domingo, 27 de maio de 2018

A vida que o teatro esconde


No início dos anos noventa vivi uma experiência que marcaria toda a minha vida teatral, e balizaria meus conceitos de potência criativa, disciplina, verdade, organicidade, prontidão e despudor. A jornada resultou em um mergulho experimental entre a atriz Noira Neuma e eu. O pretexto inicial, que envolvia outros participantes, era à montagem do texto “Perdoa-me por me traíres”, de Nelson Rodrigues, que, abortado não suspendeu a nossa pesquisa, e, sobre um novo pretexto – “Valsa Nº 6”, do mesmo autor – mantivemos o mergulho, somente ela e eu. Digo pretexto, pois no avançar da pesquisa, percebemos que a vivência dizia mais do que a montagem em si; quase que numa odisseia grotowskiana (falo do seu momento ritualístico final), a prática experimental que realizávamos contemplava mais os nossos anseios do que a pressuposta montagem, e, logo-logo Nelson foi esquecido, tanto quanto a cena, a dramaturgia, o espetacular e a relação palco-plateia. Absortos, embrutecidos, chocados, admirados, nos entregávamos, dia a dia, ao abismo que nos propusemos, e extraíamos desse mergulho, a vida que o teatro represa, e que acreditávamos como a pulsação verdadeira da cena não encenada; estávamos embevecidos da falta de experiência que exalávamos, mas seguros da sofisticação conceitual que experimentávamos. Como preambulei, a experiência me marcou. Carrego até hoje sensações, visões, cheiros, angustias, infortúnios e saberes dessa vivência.   

Hoje, em Caxias, depois de quase trinta anos, sinto lampejos ficcionais, pulsações do vivido, rememorações. Como já tratei na postagem Idiossincrasias de habitar Maranhão, tenho feito pequenas visitas para acompanhar a montagem de "A garota e o anjo", do Balaio Coletivo, e quem quiser saber detalhes sobre a sina de um grupo de teatro no interior do Maranhão, suas dores e sortes, meu estar, e demais intrigas, sugiro clicar no título que esconde o link e dar uma lida, pois vale entender o nosso problemático fazer teatral antes de redesenhar a distribuição de poder entre aqueles que se postulam para nos governar.

O que motiva minha postagem hoje diz respeito a esse "viver teatro", e a disposição criativa, que liga o experimento noventista aos meus dias em Caxias, colore o argumento. Aqui, um grupo de teatro tenta entender o seu processo, lida com os descalabros da opção, mas mantém pungente um vigor destemido.

O que buscávamos, Noira e eu, se a cena não era o fim? O que um pregresso esvaziamento de sentido formal pode ainda produzir no meu ser quase trinta anos depois? Sempre senti em mim resquícios de sabores oriundos dessa vivência. Sempre senti que eles estão lá, na Pequena, no meu trabalho com a Máscara, em tudo o que fiz até aqui.

Hoje tento falar, de maneira obtusa, daquele teatro que está além da cena. Daquele experimento irreproduzível, daquele processo abortado, daquela incomensurável pulsação perdida, daquele sussurro de vida plena que não tornou a se repetir, daquela inflexão perfeita que se foi, daquela ação que ficou gravada em nossa mente, e que a técnica não conseguiu reproduzir. O sopro da verdade. O grito emudecido pelo pranto. O corpo que ao saltar para no espaço. O abraço que carrega a dor do mundo. O aperto de mão que aturde nossa existência. O fim daquele ensaio que avisa: isto não se repetirá jamais. Hoje tento falar do que está fora dos sessenta minutos de cena. Hoje tento falar dos outros noventa por cento que formam o fazer teatral, e que o espectador desconhece. Toda obra teatral, por mais retumbante que seja, é um suspiro do vivido, um espasmo da experiência total, uma mísera reprodução imperfeita da verdade vivida no processo. Hoje tento falar de algo que não se define, e sei que não consigo falar nada.

domingo, 6 de maio de 2018

A arte de perturbar


Foram trinta dias na estrada. Dias de desassossegos e calmarias. A estrada é a palmatória que abarba os homens. Os desiguais se alinham, por bem ou por mal. Agenda, horários, refeições, compromissos, lazer, fuso, tudo gira em torno de um bem comum: o sucesso da empreitada. Em circulação, tudo o que de humano possa ser patético, se torna menor: manias, dores, humores, amores, rumores. A estrada dobra o soberbo, brune o rústico, açoita a megera, contradiz o absoluto, adoça a ríspida, ressabia o crédulo. Nenhum ser, por mais desumano, sai imune da contaminação humanitária que uma circulação teatral provoca. Circulas com teatro, humano és.

