refletir sobre a memória, a história, a verdade, a tortura... frágil como o filamento de uma lâmpada incandescente. Frágil como uma promessa. Frágil como o último suspiro. Frágil como uma paixão adolescente. Frágil como o desejo de construir uma sociedade mais justa. Frágil como o sonho mais repetido neste blog: mudar o mundo.

Mas não se aflija, tenha em mim uma âncora de esperança. Há verdades incorruptíveis que me perpassam desde o dia em que me percebi fazendo teatro. Por exemplo: não sou homem de fases, de momentos; sempre fui de eternidades. Minha opção pelo teatro é minha melhor causídica. Penso na Pequena eternamente; morrerei nela, mesmo que amanhã seja expulso por excesso de intensidade. Nunca neguei ser um indivíduo insuportável. Portanto, sei que estou sujeito a isso.