Vinte anos da minha relação com o mecenato |
Tem coisas que o mercado não entende. Coisas que não
dizem respeito ao intrínseco mundo do dinheiro, do comércio, do negócio. Aqui
sintetizarei todo esse conceito econômico-financeiro em um termo que será
tratado como uma entidade, um fantasma, um encosto: Lei Rouanet. Ela
não entende que a Pequena Companhia de Teatro não tenha um carro e que use o
meu, sem dó nem piedade, e sem pagar nada por isso, por acharmos necessário
otimizar os custos para podermos viabilizar nossos projetos. A lei Rouanet não
entende que o motorista desse mesmo carro seja eu, e que já tenha dirigido mais
de trinta mil quilômetros em projetos de circulação sem receber um único
centavo a mais do que os recebidos por Katia, Jorge e Cláudio, pelo mesmo
propósito anterior: otimizar, viabilizar, realizar. A lei Rouanet não entende
que a Pequena Companhia de Teatro jamais teria condições de comprar uma sede
como a nossa, e que eu gastei tudo o que juntei na vida e parte do que herdei
do meu pai para comprar um teatro, e que o prazo de retorno do investimento é
de trezentos e cinquenta anos. A lei Rouanet não entende que dirigi o
espetáculo Medeia, um fragmento, para a Cia. A Máscara de Teatro,
gratuitamente, por acreditar no trabalho do coletivo mossoroense. A lei Rouanet
não entende que pelo cachê de direção eu também faço o cenário, a iluminação, o
figurino, opero luz e som, teorizo, faço a faxina e cuido do jardim. A lei
Rouanet não entende que o espetáculo O Acompanhamento só existiu graças à
clandestinidade e que a clandestinidade é fundamental para a existência da
arte. A lei Rouanet não entende que plateias de cinquenta pessoas são tão
importantes quanto plateias de mil e quinhentas. A lei Rouanet não entende que
um homem pode não ser ambicioso, ganancioso, interesseiro, mercenário. A lei
Rouanet não entende que a prestação de contas é uma ação e não uma profissão. A
lei Rouanet não entende que o meu maior patrimônio é o meu conhecimento. A lei
Rouanet não entende que eu faça oficinas de graça, palestras de graça,
treinamentos de graça, consultorias de graça, mapeamentos de graça, jantares de
graça, pesquisas de graça, quando a situação me é cara. A lei Rouanet não entende
que todo artista bate o escanteio e corre para cabecear. A lei Rouanet não
entende de utopia. A lei Rouanet não entende que, ainda jovem, troquei um
caminho fértil para fazer dinheiro por fazer teatro, e que ganhei mais correndo
o mundo do que correndo atrás de grana. A lei Rouanet não entende que a lei é
para todos. A lei Rouanet não entende que fazer teatro é decepcionar a família,
virar piada entre os amigos, receber a pecha de boa-vida. A lei Rouanet não
entende que o Brasil é maior do que o Projac. A Lei Rouanet não entende que
mesmo que desapareçam as leis eu continuarei fazendo teatro. A Lei Rouanet não
entende que a lógica, o pensamento, o desejo do artista é diferente do que
almeja um investidor. A lei Rouanet não entende nada de arte. A lei Rouanet não
me entenderá jamais.
4 comentários:
O ABC da Lei Rouanet é de quem não entende nada mesmo: atrasar, burocratizar, complicar... Estudei um pouco sobre ela e perdi a paciência de tanto perceber que ela mais atrapalha do que ajuda. Não sei bem a quem ela beneficia, mas com certeza não aos meus amigos, artesãos de almas, materializadores de magia, pq esses continuam fazendo de tudo um muito. Eu? Meus 80 anos mentais me fizeram perder também a vontade de insistir num futuro próximo ou distante com essa lei... Espero que daqui a trezentos e cinquenta anos, a lei Rouanet (e seus pares) tenham aprendido um pouco mais sobre arte...
Beijo, Marcelo.
P.S.: não sabia que tu era jardineiro hahahah
Você precisa vir com mais frequência para ver os progressos do nosso paisagismo, Rute! Belas palavras, dignas da sua vetustez precoce. Só espero que o seu futuro continue reservando uns minutinhos para a leitura das tolices deste teimoso amigo.
Vivaaa a arte, viva ao teatro!!!
/singelaformadeapoioedizerquepasseielioquevcescreveu
Valeu, Anônimo!
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