Domingo passado concluímos o projeto Velhos caem do céu como canivetes, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. Foram 4 cidades (Alta Floresta/MT, Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e Dourados/MS), 12 apresentações, 1.226 espectadores, 12 debates, 4 oficinas, 86 concludentes, 4 intercâmbios (Teatro Experimental de Alta Floresta, Teatro Faces, Grupo Casa e Coletivo Clandestino), colégios visitados, professores provocados, alunos comprometidos, acessibilidade efetivada, dever cumprido. Uma jornada plena. Plenitude é a palavra que define o estado do que é inteiro, completo, total, integro. É como nos sentimos com o resultado da nossa residência no Mato Grosso e no Mato Grosso de Sul.

Difícil resumir humanidades em uma postagem, quando sabemos que a palavra é apenas um esforço humano de traduzir a existência. O sentir humano é intraduzível. Viver é uma experiência esvaziada de compreensões. Todavia, se a tarefa de um escritor é dar punho ao vivido, faço das minhas sensações, matéria, e do meu teclar, palavras.

Nossa finalidade era conseguir a maior interlocução possível com todos os atores do projeto; assim, grupos, público, alunos, oficinados, produtores e amigos foram abraçados pelo desejo de diálogo que nos moveu, e retribuíram com respostas muito mais potentes que as pretensas provocações lançadas; revigorando o nosso desejo de entender as condições em que se dá o fazer teatral, sobre os diversos aspectos conjunturais de cada uma das realidades vividas. De sintomático, os apagões de gestão pública que permeiam a vida do teatro, seja qual for a região, estado ou município, se a fronteira que os margeia e contém é a de um país chamado Brasil. Latente e lamentável realidade.

Entender o fenômeno teatral sempre foi outro dos nossos desejos. Com se dá a relação entre a plateia e o espetáculo? Por que essa relação se dá com permanentes altibaixos, fazendo desabrochar o paradoxo do artista espectar a plateia? Quem faz ou fez teatro já ouviu, em algum momento da vida, frases como: “a plateia estava difícil”, “que plateia ótima”, “a plateia estava fria”, “o público foi maravilhoso”, “o público reagiu bem”. Como é possível? Como, um mesmo espetáculo, pode ser recebido de maneira tão plural? Como essa relação pode variar tanto de estado para estado, de cidade para cidade? Como se dá uma plateia em estado de tensão e outra em plena euforia se estão defrontadas com o mesmo espetáculo? Pode a relação entre ator e espectador ser tão intrínseca ao ponto de conduzir a cena para lugares tão distintos, mesmo quando se tenta ser absolutamente fiel ao espetáculo? Neste ponto, o projeto não deu cabo de todas as respostas, nem poderia, mas ajudou a reformular algumas perguntas que atravessaram nossos doze anos de história, catapultadas pelas apresentações em cada uma das setenta cidades que já visitamos.

Amparados na falta de discrição que nos é peculiar, perguntamos; e ficamos sabendo de tudo, de todos, e sobre os todos do tudo. Nossa permanente dissecação de realidades, apesar de inconveniente, nos possibilita o mínimo entendimento das circunstâncias, meios e procedimentos com que se operam os códigos da linguagem teatral; mas, principalmente, das amarguras e doçuras da vida em grupo; seus atropelos, acertos, desistências, rupturas, abraçamentos, espantos e confirmações. Diagnosticar o quanto a vida em grupo é complexa, argilosa e difícil nos fortalece e fragiliza ao mesmo tempo; servindo de alavanca para o salto necessário, problemático e libertador que estamos programando. Teatro de grupo é uma somatória de falências individuais que, processadas, reorganizam-se em potência criativa, desconstruindo o “modus operandi” do individualismo contemporâneo.

Foi o que fizemos, e fazemos. Perturbar os outros com espetáculos, perguntas, encontros, treinos, jantares. Não sabemos fazer outra coisa. Perturbar a ordem, o poder, o silêncio, o sono, o juízo. Obrigado aos perturbados consortes que nos aguentaram, do primeiro ao trigésimo dia, e nos ensinaram que os caminhos podem não ser os mesmos, mas convergem para o belo encontro entre a pergunta e a resposta. E obrigado ao Programa Petrobras Distribuidora de Cultura por permitir a distribuição gratuita de um sonho maior: o de um país melhor para todos. Continuaremos, nem que chovam canivetes.