sábado, 12 de dezembro de 2015

Cansei de ser enganado


Estou cansado de ver artistas abrindo concessão por tudo: dinheiro, religião, crítica, opressão. Uso hoje o dinheiro como objeto de provocação. Estou cansado de assistir a obras que não são o que seriam, porque a redução de custos comprimiu a arte a ponto de mutilá-la. O cenário não cabe no orçamento? Faço de um barbante meu castelo. Não dá para pagar a banda inteira? Vou de voz e violão. A grana não cobre a contratação de luz? Faço da minha incandescência uma soturna escuridão. Artistas vão de multimídia a monobloco em fração de segundos para adaptar conceitos, sem se ater aos efeitos, que na maioria das vezes se tornam defeitos. Estou cansado da argumentação etimológica, com palavras de ordem – pós, contemporaneidade, processo, efemeridade, flexibilidade –, para camuflar a óbvia necessidade de faturar. Estou cansado de ouvir a frase “artista tem que sobreviver” como argumento para estuprar a arte, o pensamento, a paixão, a víscera, a vocação. Estou cansado de ouvir a explicação do artista me dizendo como é a apresentação original, o quão genial é a obra pressuposta, enquanto eu vejo o Frankenstein que ele criou para poder chegar até aqui apertando o orçamento. Estou cansado de que mintam na minha cara sem pudor, estou cansado da conivência do espectador, estou cansado da ausência de fervor. Estou cansado de ficar em casa com medo do que vou encarar no teatro, no museu, na praça. Onde foram parar as deliciosas frases “botei do meu bolso”, “gastei tudo o que eu tinha”, “tomei prejuízo”, para explicar a odisseia que foi conseguir trazer essa obra magnífica a um estado tão periférico como o Maranhão? Estou cansado de boas ideias e péssima execução. Estou cansado de ser condescendente para não magoar o amigo, de ser hipócrita para não parecer sempre crítico, de ser taxado por não comungar com a mediocridade, de ser o excêntrico porque não engulo qualquer coisa. Estou cansado da ideia de que qualquer coisa é melhor que nada, quando o nada é bem melhor do que qualquer coisa. Estou cansado de levar gato por lebre, apesar de preferir gatos. Não aleije sua obra, não flexibilize em demasia, não venda seu rigor, não comprometa seu dizer, não subestime o espectador. Recentemente vivemos uma situação similar, onde precisamos ajustar nossa montagem a um projeto de circulação, e o norte do país verá Velhos caem do céu como canivetes sem um centímetro de prejuízo em relação ao espectador que assiste o espetáculo em nossa sede; não fosse assim, não veria. Portanto, não me venham com arengas.

2 comentários:

Hamilton disse...

Como diria o poeta Arnaldo Antunes, "antes a dívida que a mesquinhez".

Marcelo Flecha disse...

Que ironia... (Risos)