Foram trinta dias na
estrada. Dias de desassossegos e calmarias. A estrada é a palmatória que abarba
os homens. Os desiguais se alinham, por bem ou por mal. Agenda, horários,
refeições, compromissos, lazer, fuso, tudo gira em torno de um bem comum: o
sucesso da empreitada. Em circulação, tudo o que de humano possa ser patético,
se torna menor: manias, dores, humores, amores, rumores. A estrada dobra o
soberbo, brune o rústico, açoita a megera, contradiz o absoluto, adoça a
ríspida, ressabia o crédulo. Nenhum ser, por mais desumano, sai imune da
contaminação humanitária que uma circulação teatral provoca. Circulas com
teatro, humano és.
Domingo passado concluímos o
projeto Velhos caem do céu como canivetes, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. Foram 4 cidades (Alta Floresta/MT, Primavera do
Leste/MT, Campo Grande/MS e Dourados/MS), 12 apresentações, 1.226 espectadores,
12 debates, 4 oficinas, 86 concludentes, 4 intercâmbios (Teatro Experimental de
Alta Floresta, Teatro Faces, Grupo Casa e Coletivo Clandestino), colégios
visitados, professores provocados, alunos comprometidos, acessibilidade
efetivada, dever cumprido. Uma jornada plena. Plenitude é a palavra que define
o estado do que é inteiro, completo, total, integro. É como nos sentimos com o
resultado da nossa residência no Mato Grosso e no Mato Grosso de Sul.
Difícil resumir humanidades em
uma postagem, quando sabemos que a palavra é apenas um esforço humano de
traduzir a existência. O sentir humano é intraduzível. Viver é uma experiência esvaziada
de compreensões. Todavia, se a tarefa de um escritor é dar punho ao vivido,
faço das minhas sensações, matéria, e do meu teclar, palavras.
Nossa finalidade era
conseguir a maior interlocução possível com todos os atores do projeto; assim,
grupos, público, alunos, oficinados, produtores e amigos foram abraçados pelo
desejo de diálogo que nos moveu, e retribuíram com respostas muito mais
potentes que as pretensas provocações lançadas; revigorando o nosso desejo de
entender as condições em que se dá o fazer teatral, sobre os diversos aspectos
conjunturais de cada uma das realidades vividas. De sintomático, os apagões de
gestão pública que permeiam a vida do teatro, seja qual for a região, estado ou
município, se a fronteira que os margeia e contém é a de um país chamado
Brasil. Latente e lamentável realidade.
Entender o fenômeno teatral
sempre foi outro dos nossos desejos. Com se dá a relação entre a plateia e o
espetáculo? Por que essa relação se dá com permanentes altibaixos, fazendo
desabrochar o paradoxo do artista espectar a plateia? Quem faz ou fez teatro já
ouviu, em algum momento da vida, frases como: “a plateia estava difícil”, “que
plateia ótima”, “a plateia estava fria”, “o público foi maravilhoso”, “o
público reagiu bem”. Como é possível? Como, um mesmo espetáculo, pode ser
recebido de maneira tão plural? Como essa relação pode variar tanto de estado
para estado, de cidade para cidade? Como se dá uma plateia em estado de tensão
e outra em plena euforia se estão defrontadas com o mesmo espetáculo? Pode a
relação entre ator e espectador ser tão intrínseca ao ponto de conduzir a cena
para lugares tão distintos, mesmo quando se tenta ser absolutamente fiel ao
espetáculo? Neste ponto, o projeto não deu cabo de todas as respostas, nem
poderia, mas ajudou a reformular algumas perguntas que atravessaram nossos doze
anos de história, catapultadas pelas apresentações em cada uma das setenta
cidades que já visitamos.
Amparados na falta de discrição
que nos é peculiar, perguntamos; e ficamos sabendo de tudo, de todos, e sobre os
todos do tudo. Nossa permanente dissecação de realidades, apesar de
inconveniente, nos possibilita o mínimo entendimento das circunstâncias, meios
e procedimentos com que se operam os códigos da linguagem teatral; mas,
principalmente, das amarguras e doçuras da vida em grupo; seus atropelos, acertos,
desistências, rupturas, abraçamentos, espantos e confirmações. Diagnosticar o
quanto a vida em grupo é complexa, argilosa e difícil nos fortalece e fragiliza
ao mesmo tempo; servindo de alavanca para o salto necessário, problemático e libertador
que estamos programando. Teatro de grupo é uma somatória de falências
individuais que, processadas, reorganizam-se em potência criativa, desconstruindo
o “modus operandi” do individualismo contemporâneo.
Foi o que fizemos, e
fazemos. Perturbar os outros com espetáculos, perguntas, encontros, treinos, jantares.
Não sabemos fazer outra coisa. Perturbar a ordem, o poder, o silêncio, o sono,
o juízo. Obrigado aos perturbados consortes que nos aguentaram, do primeiro ao
trigésimo dia, e nos ensinaram que os caminhos podem não ser os mesmos, mas
convergem para o belo encontro entre a pergunta e a resposta. E obrigado ao Programa Petrobras Distribuidora de Cultura por permitir a distribuição
gratuita de um sonho maior: o de um país melhor para todos. Continuaremos, nem
que chovam canivetes.
2 comentários:
Pertubastes o meu sono. Obrigada por cada palavra ��
De nada, Brena! Espero poder lhe perturbar mais! Apareça!
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