No início dos anos noventa
vivi uma experiência que marcaria toda a minha vida teatral, e balizaria meus
conceitos de potência criativa, disciplina, verdade, organicidade, prontidão e
despudor. A jornada resultou em um mergulho experimental entre a atriz Noira
Neuma e eu. O pretexto inicial, que envolvia outros participantes, era à montagem do texto “Perdoa-me por me traíres”, de Nelson Rodrigues,
que, abortado não suspendeu a nossa pesquisa, e, sobre um novo pretexto –
“Valsa Nº 6”, do mesmo autor – mantivemos o mergulho, somente ela e eu. Digo
pretexto, pois no avançar da pesquisa, percebemos que a vivência dizia mais do que a montagem em si; quase que numa odisseia
grotowskiana (falo do seu momento ritualístico final), a prática experimental que
realizávamos contemplava mais os nossos anseios do que a pressuposta
montagem, e, logo-logo Nelson foi esquecido, tanto quanto a cena, a
dramaturgia, o espetacular e a relação palco-plateia. Absortos, embrutecidos,
chocados, admirados, nos entregávamos, dia a dia, ao abismo que nos propusemos,
e extraíamos desse mergulho, a vida que o teatro represa, e que acreditávamos como
a pulsação verdadeira da cena não encenada; estávamos embevecidos da falta de
experiência que exalávamos, mas seguros da sofisticação conceitual que
experimentávamos. Como preambulei, a experiência me marcou. Carrego até hoje sensações, visões, cheiros, angustias, infortúnios e saberes dessa vivência.
Hoje, em Caxias, depois de
quase trinta anos, sinto lampejos ficcionais, pulsações do vivido, rememorações.
Como já tratei na postagem Idiossincrasias de habitar Maranhão, tenho feito
pequenas visitas para acompanhar a montagem de "A garota e o anjo", do Balaio
Coletivo, e quem quiser saber detalhes sobre a sina de um grupo de teatro no interior
do Maranhão, suas dores e sortes, meu estar, e demais intrigas, sugiro clicar
no título que esconde o link e dar uma lida, pois vale entender o nosso problemático
fazer teatral antes de redesenhar a distribuição de poder entre aqueles que se
postulam para nos governar.
O que motiva minha postagem
hoje diz respeito a esse "viver teatro", e a disposição criativa, que liga o
experimento noventista aos meus dias em Caxias, colore o argumento. Aqui, um
grupo de teatro tenta entender o seu processo, lida com os descalabros da
opção, mas mantém pungente um vigor destemido.
O que buscávamos, Noira e
eu, se a cena não era o fim? O que um pregresso esvaziamento de sentido formal
pode ainda produzir no meu ser quase trinta anos depois? Sempre senti em mim
resquícios de sabores oriundos dessa vivência. Sempre senti que eles estão lá,
na Pequena, no meu trabalho com a Máscara, em tudo o que fiz até aqui.
Hoje tento falar, de maneira
obtusa, daquele teatro que está além da cena. Daquele experimento
irreproduzível, daquele processo abortado, daquela incomensurável pulsação
perdida, daquele sussurro de vida plena que não tornou a se repetir, daquela
inflexão perfeita que se foi, daquela ação que ficou gravada em nossa mente, e
que a técnica não conseguiu reproduzir. O sopro da verdade. O grito emudecido
pelo pranto. O corpo que ao saltar para no espaço. O abraço que carrega a dor
do mundo. O aperto de mão que aturde nossa existência. O fim daquele ensaio que
avisa: isto não se repetirá jamais. Hoje tento falar do que está fora dos
sessenta minutos de cena. Hoje tento falar dos outros noventa por cento que
formam o fazer teatral, e que o espectador desconhece. Toda obra teatral, por
mais retumbante que seja, é um suspiro do vivido, um espasmo da experiência
total, uma mísera reprodução imperfeita da verdade vivida no processo. Hoje
tento falar de algo que não se define, e sei que não consigo falar nada.