domingo, 22 de outubro de 2017

O espectador manda em você?


O que faremos? Sempre acreditei que um dos principais objetivos do teatro fosse provocar o espectador, exigir dele uma postura independente, dialética; convocá-lo a saltar para instâncias tortuosas; convidá-lo a saborear um dilema; instigá-lo a se posicionar sobre um balizamento retrógrado; apresentar-lhe um novo paradoxo; tirá-lo da zona de conforto – essa zona tão protegida pela TV que defronta o sofá da sala e se encarrega de adormecer os sentidos para a fatal noite de sono.

O discurso mais recente de interlocução, de necessidade de comunicação, de partidas mais abertas com o público, pode camuflar um destino de simplismos e nivelamentos que não necessariamente argumentam uma narrativa mais efetiva para o teatro na sua contemporaneidade. Imagino se não deveríamos ter cuidado ao colocar a necessidade de conversação a qualquer preço.  

Fazemos teatro. Não fazemos televisão, dança, cinema, literatura, artes visuais, música. Fazemos teatro, com a qualidade sígnica, mítica e metafórica que ele oferece para a relação necessariamente provocativa que dele se espera, conforme tangenciei aqui. Outras linguagens não podem intervir, aconselhar, ou preconizar uma forma melhor de diálogo entre o espectador e o teatro, pois, esse diálogo difere em conceito, condimento e contexto das dialéticas que se estabelecem (ou não) entre o espectador e as outras linguagens artísticas, ou entre os diversos instrumentos de entretenimento contemporâneo.

O que me preocupa é o vale tudo na busca desse espectador, quando a obra deixa de ser autônoma, e passa a ser refém de uma demanda quantitativa, com o argumento de não estar fazendo um teatro para poucos. Vale tudo? Se a morte é fundamental para a narrativa em questão, devemos transformá-la em um desmaio, pelo simples fato da ideia ser mais simpática ao espectador? A novela já faz isso; o teatro pode mais.

Certa vez, conversando com um amigo que não via há muito tempo, recuperou uma frase que, segundo ele, eu tinha dito uma década atrás, e que só agora ele conseguira compreender efetivamente. A frase versava sobre a relação entre teatro e público, e parece ser que dizia que não devíamos abrir concessões. A frase não me surpreendeu, nem me foi estranha a ideia de ser de minha autoria, pois sempre pensei assim. O diálogo não se constrói com concessões. Uma tese precisa ser contestada por uma antítese, para que dela surja a síntese desejada. A tese não precisa apenas abrir mão de si pela necessidade de dialogar com o outro, se deste outro não vem a argumentação necessária que provoque a reflexão sobre a tese em questão. O teatro não precisa facilitar o discurso para aumentar a relação com o público. O dogma do teatro depender do público é perigoso. Se em uma relação um depende mais do outro, a autonomia desse um é insustentável. Antropologicamente falando, o espectador depende do teatro tanto quanto o teatro depende do espectador, não se iluda.

Sim. O espectador também depende do teatro, mesmo aquele que nunca viu uma única peça sequer. Ele pode não fazer a menor ideia do que o teatro seja, mas esse cidadão depende do teatro, mesmo sem saber. Assim como o teatro depende dele. Igualmente. Equilibradamente. Equitativamente. Então, para mim, o fato do teatro depender do espectador nunca se apresentou como uma ameaça; nunca foi uma sentença que me levasse a cogitar concessões; nunca se assentou como um fantasma que exigisse uma resposta artística à altura das suas expectativas; essa sentença nunca me oprimiu, pois, sempre soube que esse espectador dependia tanto do teatro quanto eu dele. Uma relação só pode ser saudável se preservada a independência das partes. É nisso que acredito e, por acreditar nisso, é sobre esse fundamento que trabalho.

É notório que tudo o que tenho falado nas postagens pregressas, e tudo o que venha a se falar nas do porvir, estão relacionadas com a nossa nova montagem em curso, e que conversa com um dos escritores mais emblemáticos da literatura mundial, Jorge Luís Borges. Logo, as sentenças absolutas formuladas aqui são o blefe de um criador submergido em dúvidas, inseguranças, desconfianças, agonias, revezes, agruras, vacilações, perguntas.

O que faremos? Estamos dispostos a simplificar o complexo? A enfeitar o feio?  A adoçar o amargo? A camuflar as injustiças? A mudar o rumo? A soprar o ardor? A acalmar a tempestade? A remediar a dor? Estamos dispostos a facilitar a vida do espectador, e torná-la amena ao ponto de não sentir diferença entre uma ida ao teatro e uma xícara de chá na frente da TV? Eu não.

domingo, 8 de outubro de 2017

Por que escrever um texto de teatro?


