domingo, 21 de maio de 2017

Uma pequena volta por Campo Grande


Na próxima terça-feira a Pequena Companhia de Teatro retorna a Campo Grande, cidade ocupada com nossas atividades artísticas em 2016, através do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. Fomos convidados para participar do Projeto Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro e Circo e passaremos toda a semana em terras campo-grandenses. Ministraremos a oficina O Quadro de Antagônicos como instrumento de treinamento para o ator, participarei de uma mesa redonda sobre resistência teatral em tempos de crise e encerraremos nossa participação com uma apresentação do espetáculo Velhos caem do céu como canivetes.
Nosso trabalho no decorrer da última década se pautou no compromisso com o fortalecimento do teatro de grupo, na seriedade com que encaramos nossos projetos artísticos, e na honestidade que apresentaram nossos resultados. O curioso do convite é que saímos de Campo Grande com a certeza de que tínhamos feito um trabalho significativo e contribuído, de alguma maneira, para o fortalecimento da cena teatral local. Foi uma sensação coletiva, pois, ao deixar a cidade, os quatro sentiram que se efetivara a troca; e tudo o que o teatro opera, naquele momento, fazia muito sentido para nós. Mas, como toda certeza é uma dúvida em forma de esperança, o chamado da Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul serviu para confirmar o efeito da nossa passagem, e para propiciar um novo momento para a troca de experiências.
Dos encontros improváveis que a arte proporciona, Campo Grande receberá, em menos de um ano, os dois espetáculos do nosso repertório, as duas oficinas basilares da nossa construção cênica, e pílulas das reflexões que o blog da Pequena Companhia de Teatro procura provocar (assim como a oficina que facilitarei em Natal, a mesa redonda citada acima é outra atividade provocada pelo teimoso exercício de ancorar o pensamento aqui), criando o ambiente oportuno para que a comunidade local estabeleça um contato direto com a formatação do nosso grupo, os mecanismos de encenação, nosso posicionamento político, os meios de financiamento, nossas opções estéticas, os métodos para suportar a fome, os caminhos de treinamento para o ator etc. Apesar do permanente e profícuo atravessamento geográfico que os grupos de teatro brasileiros efetivam anualmente, não é comum uma cidade ter contato pleno com todo o fazer teatral de um coletivo, por isso defendemos e aplicamos, quando possível, o conceito de ocupação alargada, já realizado em Sousa/PB, Goiânia/GO, Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e, em julho próximo, Fortaleza/CE, quando ocuparemos o CCBNB durante duas semanas com a maioria das nossas atividades artísticas.
Claro que a atual conjuntura político-brasileira, e o conceito derivado dessa para as políticas público-culturais – que atende pela alcunha de desmonte – compromete, significativamente, nosso projeto artístico, pois, sem um olhar sensível do poder público, qualquer iniciativa passa a ser regida pelo canibalismo do mercado e nessa seara somo meros cordeirinhos. Portanto, inciativas como a da prefeitura de Campo Grande, focada em propiciar a fruição teatral para sua comunidade, também contribui para a resistência do teatro de grupo, ao promover uma mostra teatral, quando a nova ordem sugere que artistas devem pensar em arrumar trabalho – leia o contraponto que fiz aqui a esse chiste de mau gosto.
A atenta leitora, o cuidadoso leitor, já devem ter percebido o quanto a palavra resistência tem se repetido neste nosso muro das revoluções. Essa reiteração ocorre porque – mesmo que você não saiba, e que nenhum meio de comunicação divulgue – o teatro de grupo do país, e a arte de um modo geral, vem sofrendo uma profunda desconstrução estrutural, surda, capciosa, corrosiva, e a principal arma de que dispomos para o enfrentamento é a resistência. Resistindo vamos, teatralizando, de volta a Campo Grande.

