domingo, 8 de abril de 2018

O teatro como mediador


O teatro não precisa de mediação. Ele é o mediador do humano com o mundo. Ele faz a mediação entre o espectador e o incompreensível universo que o entorna. É dele a responsabilidade de traduzir o ininteligível, de apresentar o espanto, de aflorar o entendimento. Se passarmos a construir cênicas que exijam a mediação de um programa, de um curador, de um crítico, de um debate, o que sobra para um reles mortal como eu, um humano que busca a mediação do teatro para tentar entender um mundo incompreensível? Como sobreviver sem a mediação do teatro para processar um mundo de radicalismos, fobias, racismos e arbitrariedades? O teatro precisa preservar seu poder de mediação, conduzir o acordo para a necessidade da diversidade.  O teatro precisa manter o atilamento que lhe é peculiar na árdua tarefa de desvendar o humano ser; esse lugar de conflitos, exageros, extremismos, abusos, intolerância e medo. Colocar o teatro em um lugar de expectativa, em um lugar de passividade, em um lugar de espera pela mediação para a sua fruição, é aniquilar sua principal característica, a presencialidade, o tête-à-tête com o espectador; a tradução eficaz do que o sujeito vê e o que o visto esconde. O teatro não muda o mundo; muda a leitura de mundo do espectador, e isso não pode acontecer se a relação entre o teatro e o espectador exige uma mediação.

Digo isto porque estamos em Alta Floresta, no Mato Grosso, lugar de humanos que vão ao teatro na busca de entender a humanidade. Durante os debates ao fim das três apresentações de Velhos caem do céu como canivetes – e nos mais de duzentos debates que fizemos nos últimos anos –, pude perceber isso com larga clareza. Os comentários, as reflexões, os apontamentos, tudo o que ouvimos reforça o poder de mediação que o teatro tem, a valia de ser o instrumento que favorece a compreensão das faltas, das falhas, das navalhas que cortam um país desgovernado. Se atravessarmos, obrigatoriamente, um intruso na compreensão do espectador, ele se sujeitará à opressão do conhecimento como instrumento de poder, subtraindo sua liberdade de escolhas, percepções, leituras, bricolagens.

Percebam que meu argumento vai contra a “obrigatoriedade” do mediador; põe o acento nas obras que exigem uma mediação. Então, por que e para que fazer um teatro que exija, necessariamente, ser mediado? Por que extrair do teatro seu discurso direto, que por si só, já é metafórico, poético, complexo? O que ganhamos complicando radicalmente o diálogo com o espectador? E pergunto isso desde um lugar de criação, em um grupo que tem por peculiaridade provocar a reflexão do público através de montagens complexas. Contudo, me preocuparia saber que nossos espetáculos exigem a explicação, a tradução, a mediação de outro instrumento que não a própria fruição da apresentação. Penso que esses instrumentos devem ser disponibilizados, favorecem a interlocução, mas a obra não pode ser hermética ao ponto desses mecanismos serem indispensáveis para o acesso, como já acontece em diversas experiências nas artes visuais. O que se ganha com isso? Sei o que perdemos. Quando vou ver uma peça que obriga uma mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como espectador. Eu não preciso que ninguém me explique a obra. Eu quero errar à vontade, quero descobrir, quero brincar de entender; mas a obra precisa me dar esses caminhos, a obra precisa operar os códigos de linguagem que me permitam o acesso às camadas mais profundas, a obra precisa me dar as pistas para o meu trôpego caminho, não o mediador. Depois, o resultado disso se opera na minha cabeça das formas mais diversas, não necessariamente como o artista imagina, e muito menos como o mediador sugere. Digo, o quão complexa precisa ser uma peça de teatro para que o espectador não tenha condições de acessá-la sem uma mediação? Por quê? Para quê? Para quem?

Velhos caem do céu como canivetes tangencia esse tema, e circular pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura não deixa de ser uma oportunidade de fazer reverberar essas perguntas, e provocar as respostas. Estamos só no início da nossa jornada, e hoje partiremos para Primavera do Leste/MT, que receberá nossa oficina, outro intercâmbio, mais três apresentações e seus respectivos debates. Momentos do fórum permanente de reflexão que propomos para os nossos consortes de jornada e para você que acompanha a experiência, e as elucubrações provenientes desta. Qual será a próxima?

5 comentários:

André disse...

"Quando vou ver uma peça que obriga uma mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como espectador"...

Rosa Ewerton Jara disse...

"Quando vou ver uma peça que obriga uma mediação, seja ela qual for, me dá preguiça. Me sinto desprestigiado como espectador. Eu não preciso que ninguém me explique a obra. Eu quero errar à vontade, quero descobrir, quero brincar de entender; mas a obra precisa me dar esses caminhos, a obra precisa operar os códigos de linguagem que me permitam o acesso às camadas mais profundas, a obra precisa me dar as pistas para o meu trôpego caminho, não o mediador."
Perfeitamente isso! Belíssima reflexão, Marcelo.

João Vicente disse...

Flexinha, você tocou num assunto interessante. Permita o meu ponto de vista:
Se existe alguma “função” para qualquer uma das artes cênicas, esta seria proporcionar uma EXPERIÊNCIA ESTÉTICA.
Ou seja, a obra deveria ser capaz de proporcionar essa experiência pessoal e intransferível.
Portanto, qualquer opção em colocar “goela abaixo” uma das mil possibilidades de experiências (pode ser reflexiva, transformadora, sensível, emotiva, racional, não importa...), seja pelo mediador ou pelo próprio criador da obra, considero essa ação como um - com o perdão da força da expressão - ESTUPRO ESTÉTICO, além de uma pretensa maneira de colocar na arte cênica aquilo que ela dispensa: “hierarquia de conhecimento”.

Marcelo Flecha disse...

É bom saber que dialogamos, André e Rosa!

Marcelo Flecha disse...

Você demora a aparecer, João, mas quando aparece é mais certeiro que um Flecha! (Risos) Venha mais! Saudades!