sábado, 29 de abril de 2017

Ilhas de encontros em um mar de desencontros

 
O primeiro encontro de 16h com os participantes do SESC Dramaturgias em Caxias/MA – serão dois, conforme expliquei aqui – encerrou na quinta, e enquanto me preparo para seguir viagem rumo a Vitória/ES e Maceió/AL, depois de amanhã, repasso na cabeça as marcas deixadas pela experiência e as indagações provindas dessa jornada.  
Toda atividade formativa, seja oficina, curso, vivência, imersão, minicurso, workshop (sic), propõe um repasse de práticas, teorizações, metodologias, experimentos, postulações e pulsações de alguém que se pressupõe cumprir os pré-requisitos para atender as demandas da clientela que o espera – aplicado vertical ou horizontalmente, dependendo da proposta do facilitador –, e as consequências dessa natural troca são avaliadas de diversas maneiras pela comunidade que o recebe; no decorrer da atividade, em bate-papos informais ou na cordial conversa de encerramento, mas, principalmente, depois da partida do dito cujo; quando a volta à rotina da classe artística local faz com que se efetive, no tête-à-tête, a real e implacável avaliação do bardo. Porém, raramente temos acesso aos resultados, transformações, devaneios, daquele que promove o repasse, e quando existem, ficam confinados em formais relatórios de conclusão, arquivados nos anais da desmemoria.


Por esse motivo me proponho a mostrar o outro lado, e revelar o que se passa pela cabeça daquele que vai e carrega consigo as marcas da experiência, a carga do forasteiro, o desafio de ter invadido uma realidade que não é a sua e ser o ilustre desconhecido apresentado por algumas laudas de currículo.
A primeira sensação que me toma é a de que todo encontro é uma ilha em um oceano de desencontros. Toda atividade formativa, quando realizada fora da comunidade onde o ministrante atua – e já passei por essa situação inúmeras vezes –, expressa em sua gênese a minúscula probabilidade de que esse encontro se repita, e esse que vai, carrega sempre consigo o desejo de retornar e a certeza da improbabilidade.
Essa é a marca inaugural deixada em mim com a primeira experiência no SESC Dramaturgias. Como o projeto agora propõe o retorno do ministrante, depois de mais ou menos um mês, para um novo encontro de 16h, a sensação da partida foi particularmente diferente de todos os experimentos formativos que me propus realizar durante os últimos vinte anos. Poder retornar, prontamente, para perceber ruídos, poder acompanhar se efetivamente se verifica alguma contribuição significativa na formação do participante, poder receber impressões presenciais dos problemas, me fez transitar pelos 362km que separam Caxias de São Luís, com um singelo contentamento substituindo a escamoteada angústia, pois sei que voltarei.
Aquele olhar de dúvida que não percebi terá uma segunda chance. Aquela certeza de entendimento que se esvai em uma prática mais aprofundada terá uma segunda chance. Aquela confidência de incompreensão que foi calada terá uma segunda chance. Aquela atenção que não dei, por descuido, terá uma segunda chance.
Claro que muitas vezes retornei à mesma cidade depois de visitá-la com algum projeto artístico, e criei laços profundos que se sustentam até hoje – inclusive em Caxias, onde apresentamos os dois últimos espetáculos da Pequena Companhia de Teatro –, mas em todos esses casos as motivações do retorno foram fortuitas, afetivas, desavisadas. Aqui, não. O projeto tem o cuidado formal e a delicadeza de garantir esse privilégio para oficinados e oficineiros, sem que eles tenham que contar com a sorte de que esse oceano de desencontros se abra para que passe um novo encontro.
Começou agora. Mas, a primeira marca já está cravada na pele deste pelejador teatral, forjado a cada encontro, a cada abraço, a cada papo, a cada troca, a cada partida, a cada retorno... Agradeço ao SESC por essa singela marca. E para os vinte e quatro consortes que participaram da oficina, e tanto discutiram sobre gêneros literários, perdoem o excesso de lirismo que tomou conta desta narrativa. Nos vemos em breve!

