domingo, 16 de abril de 2017

H(á) poesia na rua do Giz


Um querido amigo – prosista de estimada destreza –, em uma das nossas intermináveis conversas, queixava-se da falta de poesia do mundo contemporâneo. De fato, o mundo vem perdendo sua capacidade poética, além de naufragar em incompreensões de metáforas, ironias, paródias, hipérboles...
No momento em que o mundo anda tão polarizado, não há espaço para sutilezas, e tudo é preto ou branco, macho ou fêmea, esquerda ou direita, conhecimento ou ignorância, virtude ou defeito – um Quadro de Antagônicos Social, se me permitem a propaganda. Essa realidade cristaliza uma contemporaneidade repleta de cruezas, escancaramentos e obviedades, embrutecendo e emburrecendo o interlocutor e conduzindo-o a uma incapacidade de ler além do óbvio, de perceber as transversalidades, de elucidar um discurso metafórico, de alargar o diálogo além da dureza de verdades e mentiras.
Naturalmente, e como deve ser, a arte também padece desse sintoma, e o teatro não é a exceção que confirmaria a regra, como eu gostaria que fosse. Essa constatação provoca meu pensamento e atenta ao fato de encontrarmos hoje no teatro um lugar de rigidez, sobriedade, objetivismo e sequidão jamais vista. Esse presente cruel afoga a possibilidade de construir um fazer teatral mais intrincado, abstruso, complexo, sofisticado (atualmente usar essa palavra é quase uma obscenidade), e ao não dialogar com o entorno corre-se o risco de receber a pecha de anacrônico.
O que estamos perdendo ao transformar uma arte que se valia do símbolo, da ironia, das camadas de leitura, da transversalidade, em uma arte de discurso direto (o trocadilho que faço com a principal característica do gênero dramático é proposital)? O teatro sempre exigiu do espectador uma prontidão maior do que a do dia-a-dia, e todo frequentador sabia que o encontro teatral desafiaria sua percepção ao construir um universo repleto de metáforas, ironias, escamoteações, acidezes, quiproquós – uso uma palavra como essa e ainda não quero pagar de arcaico. Ao tornarmo-nos replicadores de uma realidade nua e crua não estaremos reduzindo o poder transformador social do teatro? É necessário perder a ternura? O mundo não acaba ficando enfadonho sem poesia?
Toda onda deve servir de alerta, principalmente para nós, artistas de teatro, que temos como única arma o emparelhamento e espelhamento – distorcido ou real – da vida. Penso que quanto maior a crueza contemporânea, maior devia ser a nossa exigência em nos desafiarmos na construção de um discurso menos óbvio, pois, o que é dito com destreza perdura, e o que é dito com simplismo se dilui com a mesma potência com que se projetou. Não me canso de acreditar que ainda há lugar para um dizer desafiador, carregado de significados, provocativo, incendiado pelo poder de afrontamento e confronto que ele possui, pois sabemos que o discurso robustecido já dobrou reis, generais e presidentes.
Falta poesia. Tudo está muito frio, cru, direto, seco, óbvio, concreto, real. Não deixemos que o teatro perca seu quê de lúdico, lírico, lúcido. Acreditemos que é possível contestar, provocar, refletir, indagar, renegar com a faca nos dentes, porém, montados em um unicórnio azul. Todas as atrocidades do mundo não bastam para acabar com uma única poesia. Todos os palavrões do mundo não têm o poder de uma única metáfora. Todas as leis do universo se esvaem perante uma simples ironia. Toda certeza se curva diante da primeira pergunta.
A Pequena Companhia de Teatro segue fiel a esse compromisso. Ao trabalharmos na adaptação do conto “A outra morte”, de Borges, sabemos que nossa intenção é provocar uma reflexão além do pequeno horizonte, e também sabemos o preço que pagamos nos últimos dez anos por esse exercício. Claro que não estamos isentos, e todo início de processo nos apresenta uma série de caminhos engajados, antenados, contemporâneos, para, durante a depuração do todo, se chegar ao que realmente nos interessa. Nem sempre é o que interessa ao novo. Nem sempre é o que interessa ao mercado. Nem sempre é o que interessa à espetacularização. Mas, sempre acreditamos que seja o que interessa ao espectador, único motor dessa máquina chamada teatro.
Os mais severos poderão argumentar que advogo em causa própria. Nesse caso, para salvaguardar meus argumentos, volto-me para o amigo espectador que motivou esta postagem: há quem ache que falta poesia no mundo contemporâneo. Tratando-se da Pequena Companhia de Teatro, não há o que temer, pois, não pode faltar poesia em uma companhia cujo endereço seja: Rua do Giz.
 

2 comentários:

Unknown disse...

Belo texto, Marcelo - aplaudo o novo projeto da Pequena Companhia e aproveito o teu tema (a falta de poesia na vida contemporânea) para anunciar que este ano estarei publicando o meu primeiro livro de poesias, que será lançado por uma editora de SP. Já está convidado para o lançamento.

Marcelo Flecha disse...

Salve, poeta! Até que enfim! Já estava passando da hora dessa publicação! Espero que chegue logo nas minhas mãos! Abraço, e apareça!