domingo, 15 de fevereiro de 2015

O caminho


Lendo (e vendo) Os Livros de Miranda, uma pergunta feita durante um dos diálogos entre Maurice e Fernando me tomou de assalto: O que falta para esse ator? A pergunta atinge o cerne do ofício de diretor, pois, sua função, cabe na fenda apresentada por essa indagação. O ator é o ser absoluto do rito teatral; é ele que produz o estado, determina a ambiência, constrói a atmosfera, provoca o diálogo, materializa a ideia. Quanto maior a presença do ator, menor o interstício deixado pela pergunta – não se trata aqui de maior ou menor qualidade, e sim, das dúvidas, bloqueios, vacilações que qualquer processo de montagem gera no ator, com maior ou menor intensidade, dependendo de cada caso. Quando essa greta surge, o desafio de preenchê-la se apresenta para o encenador, e este é convocado para sanar, com suas falências, as incertezas dos seus pares. É o exercício de quebrar-se, para que o som vindo dos ossos partidos ecoe além do óbvio, e chegue ao ator em forma de magma – quente e barroso, para que o ator possa laborar. O que falta para esse ator? No teatro, uma pergunta não deve receber respostas, e sim, caminhos. O segredo do nosso ofício está na forma de sugerir caminhos, e na coragem para acompanhar a caminhada. Se o caminho for tortuoso, a dor será conjunta. Se circular, retornaremos juntos ao mesmo lugar, para partir de novo. Se árduo, a fadiga será mútua. Se certeiro, o gozo só durará até a próxima pergunta. No teatro, as encruzilhadas são de tão diverso mistério, que não há possibilidade de ensaiar uma alternativa, uma solução, um procedimento, antes que o imbróglio aconteça; por isso os caminhos, por isso a permanente suspensão da certeza, por isso o virginal sobressalto, e o exercício criativo que advém dessa pressão. Quando um encenador pensa saber, sabe menos do que pensa. Quando oferece o que não sabe, proporciona a construção de um saber coletivo – fenômeno basilar para a constituição do fenômeno teatral. Para tal, o diretor de teatro precisa se apresentar em estado permanente de presença criativa, mesmo que não consiga criar nada. Se essa presença arrefecer, corra para debaixo da mesa.

4 comentários:

Anônimo disse...

Marcelo, com sua licença, vou inserir essa postagem no meu texto sobre direção teatral (nao sei pq me meto a escrever, se não dirijo, mas deixa quieto!) E aceito convites pra conversarmos sobre isso de novo, que acha? Um abraço!

Marcelo Flecha disse...

Fique à vontade, querida Rute. E o convite está feito. Como não saio de casa, é só marcar. Será um prazer!

15 de fevereiro de 2015 20:24 Excluir

João Vicente disse...

Pois bem, concoro em gênero, número e grau. Compartilho desse pensamento e, não são poucos, os momentos que tenho de correr para de baixo da mesa. Que bom que não é só comigo.

Marcelo Flecha disse...

Salve, João! A mudança de perspectiva. Que bom que você gostou, amigo!