domingo, 18 de setembro de 2016

A vitória da vaidade


O que está acontecendo com a sensatez humana? A pergunta, que será a provocadora da série de postagens que começo hoje, surge da espantosa capacidade de me surpreender que a sociedade contemporânea vem desenvolvendo, e que me transforma, cada vez mais, neste vetusto e incorrigível homem das cavernas.

Hoje ajusto o foco na vaidade, no autorretrato, na autopromoção, no autoelogio, na visibilidade a qualquer preço. Como chegamos a isso? Se fizermos um pouco de memória, não muito tempo atrás, tudo o que englobava esse tipo de comportamento era defeito grave digno de rejeição social e, em alguns casos, motivo de chacota, galhofa, pilhéria, caçoada, zombaria, troça, que atualmente recebe o nome de bullying – como se palavras como assédio, intimidação, tirania, opressão, ameaça não existissem no nosso vernáculo.

Quando foi que isso mudou? Em que momento a vaidade deixou de ser um defeito, um famigerado pecado capital, e se transmutou em qualidade? Que curiosa transformação colocou a humanidade nessa disputa despudorada e explícita para ver quem é o mais vaidoso? Como não preciso mais de provas, transformarei as minhas suspeitas em convicções, e tentarei lançar um olhar sobre a desumanização da humildade e o (in)consequente envaidecimento da vaidade.

Suspeito que a transformação ocorreu quando a lente da máquina fotográfica, que era a tradutora do nosso olhar perante o mundo – um olhar particular, único, que mostrava, através do meu enquadramento, das minhas opções de cores, das minhas escolhas, como eu enxergava o universo à minha volta –, foi rotando, sutilmente, em direção ao nosso próprio rosto, à nossa cara, à nossa maquiagem carregada, à nossa barba bem-feita, à nossa sobrancelha desenhada, ao nosso lifting, ao nosso Botox, à nossa necessidade de escancarar nossa belíssima perfeição estética, promovendo a cultura do autorretrato, do auto-almoço, da auto-paisagem, do auto-eu-mesmo-de-tudo-o-que-seja-de-mim, que hoje atende pela alcunha de selfie. Vaidade. Ao virarmos a câmara para nós, deixamos de entender a importância do nosso olhar particular perante o mundo, e transformamos o mundo na vitrine onde exponho o meu eu para uma infindável cachoeira de curtidas catatônicas.

 
Com a mesma sutileza, a humildade passou a ser defeito, uma característica a ser ocultada, mascarada, sob o risco de apresentar-se como uma pessoa com baixa autoestima. A humildade passou a ser conhecida como falsa modéstia, como se a modéstia fosse uma qualidade impossível de existir na atualidade. A humildade chegou ao ponto de ser a própria vaidade, se o humilde não se descuidar ao defender seu comportamento. Ouçam o meu brado retumbante: humildade não é defeito! A humildade precisa ser preservada, exercitada, ou viveremos a amargura de trocar uma mesa com velhos amigos por velhos em uma mesa com retratos antigos.
 

No início deste século dediquei um ano inteiro a um dos meus inúmeros fracassos poéticos, um livro que se chamava “O Calvário da Vaidade”, onde eu decidia enfrentar um dos meus mais temidos fantasmas, tentando dissecar esse pesado capital, na inútil tentativa de me tornar um homem melhor. Claro que fracassei, poeticamente, humanamente. Contudo, a experiência me acurralou, e ao terminar minha hercúlea jornada me deparei com um dilema matricial: a publicação do conteúdo do livro não seria um exercício de vaidade? Se tudo o que eu queria com a experiência era exercitar a humildade, o pavoneio da exposição comprometeria minha empreitada. Fracassei no exercício. A humanidade jamais viu os escritos, não por minha decisão de não publicar o livro, e sim pela mediocridade do seu conteúdo. Insisti, inscrevi, enviei, implorei, mas nunca consegui publicar. Todavia, inescrupulosamente, tentei. A tosca anedota demostra que, apesar do meu esforço em extirpá-la, a vaidade me venceu. Aviso aos navegantes que se regozijam ao saber do meu fracasso: não está morto quem peleja, e continuo meu exercício cotidiano.
 
Se eu procurei, sem sucesso, expurgar a vaidade através da literatura, a literatura tornou-se uma das grandes responsáveis pelas consequências que bradejo hoje, através de um gênero textual chamando de autoajuda. Os livros deste gênero são insufladores de autoestima, vaidade, autoafirmação, egolatria. Para estes, um ser humano humilde é um ser menor, com autoestima baixa, precisando de ajuda, mergulhado no abismo da sua insignificância. Para que ler o Dom Quixote, e se angustiar com a mediocridade do Cavaleiro da Triste Figura e sua derrocada perante a vida, se posso enriquecer meu repertório de ostentação qualitativa com a leitura de livros que vão direto ao ponto: seja um vencedor?
 
É isso o que este momento histórico pretende: camuflar nossa insignificância. Esconder o grande paradoxo da existência, nascer para morrer. Com essa investida, o sistema ameniza as angustias do humano ser, enquanto se alimenta com o consumo de processadores de selfies, cosmeticomilagres, app’aradores de falhas, gerando o consumismo predatório que hoje nos assola (tema de uma próxima postagem). Não lembro se Narciso se afogou, mergulhando atrás da sua imagem, se definhou contemplando sua beleza, ou se abriu um perfil em uma rede social. Só sei que sua experiência pouco tem contribuído para que as máquinas fotográficas recuperem seu objetivo original.  
 
 


7 comentários:

festluso disse...

Aí fogueiras!

Rosa Ewerton Jara disse...

Amargura sem fim, ser Humano. Selfie or not selfie. Eis...

Marcelo Flecha disse...

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, Rosa e Pellé...

Anônimo disse...

Tento fazer uma reflexão cheia de teoria, e me pego: escreve- apaga- escreve-pensa-apaga-escreve... busco as melhores palavras... pq?...haa a vaidade

Marcelo Flecha disse...

Quem será esse anônimo tão reflexivo?

Marcelo Flecha disse...

Cássia Pires disse...

Estou atrasada, mais sempre chegando rs. Nossa, uma estrada de muitos caminhos a se pensar sobre esse tema. Acho que as pessoas de fato viraram o ângulo da câmera pra si, essa auto valorização não é pra ser aplaudida não, o excesso continua sendo prejudicial e a vaidade ainda arde quando nos forçada ao gole seco. Será mesmo uma questão de agora? Será fruto das super modernidades? Seria esse o auto retrato do homem "cyber zumbi", esse homem morto sem vontade e sem iniciativa, ou talvez o auto retrato do homem "sem alma" como diria Sartre. Ai meu caro autor, terei que repensar todos esses caminhos abertos com suas reflexões, pensar ainda a contribuição desses "tempos liquidos" para o maior afloramento das vaidades humanas.
Deixo aqui uma poesia de um amigo chamado José António
"Vaidade
Vai
Arde
Doravante
Que a dor avance"

Elizandra disse...

Ai... a fogueira das vaidades...