Amanhã embarco para Teresina, finalizar minha participação no projeto SESC Dramaturgias, que me possibilitou exercitar um diálogo profícuo sobre o texto teatral e seus desenhos. Curiosamente, em 2017, me dedico à feitura do texto da nova montagem da Pequena Companhia de Teatro, que parte de um conto de Jorge Luis Borges intitulado A outra morte. Como minha escrita acontece concomitantemente ao atravessamento geográfico que o SESC me propôs, é natural que a nova dramaturgia venha contaminada de inúmeras problematizações que se agruparam no decorrer da vivência dialética provocada pela minha passagem por Caxias/MA, Vitória/ES, Maceió/AL e Teresina/PI.

O que é ser dramaturgo na contemporaneidade? O que compreende efetivamente essa função, quando descartamos as plurais dramaturgias atuais e nos concentramos no autor de textos teatrais – aquele maldito, anacrônico e solitário cidadão que senta em uma cadeira, diante de uma mesa, para escrever o que habita o palco, mesmo sem a certeza de que esse palco seja habitado por aquilo que ele escreve?

A minha particular condição me é favorável, pois, normalmente, o que escrevo vem sendo levado à cena por nosso grupo, e só escrevo pela necessidade de compor um dizer para esse fim; mas, como fica a vida do dramaturgo autônomo, aquele ser que não faz parte de um coletivo; aquele indivíduo que imagina poder construir um discurso com potência mínima que justifique a sua feitura e a travessia para a tridimensionalidade, independentemente de ter perspectivas de que isso aconteça?

O tema é delicado. Nas quatro cidades onde discutimos o assunto, durante meu perambular sesquiano, foi unânime a constatação da significativa diminuição do exercício da escrita para teatro; a redução de escritores que se dispõem a enfrentar o gênero dramático; a ausência de novos textos para possíveis montagens; a escassa produção literária do gênero. O que sim fica claro é o deslocamento do “modus operandi” dessa função, sua integração a um conceito maior de teatralidade, e suas flutuações de construção e estilo, com suas respectivas idiossincrasias; mas não é esse o foco desta postagem, e sim, a produção literária do gênero.

A quem serve, efetivamente, o texto de teatro isolado, escrito no gabinete, descolado do atravessamento cênico provocado por um grupo de teatro ou coletivo de artistas que o horizontalize? Será que ainda existe espaço para? Quais motivações ainda perduram para que um escritor pense em escrever para teatro? Sabemos que a finalidade de um texto teatral é o palco, e, naturalmente, o escritor desse gênero só encontrará sentido na sua produção se esta atingir esse fim. Então, que mecanismos a contemporaneidade oferece para que essa produção ainda faça sentido?

Como sempre consigo ser mais patético do que você imagina, vou me tomar como exemplo: um sujeito com parca produção dramatúrgica, que não tem isso como ofício, que não se alinha com a prática como mero exercício, e que nunca pensou em encenar os próprios textos – ressalvo que apesar da autoria das duas últimas dramaturgias da Pequena Companhia de Teatro, estas partiram de obras literárias já existentes, e coube a mim construir um dizer que, mesmo autônomo, se origina em outro suporte. Desde 2009 não escrevo um texto teatral que não esteja relacionado com algum tipo de encenação eminente, parceria pertinente, construção proeminente, ou pragmática contratação. Literariamente tenho até me dedicado a um romance em detrimento ao desejo de escrever para teatro (a perversidade do seu sorriso ao ler essa sentença escancara a sua sordidez, e posso até ouvir a sua sutil exclamação ao constatar minha pretensão: Você?!). O que motivou o arrefecimento da minha produção na última década, se em parte da década anterior produzi em média um texto por ano? (Como prometi, o tosco exemplo se ancora no patético proponente.)

Você deve ter percebido que hoje me dedico quase que exclusivamente a arguir, e penso que seja um sintoma do que está assentado. A contemporaneidade conseguiu esvaziar as motivações que justifiquem a dita dramaturgia convencional? Há redução de oferta, ou Caxias, Vitória, Maceió e Teresina são exceções que confirmam uma produção de textos teatrais prolífera, acentuada e relevante? Será sempre São Paulo o exemplo que vem à sua cabeça para fazer a réplica? Os grupos de teatro conseguirão oxigenar se alimentando apenas de narrativas próprias? A desnecessidade da escrita dramatúrgica pode apequenar a busca de conhecimento técnico e, com isso, reduzir a qualidade da produção? Ainda é possível qualificar um texto se está desconectado de um organismo teatral embrionário? O texto teatral descolado de uma montagem que o provoque ainda é necessário? É o crepúsculo do dramaturgo no seu sentido etimológico?

Claro que o cano das questões, com as críticas que se aderem, apontam diretamente para a minha cabeça, autor que estou de um texto teatral, transposto de um conto, construído dialogicamente, para ser montado pelo grupo de teatro do qual faço parte, e que há tempos não escreve sob outra condição. Logo, a provocação que lhe faço não é gratuita. Nunca foi. Pois, você, há anos, mesmo sem saber, vem servindo de cobaia, consultora, confidente, juiz, coautor, mártir, e espero que sua paciência e generosidade nos mantenha assim.  Portanto, me responda, ou me ajude a perguntar.