domingo, 23 de abril de 2017

A Pequena no SESC Dramaturgias

 
Amanhã parto para Caxias/MA. Fui convidado para participar do SESC Dramaturgias, um dos principais projetos de pensamento e difusão das plurais dramaturgias pesquisadas atualmente. Visitarei ainda neste primeiro semestre as cidades de Vitória/ES e Maceió/AL, com a oficina Do narrativo ao dramático: a transposição de gêneros como instrumento de confecção de dramaturgia, metodologia criada pela Pequena Companhia de Teatro para a produção de dramaturgia quando o conteúdo de dizeres para a encenação teatral encontra-se disponível em um texto que não é do gênero dramático, seja ele de qualquer outro gênero literário ou textual.   
O projeto me é caro, pois, ao expandir o conceito de dramaturgia, vai de encontro ao pensamento do Teatro Polidramático que a Pequena vem desenvolvendo há alguns anos, e que se sustenta na ideia de que todo aquele organismo cênico que for capaz de construir uma narrativa poderá ser instrumento de dramaturgia, seja ela basilar ou estruturalmente auxiliar a uma dramaturgia principal.
O diferencial expressivo deste projeto em relação a outros que a Pequena Companhia participou ou promoveu, é se tratar de uma atividade formativa com carga horária extensa, de 32 horas/aula. Esse alargamento do tempo de troca retumbará significativamente no aprofundamento de todo e qualquer conteúdo que os diferentes artistas convidados do SESC Dramaturgias proponham, possibilitando uma colheita muito mais pujante que a conseguida com atividades de menor carga horária. Ainda, o participante que se propõe ao intercâmbio, tem a oportunidade de acentuar o estudo e intensificar a prática metodológica da vez, confrontando experiências anteriores e expandindo sua vivência.
Outra virtude é que o projeto prevê dois encontros de 16h, com um intervalo de várias semanas entre um e outro. Essa ideia me é singularmente provocativa, pois promove um tempo de maturação do conteúdo e de prática real para o artista que participa da oficina, oferecendo o tempo e a empiria necessária para os contraditos, as ressalvas, as antíteses; colocando o facilitador frente a frente com possíveis falências reveladas no encontro anterior – diferentemente de  atividades de tiro único, quando o participante fica sem a possibilidade de esclarecer dúvidas provocadas pela tentativa de aplicar o conteúdo sem o acompanhamento necessário de que o preconiza. O conceito exige robustez do oficineiro, sendo que é confrontado com qualquer descaminho que suas proposições não tenham previsto, possibilitando a permanente revisão, tão necessária para a plena consolidação de qualquer postulação.
O SESC Dramaturgias foca investigação em escrita dramatúrgica, dramaturgia do ator, da dança, do circo, da iluminação, afora leituras em cena; e o convite que me foi feito concentrará seu conteúdo na escrita dramatúrgica através da transposição de gêneros literários, experiência que alguns leitores deste blog já vivenciaram em diferentes momentos do nosso calendário de atividades formativas. O que diferirá de experiências anteriores – além do tempo que oportunizará um aprofundamento muito mais significativo – é que somo à atividade a provocação/problematização que tenho feito em palestras e convites para conversas e mesas redondas, assentada na postagem recente que fiz aqui, sobre o excesso de narrativização do teatro contemporâneo.
Como primeiro maranhense a participar do projeto como facilitador, em todos esses anos de SESC Dramaturgias, entendo que o diálogo fortalecerá a capilarização de uma série de escritas cênicas que estão sendo desenvolvidas no Maranhão, e que, por periféricas geograficamente, não conseguem transpor as barreiras impostas pelas regiões detentoras da agenda cultural do país – repare você, arguciosa leitora, astuto leitor, que falo apenas de agenda cultural, pois, a cultura brasileira é tão plural e rica que não admite centros. Mais uma vez o SESC assume um papel capital em favor da descentralização do pensamento, da democratização dos múltiplos fazeres, do intercâmbio nacional e do abrandamento dos eixos hegemônicos.
Claro que o que aqui escrevo são meras impressões do porvir, porque amanhã apenas inicio minha jornada de encontros, aprendizados, desafios, provocações, registros, conversas, trocas, revezes, discussões e estudos. A única certeza é que você poderá acompanhar o desenvolvimento da empreitada no mesmo endereço de sempre – um blog que acumula 541 textos, 1.309 comentários e 7 anos de extensa inutilidade.

