domingo, 27 de agosto de 2017

Se no teatro servissem mocotó, meu mundo estaria completo


Teatro é como mocotó: se você gosta, você sabe onde encontrar. Não precisa de propaganda, endereço, dia, agenda, clima; se gosta, acha. Toda vez que ouço as frases: “não fiquei sabendo”, “não achei o endereço”, “faltou divulgação”, lembro de mocotó. E se você é especialista, não só acha, como conhece todos os lugares que servem a iguaria, e sabe dizer sem pestanejar qual é o melhor mocotó da cidade. É uma questão de gosto, conhecimento e hábito. Acontece igual com o teatro.

O problema do teatro não é divulgação, é hábito. A forma que a sociedade desenvolveu para camuflar a fissura na sua formação cultural atende pelo nome de divulgação – ou outras tantas desculpas esfarrapadas que se ouvem quando há a necessidade de se mostrar antenado e esconder a falta de hábito de ir ao teatro. Hábito, tal qual o hábito de ler, ir ao estádio, fazer exercícios; são hábitos culturais que prescindem de desculpas mercadológicas, marketológicas, comercialógicas, economicológicas. Você tem ou não tem. Em toda a minha vida acho que nunca vi uma propaganda de mocotó... talvez uma ou duas.

O que esse diagnóstico revela é que são elas. Qual a possibilidade de um cidadão ter o hábito de ir ao teatro se durante toda a sua formação não soube o que é, nunca frequentou, e tampouco acompanhou qualquer gesto dos pais na menção dessa prática? Nenhuma. Tiro por mim: é muito provável que eu tenha assistido a minha primeira peça de teatro já adulto – a virtude que o envelhecimento traz são os balanceios da memória, os disparates das lembranças e cronologias, facilitando a minha escrita ao construir a ficção que preciso no momento, transformando-a na mais pura verdade sem a necessidade despudorada de ter que inventar a história, pois imagino estar tirando-a do mais profundo recanto da minha lembrança.

Com uma realidade social como a nossa, é muito pouco provável que ações de formação de plateia surtam efeito a curto ou médio prazo. Gratuidade, divulgação massiva, estratégias de marketing, são ações que favorecem a fruição do espetáculo que é objeto da campanha, do projeto, da ação, mas não necessariamente estarão formando um espectador de teatro. Espectador de teatro não se forma, se torna, a partir da formação “de mundo” que recebeu, do entendimento concreto do sentido de cidadania; e não através de ações concentradas na linguagem, como as necessárias aulas de teatro nas escolas e demais instrumentos que se tem visto por aí para tentar melhorar a relação do cidadão com o teatro. É muito mais do que isso. É entender que a fruição do teatro não é firula, favorece o cidadão na compreensão da sua origem, no entendimento da sua identidade, no assentamento da sua brasilidade.

É aí que entra a famigerada função do estado. Grande parte da formação do cidadão fica a cargo da qualidade das políticas públicas, e nesse caso, a multiplicidade de exemplos mundiais não nos deixa mentir. O hábito de ir ao teatro é um exemplo de civilidade, pois os códigos de linguagem que ali são operados demonstram a qualidade na formação do cidadão que frequenta, não sendo possível atribuir essa fissura no hábito somente à educação familiar. É o estado que se omite e falha na construção de cidadania. Por isso sempre nos surpreendemos com países onde o povo tem o hábito de ir ao teatro, e ficamos maravilhados com a sua civilidade. Essas comunidades certamente tiveram acesso a políticas públicas culturais de qualidade por séculos seguidos. Você não vê, mas o estado está lá, responsável pela parte que lhe compete na formação do cidadão. Não é da noite para o dia.

E de que maneira o cidadão que não faz teatro pode contribuir para a formação desse hábito? Tentando entender a sua falta de hábito, penso eu. Tentando entender que preguiça é essa que assola seu corpo no momento de se levantar do sofá. Não inventando desculpas esfarrapadas por não ter assistido a um espetáculo que ficou semanas seguidas em cartaz. Escrevendo na linha do tempo das suas redes sociais o quão significativa foi a sua experiência ao prestigiar o espetáculo da vez. Arrastando junto para a experiência o letárgico amigo que não larga o Game of Thrones.  Conhecendo os teatros da cidade para não ficar comentando “onde é?” na postagem que estampa o endereço, a localização e ainda traz um mapinha desenhado. Chegando pontualmente, para auxiliar a assimilar que ver teatro é diferente que ver televisão ou cinema. Enfim, se você quer ajudar para que o hábito de ir ao teatro no Brasil se torne um dia uma realidade, você pode ajudar de muitas formas, mas a principal é assistindo, e tornando esse seu exercício um hábito.

É possível. Em sete anos adquiri o hábito de escrever para você semanalmente através desse exercício. Claro que tudo o que escrevo, e principalmente o que este texto concentra, é permeado de superficialidades, simplismos e chacotas, mas não podia ser diferente. Se já não existe o hábito de ver teatro, que dirá de escrever sobre? Faço a minha parte, expondo periodicamente minhas falências como escritor, na esperança de que você se torne um espectador.

