domingo, 25 de fevereiro de 2018

Quer ser membro da Pequena Companhia?


Em 2018 a Pequena Companhia de Teatro passará por transformações tão agudas que temo não suportar a agulhada. Uma delas diz respeito ao elenco do novo espetáculo, considerando que Jorge resolveu não atuar na próxima montagem, e se ocupar com as outras atividades que a encenação demandará; voltando a atuar na montagem seguinte, prevista para 2020.

Não se engane, essa decisão esconde uma provocação tão pertinaz quanto a tradição revolucionária do nosso consorte. Desde sempre Jorge foi o mais incisivo quanto a necessidade da Pequena Companhia de Teatro extrapolar as fronteiras dos quatro membros, quanto a importância de eu dirigir e eles atuarem com outras pessoas, quanto a oxigenação que essa hipótese provocaria, e toda uma dita de argumentos que até então conseguíamos esvair, levando-o a se encontrar em cena de novo, fazendo teatro por amizade, como ele costuma dizer – pois os mais íntimos saberão que ele detesta essa conversinha chata de ator, e todas as respectivas e cansadas palavrinhas do glossário, como técnica, pesquisa, processo, linguagem, potência, etc.

Eu sempre entendi a provocação, mas, como lidar com isso? Essa opção apresenta inicialmente um problema existencial: nos obriga a procurar atrizes e atores para a nova encenação, fato que não acontecia comigo desde os idos 2001, quando tive que me debruçar sobre a definição do elenco de Marat/Sade – montagem com o querido e parceiro Fernando Bicudo – que me possibilitou dirigir quatro artistas fenomenais que não estão mais entre nós: Reinaldo Faray, Aldo Leite, Antônio Gaspar e Guilherme Teles.

De lá para cá, os elencos se formaram organicamente, tanto na Pequena quanto nas montagens que dirigi para outros grupos – como a Cia. A Máscara de Teatro e o extinto Galpão de Teatro –, e ter que retornar a esse delicado exercício tem me custado alguns anos, pois conhecemos a decisão de Jorge desde 2013. Bem no fundo da alma que não tenho, acreditava que essa decisão se reverteria, e passei praticamente dois anos pensando nisso até entender que a decisão era definitiva e necessária – argumento que esclarece ao nosso espectador o porquê da demora do novo espetáculo, pois Velhos caem do céu como canivetes já carrega quatro anos e quatro meses de trajetória.

E agora? É no que estamos mergulhados. Conversando, encontrando, refletindo, indagando, vamos conhecendo pessoas e provocando atrizes e atores que possam mergulhar nesse ensaio sobre a memória que a nova montagem propõe, ao adaptar o conto A outra morte, de Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo.

Essa decisão também provocou outra reflexão no grupo, que diz respeito a inclusão, ou não, de novos membros efetivos na Pequena Companhia de Teatro. Há algum tempo vimos percebendo que a Pequena cresceu demais. As conquistas e projeção que conseguimos nos quase doze anos de trajetória trouxeram demandas que começam a esgotar nossa capacidade de atender. Fomos nos tornando multiformes e plurifacetados ao ponto de exaurir a nossa paciência, e chegamos a atender a necessidade de faxineiro, ator, designer, atendente, oficineiro, videomaker, administrador de mídias, elaborador de projetos, locutor, promotor de vendas e audiodescritor com a mesma pessoa, para citar um exemplo. Chega, não? 

A ideia de convidar uma atriz e um ator para se juntar a Cláudio Marconcine no palco da nova montagem – sim, a Pequena Companhia de Teatro prepara um espetáculo com mais de duas pessoas em cena pela primeira vez – traz a reboque a possibilidade de pensarmos no alargamento definitivo do grupo. Para aumentar nossa potência criativa e nossa capacidade de gestão, a cumplicidade permanente que um novo membro pode trazem nos apresenta um horizonte para além da importância de fechar o elenco para o novo espetáculo. E, a se confirmar essa decisão, enfrentaríamos um grande desafio: quebrar a barreira da afetividade.

Diversas vezes propagado aqui – não vou colocar nenhum link para ver se você se digna a garimpar alguma relíquia filosófica nesse amontoado de lixo reflexivo que este blog produz –, nosso grupo foi construído a partir da afetividade. Muito antes da nossa existência como grupo, Cláudio, Jorge, Katia e eu existíamos como amigos. A própria formação da Pequena – que inicialmente reuniu apenas os três últimos – aconteceu pela constatação de que estávamos sempre juntos. Criamos um grupo de teatro sem saber o que queríamos, como seriamos, ou porque faríamos. Só entendíamos que, se íamos estar juntos o tempo todo, que fosse fazendo algo inútil: teatro.