domingo, 16 de abril de 2017

H(á) poesia na rua do Giz


Um querido amigo – prosista de estimada destreza –, em uma das nossas intermináveis conversas, queixava-se da falta de poesia do mundo contemporâneo. De fato, o mundo vem perdendo sua capacidade poética, além de naufragar em incompreensões de metáforas, ironias, paródias, hipérboles...
No momento em que o mundo anda tão polarizado, não há espaço para sutilezas, e tudo é preto ou branco, macho ou fêmea, esquerda ou direita, conhecimento ou ignorância, virtude ou defeito – um Quadro de Antagônicos Social, se me permitem a propaganda. Essa realidade cristaliza uma contemporaneidade repleta de cruezas, escancaramentos e obviedades, embrutecendo e emburrecendo o interlocutor e conduzindo-o a uma incapacidade de ler além do óbvio, de perceber as transversalidades, de elucidar um discurso metafórico, de alargar o diálogo além da dureza de verdades e mentiras.
Naturalmente, e como deve ser, a arte também padece desse sintoma, e o teatro não é a exceção que confirmaria a regra, como eu gostaria que fosse. Essa constatação provoca meu pensamento e atenta ao fato de encontrarmos hoje no teatro um lugar de rigidez, sobriedade, objetivismo e sequidão jamais vista. Esse presente cruel afoga a possibilidade de construir um fazer teatral mais intrincado, abstruso, complexo, sofisticado (atualmente usar essa palavra é quase uma obscenidade), e ao não dialogar com o entorno corre-se o risco de receber a pecha de anacrônico.
O que estamos perdendo ao transformar uma arte que se valia do símbolo, da ironia, das camadas de leitura, da transversalidade, em uma arte de discurso direto (o trocadilho que faço com a principal característica do gênero dramático é proposital)? O teatro sempre exigiu do espectador uma prontidão maior do que a do dia-a-dia, e todo frequentador sabia que o encontro teatral desafiaria sua percepção ao construir um universo repleto de metáforas, ironias, escamoteações, acidezes, quiproquós – uso uma palavra como essa e ainda não quero pagar de arcaico. Ao tornarmo-nos replicadores de uma realidade nua e crua não estaremos reduzindo o poder transformador social do teatro? É necessário perder a ternura? O mundo não acaba ficando enfadonho sem poesia?
Toda onda deve servir de alerta, principalmente para nós, artistas de teatro, que temos como única arma o emparelhamento e espelhamento – distorcido ou real – da vida. Penso que quanto maior a crueza contemporânea, maior devia ser a nossa exigência em nos desafiarmos na construção de um discurso menos óbvio, pois, o que é dito com destreza perdura, e o que é dito com simplismo se dilui com a mesma potência com que se projetou. Não me canso de acreditar que ainda há lugar para um dizer desafiador, carregado de significados, provocativo, incendiado pelo poder de afrontamento e confronto que ele possui, pois sabemos que o discurso robustecido já dobrou reis, generais e presidentes.
Falta poesia. Tudo está muito frio, cru, direto, seco, óbvio, concreto, real. Não deixemos que o teatro perca seu quê de lúdico, lírico, lúcido. Acreditemos que é possível contestar, provocar, refletir, indagar, renegar com a faca nos dentes, porém, montados em um unicórnio azul. Todas as atrocidades do mundo não bastam para acabar com uma única poesia. Todos os palavrões do mundo não têm o poder de uma única metáfora. Todas as leis do universo se esvaem perante uma simples ironia. Toda certeza se curva diante da primeira pergunta.
A Pequena Companhia de Teatro segue fiel a esse compromisso. Ao trabalharmos na adaptação do conto “A outra morte”, de Borges, sabemos que nossa intenção é provocar uma reflexão além do pequeno horizonte, e também sabemos o preço que pagamos nos últimos dez anos por esse exercício. Claro que não estamos isentos, e todo início de processo nos apresenta uma série de caminhos engajados, antenados, contemporâneos, para, durante a depuração do todo, se chegar ao que realmente nos interessa. Nem sempre é o que interessa ao novo. Nem sempre é o que interessa ao mercado. Nem sempre é o que interessa à espetacularização. Mas, sempre acreditamos que seja o que interessa ao espectador, único motor dessa máquina chamada teatro.
Os mais severos poderão argumentar que advogo em causa própria. Nesse caso, para salvaguardar meus argumentos, volto-me para o amigo espectador que motivou esta postagem: há quem ache que falta poesia no mundo contemporâneo. Tratando-se da Pequena Companhia de Teatro, não há o que temer, pois, não pode faltar poesia em uma companhia cujo endereço seja: Rua do Giz.
 

domingo, 9 de abril de 2017

Sede, ou não ter? Eis a questão.