domingo, 14 de maio de 2017

Caneta e papel: a resistência da escrita

Na última quinta-feira encerramos o 1º encontro do SESC Dramaturgias, em Maceió/AL, depois de ter passado por Caxias/MA e Vitória/ES. Foram 16h de atividade em cada uma das cidades, instrumentalizando o participante para a produção de escrita dramatúrgica, a partir da profunda análise de gêneros literários, do mergulho nas características do gênero dramático, da democratização do processo de transposição de gêneros da Pequena Companhia de Teatro, e da problematização sobre a preponderância da narrativização no teatro contemporâneo.
Coincidentemente, já havia passado com espetáculos e oficinas nas três cidades que visitei; isso me proporcionou o confronto das realidades, produções e problemas, em um intervalo aproximado de cinco anos, com exceção de Caxias, que visitei com maior frequência. É difícil não observar que, pese aos esforços pontuais de iniciativas que resistem, os problemas perduram, e meia década depois, assim como a realidade ludovicense, não posso afirmar que houve avanços significativos entre o que havia e o que hoje está posto. Nas discussões que perpassaram todas as horas de atividade, foram recorrentes as queixas quanto à minguada produção teatral, a desestruturação de políticas públicas culturais, a dificuldade de conseguir financiamento artístico, a carência de oferta de atividades formativas, e a recorrência de se enxergar o SESC como um ator importante mas não suficiente para sanar as demandas emergenciais de uma classe teatral que tende a definhar ainda mais com a nova ordem estabelecida nacionalmente no que se refere a arte: o desmonte.
Ainda assim, foi gratificante perceber que os que ali estavam para dialogar, cerca de cinquenta dedicados interlocutores, conservavam a força oriunda da resistência cultural – condição presente no DNA de qualquer artista que seja forjado em um país que desconsidera, permanentemente, o poder de transformação sociopolítica da cultura. Esses queridos companheiros de jornada dramatúrgica mantiveram acesa a chama do diálogo, e provocaram seus conhecimentos, ao permitir-se horas de intenso estudo, sem negligenciar o necessário estado de atenção frente ao mundo que nos cerca.
Após esse nosso primeiro momento, onde foram facilitadas as informações e técnicas necessárias para o avanço da atividade, todos os participantes encontram-se agora no processo de escritura de uma peça teatral a partir de uma obra de outro gênero literário; e a oficina pretende que, ao fim, todos os participantes tenham desenvolvido um texto de curta, média ou longa extensão. No decorrer dessa produção, vou acompanhando virtualmente o desenvolvimento de cada um dos projetos dramatúrgicos, verificando os caminhos e os descaminhos que se apresentarem durante a trajetória. Isso continuará até o nosso próximo encontro, pois, como versei aqui, o SESC Dramaturgias prevê o retorno do oficineiro à cidade visitada. Sendo assim, outras 16h, nos três municípios, pretendem possibilitar a prática com a presença do facilitador, onde acompanharei a feitura e finalização de cada um dos textos, dirimindo ruídos que tenham perdurando durante o primeiro encontro.
O projeto terá sequência nesta segunda-feira, quando parto para Caxias/MA, primeira cidade que visitei com a oficina de escrita dramatúrgica. Com a metade que me cabe do SESC Dramaturgias concluído, posso dizer que toda ação de cunho formativo tem marcante repercussão na comunidade artística onde é realizada, pois aciona dizeres e desejos muitas vezes escondidos em lugares recônditos da alma humana, e que, quando provocados, se apresentam com a potência, prontidão e espanto matriciais para a criação artística. Tomara que tudo seja, permaneça, aconteça, recomece, resista...  

domingo, 7 de maio de 2017

Dram Act Urge


Queria ter a clareza das grandes certezas: a morte, a vida, o sabor irretocável do presunto cru. Queria o amigo da sentença absoluta; queria saber sem duvidar; queria que alguém me dissesse, com absoluta certeza, quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha; alguém que sentenciasse o sexo dos anjos; queria a resposta para a pergunta de alguns anos atrás: com quantos paus se faz uma canoa? Mas não. Tudo na vida é dúvida, incerteza, cambaleio, titubeio.
Sempre que embarco em uma jornada dialética como a que me propuseram para estes dias, com o SESC Dramaturgias, me deparo com a fragilidade das minhas certezas, com a pretensão dos meus saberes, com o embaraço dos meus pavoneios, com a vaidade camuflada e suas idiossincrasias. Como sou encenador por ofício, as poucas certezas que carrego estão relacionadas a essa prática, o mais é penumbra, desassossego.
Essa sensação faz como que a exposição provocada por uma atividade formativa faça emergir um torvelinho de inquietações que servem para temperar o pensamento, conduzir o procedimento, equilibrar o diálogo, domar os excessos e transformar o encontro em troca e o exercício em aprendizado.
O tempo que me trouxe até estas paragens – longos anos em busca de um fazer teatral honesto e orgânico – me fez constatar o quanto o conhecimento pode ser um perigoso instrumento de poder, e como esse poder é muitas vezes utilizado como mecanismo de opressão. Minha luta sempre se estabeleceu na tentativa de jamais cortejar esse poder, nem ciceronear aqueles que entendem o conhecimento como propriedade. Se a alma não é generosa, a exploração que o poder pode provocar é nefasta.
Por isso a experiência artística é tão provocadora. Os enlaces que ocorrem em uma oficina de cunho artístico como a que estou facilitando vão muito além das estruturas formais organizadas, e transitam por um ambiente muito mais amável, franco, desafiador, gerando o terreno oportuno para a troca desinteressada, o fortalecimento do diálogo, a amabilidade dos pares; diluindo graciosamente todas as dúvidas que apresentei no prólogo, e reforçando a suspeita de que este é o lugar onde eu deveria estar hoje, ontem, e onde se apresente a oportunidade de desenvolver uma boa conversa.
Já ministrei oficinas em 27 cidade de 14 estados, acredite. E em todos esses encontros a sensação primária de abismo perdurou pelo tempo que separa o convite do encontro. Quando o encontro acontece, emerge o cálido palpite de estarmos, juntos, construindo algo novo, fora da curva; provocando as estruturas, transformando o inequívoco, idealizando um mundo novo, outro, que o da realidade que hoje nos oprime e aflige – principalmente quando o presente do país que habitamos é tão dilacerantemente medonho. Uma personagem de um texto de Wilson Coêlho – querido amigo que este projeto possibilitou reencontrar –, cujo título roubei para titular esta postagem, diz; “me parece que os equívocos somente existem para os idealistas”. Talvez eu esteja totalmente equivocado, idealista que sou, e nossas ações, encontros, discussões, não reponham uma única mordida deste abocanhado Brasil. Mas, pelo menos, tenho o privilégio de saber que os equívocos existem – parafraseando a personagem Dram –, e que de tanto errar, quem sabe um dia, possamos acertar a mão e construir um lugar ideal. São só dúvidas, suspeitas, palpites, desejos.  A única certeza que perdura, encontro a encontro, é a de que sempre aprendi mais do que ensinei.