domingo, 24 de setembro de 2017

Teatro de grupo: o grito que não se cala


Sorrateiramente, a atual conjuntura político-cultural brasileira, que atende pelo nome de desmonte, ataca o teatro de grupo do país no seu ponto mais sensível: a montagem de novos espetáculos. Nos últimos tempos, acompanhamos o minguar de toda e qualquer iniciativa do Ministério de Cultura no que se refere a projetos de apoio a montagens inéditas, e a consolidação dessa realidade não é fortuita.

Se a ideia é desconstruir a teia de pensamento reivindicatório que o teatro de grupo representa – com sua profunda capilarização por todo o país –, qual a melhor forma de descoser essa potente rede de contestação? Atacando a produção inédita.

Perceba que projetos de circulação, apesar de escassos, ainda perduram nas esferas públicas e privadas, contudo, todo e qualquer programa que incentivava novas montagens desapareceu como num passe de mágica. Com isso, enquanto circula-se pelo país com o repertório existente, vai se perdendo o fôlego que o novo espetáculo dá para a continuidade da trajetória dos coletivos do país; ou seja, um desmonte sorrateiro, perspicaz, ladino, criminoso. Quando grupos menos estruturados, ou com menor poder de articulação, forem pleitear os poucos projetos de circulação que ainda existirem, perceberão que não conseguiram viabilizar um novo espetáculo para circular, fazendo minguar o volume de novas montagens no país. Por consequência, ao constatar o encolhimento da produção de novos espetáculos, o próprio projeto de circulação remanescente passa a não fazer sentido, justificando-se a extinção, e consolidando o desmonte da rede de grupos. Nem montagem nem circulação; cala-se o grito.

Agora, o que os detentores do poder já deveriam ter entendido é que o couro do teatro de grupo do país é feito de uma textura indefectível e indecifrável; ele não rasga, não tora, não pui, não cede; está além da vaidade individual, além do mercado, além das prioridades pessoais do artista; ele resiste porque seu objetivo sempre foi a consolidação de uma sociedade mais justa, igualitária, humana. É o que o teatro de grupo busca com sua inacabável resistência, embrenhada nos mais recônditos recantos do país.

Portanto, não adianta puxar, esticar, pressionar, desmontar, pois, a nova montagem é a principal arma de contestação de uma companhia de teatro, e para manter esse instrumento vivo, os coletivos sempre reinventarão mecanismos outros que os postos no seu tempo, colaborativos, autofinanciados, agregativos, comunitários, pactuais; garantindo o grito que um novo espetáculo dá, quando a cortina se abre pela primeira vez.

Claro que grupos ficarão pelo caminho, outros se dissolverão por acreditar na oratória do mercado, alguns tropicarão entre sonho e realidade, diversos cederão aos apelos do consumo; mas a grande maioria dos grupos de teatro deste interminável Brasil resistirão, como sempre, por entender que a sua responsabilidade transcende o desejo individual. Ela evoca o bem comum, único objetivo que faz com que os artistas mais diversos se congreguem nessa difícil e desafiadora micro-sociedade-igualitária chamada grupo de teatro.

 

domingo, 10 de setembro de 2017

Besta é tu


Amanhã viajo para Teresina, facilitar uma oficina de escrita dramatúrgica pelo projeto SESC Dramaturgias, última cidade que visitarei este ano provocando dramaturgos, após ter passado por Caxias/MA, Vitória/ES e Maceió/AL, pelo mesmo projeto. Antes, já estive em Teresina para participar do NORTEA/Encontro de Pesquisadores do Nordeste, dentro do FestLuso; antes, pelo SESC Amazônia das Artes, com Velhos caem do céu como canivetes; antes, com Pai & Filho, pelo Myriam Muniz de Teatro; antes, para ver a estreia de “Quando as máquinas param”, do Harém; antes, com Deus Danado, participando de outra edição do FestLuso; antes, com “Ramandá e Rudá”, no Theatro 4 de Setembro; e antes, e antes, e antes de antes. Uma intrínseca relação com a cidade, construída através do teatro.

O teatro tem isso de admirável. Nos faz erguer pontes espontâneas onde nenhum outro instrumento de engenharia consegue erigir. Somos levados pela força do seu desacato, e vamos rompendo barreiras, ramificando sonhos, reconhecendo identidades, revendo amigos; porém, a principal virtude do seu vigor contraventor é nos fazer confrontar a estática, desafiar a inércia, combater a letargia, sempre na expectativa de um novo ou surpreendente porto – porque o novo pode vir da surpresa de nos levar novamente a um lugar querido.

Agora, pelo poder da palavra escrita, meu encontro com pessoas que desejam dialogar sobre formas, metodologias e ferramentas dramatológicas; sempre na torcida de construir novas pontes, fazer novos enlaces, tecer novas teias; pois, a mais potente prova da natureza profícua do teatro é que provavelmente não encontre nenhum amigo ou parceiro antigo participando da atividade. Claro que abraçarei todos nos momentos de folga, mas o teatro não só promove reencontros, como auspicia novos encontros, com pessoas que não se conhecem, mas se reúnem em torno de um objetivo comum, neste caso, escrever para teatro.

Se você tiver curiosidade, já versei muito sobre minha experiência nesta empreitada dramatúrgica, basta clicar aqui para aprofundar a leitura; mas um ponto que pouco abordei nas postagens anteriores diz respeito a esse frescor presente em cada encontro; essa curiosa química que faz com que diferentes se juntem para tratar de algo que os atrai. Logo, o teatro tem um poder de socialização incomum, promovido pelo tête-à-tête, pelo corpo-a-corpo, pelo enredamento de seres díspares em torno de desejos comuns.

Não fosse o teatro eu seria um anacoreta. O meu leque de relações sociais se resumiria a um entorno tão restrito que não sei se poderia ser enquadrado como um estado de sociabilidade. A reserva promovida pelo meu fastio em lidar com pessoas teria me transformado em um homem das cavernas – homem que minha querida amiga Tony Silva costuma contar que eu era quando nos conhecemos. O teatro socializando a besta, ou o besta. De besta, mesmo; metido, antipático, presunçoso, pernóstico, arrogante.

Ah, o teatro! Somente nesta ação, a oficina Do narrativo ao dramático: a transposição de gêneros como instrumento de confecção de dramaturgias, promovida pelo SESC, conheci mais de cinquenta pessoas; e dessas tantas com as quais mantive um intenso diálogo e frutuoso aprendizado, algumas reverberam até hoje; não mais no campo de um grupo de pessoas que participaram de uma atividade formativa, mas de companheiros de dúvidas, parceiros de conversas, colegas de ruína, consortes para a vida.

É o teatro aproximando as pessoas e nos lembrando que precisamos do contato presencial entre as gentes para que o próprio teatro sobreviva. Teresina, aqui vou eu!