Sábado retrasado, dia primeiro de abril, completamos quatro anos de sede própria – sim, esta era a postagem da semana passada que a preguiça não me deixou concluir. Exatamente nesse dia, em 2013, iniciávamos os ensaios do espetáculo Velhos caem do céu como canivetes, e fruíamos pela primeira vez de uma independência espacial almejada há anos.
Sempre suspeitamos que ter sede própria não garantiria uma fonte de renda direta, e sim, indireta. Desde muito antes de adquirirmos o casarão, entendíamos que pensar o teatro como espaço de locação – imaginando ser possível usufruir financeiramente dessa vantagem – era um dos graves equívocos que cometiam os grupos que almejavam ter um lugar seu, pois são raríssimos os exemplos em que espaços se auto sustentam ao ponto de superar as próprias despesas de manutenção.
O que sim entendíamos como uma grande fonte de renda indireta era a autonomia que o grupo ganharia ao dispor de um ambiente próprio para a experimentação artística, potencializando o nosso fazer, alargando a produção, e como isso, aumentando nossos ganhos indiretamente – partindo do princípio de que, quanto maior a qualidade artística desenvolvida, maior o número de convites e contratos firmando no decorrer do ano.
Quatro anos depois, todas essas suspeitas se confirmaram. A grande virtude de ter sede própria é, sem dúvida, a autonomia criativa, a independente espacialidade, a possibilidade de experimentação ilimitada, e a certeza de poder oferecer essa experimentação descolada da situação sócio-político-cultural da cidade que nos habita – como agora, quando iniciamos o processo de montagem do novo espetáculo e a grande maioria dos teatros de São Luís estão fechados. Nós não precisamos pensar na data de estreia, nem na extensão da temporada, nem no valor das pautas, nem na quantidade de ensaios gerais possíveis. Nós não dependemos de espaço para estabelecer um cronograma de ensaios. Nós não esperamos os ensaios prévios à estreia para as experimentações cenográficas ou de luz. Nada. A partir do momento que adquirimos a nossa casa, todos os entraves referentes ao condicionamento gerado pela locação do espaço para ensaio e apresentações foram eliminados. Esse é o grande ganho.
Também confirmamos o equívoco de imaginar o espaço como fonte de renda direta, não apenas a partir da nossa experiência, mas pela luta inglória de diversos grupos parceiros que enfrentam a barra de dividir o tempo entre a produção artística e a gestão do teatro, tendo que inventar um sem fim de atividades para garantir a sustentabilidade do lugar quando ele não é próprio e exige um faturamento mínimo para garantir o pagamento do aluguel.
Essa sempre foi a única certeza nossa: só valeria a pena ter uma sede se fosse própria. Nunca pensamos em alugar um espaço nem para depositar a tralha que já ocupava sala e corredor da antiga residência. Essa condição é fundamental para o conforto ao que me refiro nesta postagem. Se o grupo não depende do espaço para garantir o pagamento do aluguel do próprio espaço, a pressão  quanto à necessidade de locar, promover, movimentar, divulgar, otimizar, desaparece, e não se corre o risco de ter a sala ocupada no memento em que se precisa dela para as atividades artísticas, e nem há necessidade de forjar-se cozinheiro, garçom, promotor, bilheteiro – apesar de ser voto vencido, pois, a depender dos meus pares, já teriam me colocado na frete de um forno de pizza, pois há rumores de que sou melhor pizzaiolo que diretor.
Por mais criativo que tentemos ser na pluralização de atividades, temporadas, projetos, feijoadas, a conta não fecha. Mesmo a ideia de atividades formativas, em uma cidade onde a classe artística é pequena, o fôlego da oferta de oficinas pagas não excede o primeiro ano de ocupação – por mais inventivo que seja o grupo na arte de descobrir relevâncias significativas no seu fazer a ponto de serem democratizadas. E quanto do tempo necessário para a criação artística é demandado por essa busca constante da viabilidade econômica da casa? Quanto do artista deve ficar para depois pela necessidade de garantir o aluguel do mês?
Hoje, a locação da Pequena Companhia de Teatro se dá especificamente a partir da afinidade artística ou afetiva para com a proposta que busca se apresentar na nossa casa, pois sabemos que, mesmo que conseguíssemos locar a sede na sua capacidade máxima durante todo o ano, o valor arrecadado não chegaria a 10% do valor garantido com a nossa produção artística, conseguida a partir da disponibilidade do espaço para a criação dos nossos espetáculos, oficinas e afins.
Reitero: não imagine uma sede própria como fonte de renda direta. Se o projeto for ter uma sede, pense nela como o principal instrumento de transformação, evolução e alçamento da produção artística produzida, o que, consequentemente, trará o retorno financeiro compatível com o empenho – sempre e quando você seja melhor artista que bilheteiro.
Sei que a postagem de hoje serve de alerta para alguns, de confirmação para outros, de desilusão para muitos. A ideia era essa. Procurei ser o mais pragmático possível para não alimentar as diversas fantasias geradas por qualquer coletivo teatral que tenha como foco a conquista do espaço próprio. Também sei que falo de uma posição privilegiada, pois somos proprietários da nossa sede e independentes social e politicamente. Contudo, seria desonesto da minha parte não apresentar nossa experiência e deixar pairar a dúvida de que um artista pode, um dia, imaginar viver de renda – era só o que faltava.