domingo, 13 de agosto de 2017

Como nossos pais


Não somos os mesmos, nem vivemos como os nossos pais. Culpa do teatro. Se existe algo neste quase meio século de vida que me faz sentir orgulho é isso. Ressalvas à vida que meus pais levaram? Não, apenas a viva constatação de ter traçado o meu caminho, e por consequência, vivido a trama que o teatro e seus quiproquós prepararam para mim. Uma vida pautada pelo abrir e fechar de cortinas, mesmo quando as cortinas estão ausentes, e o balanço do tempo é dado pela espera da próxima apresentação.

Essa opção não trouxe uma vida mais amena, nem farta, nem segura, nem tranquila; trouxe a vida da incerteza, da provocação permanente, do chacoalho constante, do estado de alerta, da destituição da zona de conforto, do descompasso entre realidade e ficção; aparelhos para a surdez humana, que favorecem a audição das marcas deixadas pelas tiranias que massacram o homem, e que meus pais não conseguiram ouvir, pois eram aturdidos pelo sistema.

Nossos ídolos tampouco são os mesmos. Meu pai adora dinheiro. Pelo teatro abandonei o caminho do capital, e carreguei os senões de boa-vida, idealista, ingênuo, irresponsável. O teatro fez com que o dinheiro se tornasse para mim o que penso que é: papel que os adultos usam para brincar de troca-troca em um jogo onde se troca papel por coisas, e ganha aquele que tiver mais coisas ou mais papel, sem questionar se a coisa é mais valiosa que o papel; o que se sabe é que nesse jogo, um papel de dinheiro sempre valerá mais do que o papel que carrega um poema.

A opção do teatro me distanciou do destino traçado pela sociedade – um destino que seria lindo, contudo, não necessariamente meu. Outro caminho, para além das coisas que se aprendem nos livros. Não fui engenheiro civil, nem nada do que é necessário ser para ser alguém na vida. Fui o que meus passos trilharam sem saber o que trilhavam, flutuando no abismo da existência, guiado pelo ideal da transformação, do novo, da vida na terceira margem, da esperança de um mundo melhor para todos, mesmo sabendo que não tinha capacidade nem para organizar meu próprio mundo.

A essa altura você deve estar me achando um sonhador, e sabemos que viver é melhor que sonhar, sim. Mas seria possível viver e sonhar ao mesmo tempo? É essa a opção do artista. Enquanto a vida vai se consolidando como injusta posso sonhá-la justa, motor para que meus atos tentem transformá-la em justiça. É uma equação tola, mas todo artista é um tolo. Tolo é aquele que resolve viver além do posto, e não transigir com as sedutoras artimanhas do estabelecido. O que está posto, posto está. O que há além do posto, diz muito mais da vida do que a gasolina que gastamos para chegar até lá.

Não quero lhe falar do meu grande amor, porém, não fosse o teatro, não teria conhecido a Katia, minha esposa, minha produtora, minha companheira de grupo; a parceira improvável que merecia o engenheiro, o fazendeiro rico, o empresário de sucesso. Improvável porque é pouco provável suportar um Marcelo por mais de um ano, portanto, suportar um Marcelo artista por mais de vinte é tão improvável quanto ganhar na Mega-Sena. Logo, a opção que fiz pela vida que tenho conseguiu a façanha de me fazer ganhar na Mega-Sena.

A intenção desta postagem não é lhe contar como eu vivi, apenas pontuar o quanto as nossas opções na vida dizem de nós mesmos. O quanto estamos carregados de ancestralidade e o quanto podemos alterar do nosso futuro. O quanto somos ditados por forças sociais e o quão cordeirinhos inocentes somos ao acharmo-nos artistas que podemos mudar o mundo. A intenção é perceber que por termos feito tudo o que fizemos, podemos ser nós mesmos, e não necessariamente viver como os nossos pais.

Mesmo no que se refere ao sentido de descendência, tudo pode ser diferente. Eu nunca quis ter filhos biológicos, nem fiz pela Morgana – essa moça linda que enfeita a foto acima – trinta por cento do que um pai faria por uma filha, e mesmo assim, ela me considera como um pai. Em termos de paternidade, não posso me queixar, o teatro deu um nó na minha existência e tive a filha que não planejei e o amor que não mereço.

Tudo pelo avesso. Tudo atravessado. Uma trilha na contramão. Uma íngreme, sinuosa, argilosa trilha construída além dos preceitos sociais, sistêmicos, econômicos; e sou tolo ao ponto de achar que isso é verdade. E é o descompromisso com o ridículo, o destemor da burla, a imunidade à chacota que me permite ser eu mesmo, o não planejado, o desgovernado, o idiota. Portanto, hoje, do alto da minha tolice, e atravessada a maior parte do caminho, posso afirmar, sem receio: eles não venceram, nem vencerão, jamais.

8 comentários:

Andreilson de Castro disse...

Lágrimas...

Unknown disse...

Feliz Dia...texto arrebatador. E vamos seguindo na contramão. Que riqueza...amo

Ricarda Ster disse...

Emocionada... Que beleza de existência!

Marcelo Flecha disse...

Andreilson, Luciana, Ricarda! Obrigado pelas palavras! E vamos!

Danilo disse...

Hoje ao visitar a página do Teatro e dar uma olhada na programação fui até o seu blog e encontrei este seu belo texto "Como nossos pais" com o qual muito me identifiquei e me emocionei. A humanidade, definitivamente, não está perdida. Muito grato em mostrar a sua.

Marcelo Flecha disse...

Poxa, Danilo! É tão bom ver reverberar este nosso singelo excercício de reflexão permanente a que nos propomos aqui! Obrigado, e apareça mais!

Lya Forte disse...

Como não se emocionar com um texto desses? Nossas escolhas determinam o que somos realmente e ser artistas é uma profissão de doação, mas também capaz de exercer todas as outras profissões numa só pessoa. Quando se atua podemos ser médico, advogado, professor ou mendigo...

Anônimo disse...

( jeyzon Leonardo)

carregando...