Hábito. Escrever, ir à praia, soltar pipa, dormir de bruços, tomar chimarrão, ir ao teatro. É tudo uma questão de hábito. Agora, se a peça de teatro coincidir com a minha vontade de comer mocotó, vá ao teatro, mas não me chame... chegue logo sexta-feira! Não vejo a hora de comer um belo prato de mocotó!

P.S. – Zerei a vida. As fotos são do mocotó que comemos ontem no encerramento da temporada do espetáculo “Atenas: mutucas, boi e Body”. Para minha surpresa, pois havia acabado de escrever a postagem quando o Lauande mencionou o cardápio.

domingo, 13 de agosto de 2017

Como nossos pais


Não somos os mesmos, nem vivemos como os nossos pais. Culpa do teatro. Se existe algo neste quase meio século de vida que me faz sentir orgulho é isso. Ressalvas à vida que meus pais levaram? Não, apenas a viva constatação de ter traçado o meu caminho, e por consequência, vivido a trama que o teatro e seus quiproquós prepararam para mim. Uma vida pautada pelo abrir e fechar de cortinas, mesmo quando as cortinas estão ausentes, e o balanço do tempo é dado pela espera da próxima apresentação.

Essa opção não trouxe uma vida mais amena, nem farta, nem segura, nem tranquila; trouxe a vida da incerteza, da provocação permanente, do chacoalho constante, do estado de alerta, da destituição da zona de conforto, do descompasso entre realidade e ficção; aparelhos para a surdez humana, que favorecem a audição das marcas deixadas pelas tiranias que massacram o homem, e que meus pais não conseguiram ouvir, pois eram aturdidos pelo sistema.

Nossos ídolos tampouco são os mesmos. Meu pai adora dinheiro. Pelo teatro abandonei o caminho do capital, e carreguei os senões de boa-vida, idealista, ingênuo, irresponsável. O teatro fez com que o dinheiro se tornasse para mim o que penso que é: papel que os adultos usam para brincar de troca-troca em um jogo onde se troca papel por coisas, e ganha aquele que tiver mais coisas ou mais papel, sem questionar se a coisa é mais valiosa que o papel; o que se sabe é que nesse jogo, um papel de dinheiro sempre valerá mais do que o papel que carrega um poema.

A opção do teatro me distanciou do destino traçado pela sociedade – um destino que seria lindo, contudo, não necessariamente meu. Outro caminho, para além das coisas que se aprendem nos livros. Não fui engenheiro civil, nem nada do que é necessário ser para ser alguém na vida. Fui o que meus passos trilharam sem saber o que trilhavam, flutuando no abismo da existência, guiado pelo ideal da transformação, do novo, da vida na terceira margem, da esperança de um mundo melhor para todos, mesmo sabendo que não tinha capacidade nem para organizar meu próprio mundo.

A essa altura você deve estar me achando um sonhador, e sabemos que viver é melhor que sonhar, sim. Mas seria possível viver e sonhar ao mesmo tempo? É essa a opção do artista. Enquanto a vida vai se consolidando como injusta posso sonhá-la justa, motor para que meus atos tentem transformá-la em justiça. É uma equação tola, mas todo artista é um tolo. Tolo é aquele que resolve viver além do posto, e não transigir com as sedutoras artimanhas do estabelecido. O que está posto, posto está. O que há além do posto, diz muito mais da vida do que a gasolina que gastamos para chegar até lá.

Não quero lhe falar do meu grande amor, porém, não fosse o teatro, não teria conhecido a Katia, minha esposa, minha produtora, minha companheira de grupo; a parceira improvável que merecia o engenheiro, o fazendeiro rico, o empresário de sucesso. Improvável porque é pouco provável suportar um Marcelo por mais de um ano, portanto, suportar um Marcelo artista por mais de vinte é tão improvável quanto ganhar na Mega-Sena. Logo, a opção que fiz pela vida que tenho conseguiu a façanha de me fazer ganhar na Mega-Sena.

A intenção desta postagem não é lhe contar como eu vivi, apenas pontuar o quanto as nossas opções na vida dizem de nós mesmos. O quanto estamos carregados de ancestralidade e o quanto podemos alterar do nosso futuro. O quanto somos ditados por forças sociais e o quão cordeirinhos inocentes somos ao acharmo-nos artistas que podemos mudar o mundo. A intenção é perceber que por termos feito tudo o que fizemos, podemos ser nós mesmos, e não necessariamente viver como os nossos pais.

Mesmo no que se refere ao sentido de descendência, tudo pode ser diferente. Eu nunca quis ter filhos biológicos, nem fiz pela Morgana – essa moça linda que enfeita a foto acima – trinta por cento do que um pai faria por uma filha, e mesmo assim, ela me considera como um pai. Em termos de paternidade, não posso me queixar, o teatro deu um nó na minha existência e tive a filha que não planejei e o amor que não mereço.

Tudo pelo avesso. Tudo atravessado. Uma trilha na contramão. Uma íngreme, sinuosa, argilosa trilha construída além dos preceitos sociais, sistêmicos, econômicos; e sou tolo ao ponto de achar que isso é verdade. E é o descompromisso com o ridículo, o destemor da burla, a imunidade à chacota que me permite ser eu mesmo, o não planejado, o desgovernado, o idiota. Portanto, hoje, do alto da minha tolice, e atravessada a maior parte do caminho, posso afirmar, sem receio: eles não venceram, nem vencerão, jamais.