Eis outra aguda transformação que o plural usado na abertura desta postagem escondia: como incorporar um membro em um grupo de teatro que até então se sustentou em fundações tão peculiares quanto as que formaram e consolidaram a Pequena Companhia de Teatro?

A resposta está em construção. Não temos a menor ideia, ainda, nem do formato que usaremos para habitar as personagens da nova peça, nem dos mecanismos que levam à incorporação de um membro em um grupo de teatro. Estamos tateando. Eu, titubeando, tremulando, hesitando, vacilando, duvidando. A provocação de Jorge é tão potente e oportuna que deve prenunciar os caminhos criativos da nossa próxima década, e, com ela, a natural incerteza que faz tremeluzir a chama do navegador de certezas que vos escreve. Contudo, como diria a mulher em um diálogo do novo espetáculo: certezas não existem.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Dramaturgia da escuta


Em 2018 a Pequena Companhia de Teatro estreia seu novo espetáculo – ainda sem título definido –, que parte do conto A outra morte, de Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo. A montagem tem sua feitura dramatúrgica a partir da Transposição de Gêneros, sistema de adaptação literária desenvolvido pela Pequena – sobre o qual verso muito neste blog –, e que tive a alegria de fazer reverberar no projeto SESC Dramaturgias, ano passado.

Essa dramaturgia está em processo. Iniciada dia 30 de dezembro de 2016, uma série de etapas foram cumpridas – entre pesquisa, transporte de gênero e dramaturgias superpostas – e chegamos ao momento mais prazerosos; quando o esqueleto dramatúrgico desenvolvido passa a ser oralizado, para que eu possa ajustar o texto, percebendo intenções, embocaduras, e ir polindo o dito com a melhor ferramenta: a fala do ator.

Normalmente, essa prática ficava a cargo dos atores do nosso grupo, e esporadicamente algum amigo mais próximo nos auxiliava com a leitura do texto em questão.

Nesta montagem, e sem programar formalmente essa proposta, passamos a convidar outras atrizes e outros atores para nos auxiliarem na empreitada, e começamos um delicioso exercício de encontros, escutas, conversas, reflexões; alargando mormente a extensão da função das leituras, e possibilitando um outro estado de percepção da feitura dos conflitos.

Para mim, o exercício da escuta, quando estou escrevendo um texto de teatro, é revelador. Fazer parte de um grupo traz esse privilégio para quem escreve, pois dispõe do profissionalismo dos seus pares para que a vocalização da escrita se efetive, e se possa entender – dramaturgo, encenador, atores, produtora – como as palavras vão sendo salivadas, mastigadas, saboreadas e engolidas, até que reste apenas o sumo do que precisa ser dito, e sua forma.      

Estender essa experiência a outras vozes, então? É tão provocador quanto ouvir um sonho de Katia. Na pluralidade de tons, entonações, intensões, opções, resmungos, sorrisos, a contextura da dramaturgia vai ganhando conflitos; nós, argumentos. A ideia impalpável e fria da personagem – que até então era apenas um monte de palavras agrupadas em papel – ganha a materialidade polifônica que uma personagem escrita precisa ter para que desafie o próximo leitor a aturar a sua sina, porque se uma personagem não captura pelo menos um leitor, está fadada a adormecer eternamente entre as capas de um livro, ou muito pior, na sóbria combinação de magias informáticas que transformam a mais complexa personagem em um gélido arquivo de texto.

A singular experiência agrupa outros exercícios tangenciais, mas nem por isso menos provocativos. Ao nos imaginar recebendo amigos na sede, para uma leitura, a ideia de criar ambiências para elas foi imediata; saudando a generosidade dos leitores com uma estética que dilua qualquer vestígio de tédio que o convite possa despertar no coitado. Essa decisão, meramente formal, foi gerando uma investigação que, mesmo não tendo o compromisso de dialogar com a nova encenação, acaba possibilitando o terreno fértil para a experimentação de materiais, luminosidades, formações, dimensionalidades, alargando a colheita criativa que a proposta de ler entre amigos fertiliza.

Outro exercício é a própria reflexão sobre o dito. Inevitavelmente, o diálogo reflexivo durante e após a leitura se estabelece organicamente, já que o leitor se depara com a curiosa possibilidade do entrar em contato antecipadamente com os dizeres de uma peça de teatro que verá no futuro, quando da sua estreia. Essa abertura de processo não formal alimenta as reflexões que a confecção da dramaturgia no estágio atual necessita, e consigo desenrolar pensamentos complexos com a simples observação da sábia amiga que sentencia: é isso.

Quem diria. Para um sujeito artista, rígido e estruturado como sou, os desenlaces que uma sugestão simples e despretensiosa como a de “dar uma lidinha no texto” são de uma potência desajustada. Devem ser sinais de novos tempos, agora, que cinquenta anos de rigor já se passaram, e surge um novo velho homem. Dadá me conserve assim.