domingo, 26 de março de 2017

A curadoria do contemporâneo


Na contramão, enquanto o Brasil teatral se encontra em São Paulo, acompanhando o mais badalado festival internacional do país – a MITsp, estou no Rio, acompanhando o mais badalado aniversário de criança – o do meu afilhado. A coincidência apenas serve de introdutório para o comentário genérico ao qual me dedicarei nesta postagem, pois nunca acompanhei a MITsp, e invejo todos os queridos amigos que de lá me mandaram maravilhosas notícias.
Qual é a nossa autonomia criativa quando inseridos em um contexto predominante?
Tenho a impressão de que se não seguir certas tendências, uma obra de arte – e a partir de agora me concentro em peças de teatro, nosso objeto de experimentação –, por mais robusta e contundente que seja, não conseguirá estar na linha curatorial da sua contemporaneidade. Essa condição velada influencia significativamente grande parte da produção teatral, e com isso, cria-se uma espécie de retroalimentação da mesmice, multiplicação de imagem a partir de espelhos paralelos, afetando a condição espetacular do evento teatral. Nesses casos, a espetacularidade consiste na qualidade criativa das variações sobre o mesmo tema – e uso a palavra “tema” como universal, podendo ser estética, conceito, momento político, técnica etc. Avalio se não seria pouco para uma busca mais apropriada da verdade artística, essa fantasia romântica que paira sobre alguns de nós.
Se o grupo, obra ou artista tentar seguir um caminho autônomo, independente, ou descolado do atual preponderante – apesar de ser consciente que a influência do entorno é indissociável –, pagará o ônus supracitado, e terá dificuldade de penetração, provocando naturalmente uma reavaliação da própria obra, fragilizando o entendimento de suas escolhas.
Conversando com um amigo encenador, pensávamos se não seria fácil o exercício de concentrar diversos clichês de específica contemporaneidade, e reproduzir o engodo com verossimilhança. Em outro momento correu uma lista de lugares-comuns necessários para se conceber um espetáculo contemporâneo – confesso meu espanto quando identifiquei vários em espetáculos nossos. Esses pequenos momentos de espelhamento – perdoem o abuso de espelhos, é que estou adaptando Borges – denotam o descompasso que sentimos, mesmo sem perceber, ao nos depararmos com as amarras do tempo, nosso tempo, e reivindicarmos para nós uma autenticidade desgastada de tão usada.
Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, e muito menos ao inferno – também tenho estado místico nestas últimas postagens. Não conseguiremos sair da influência do entorno, é certo, mas não precisamos ficar reféns dele, nem preconceber um diálogo que só se verificará a partir da honestidade da obra e da coincidência do diálogo desta com algumas urgências do momento em que ela é posta.
Claro que todo meu discurso é sempre carregado de certo romantismo; estruturado em ideias de originalidade, inovação, autonomia; porém, mesmo sendo conhecedor da falência dessas utopias, não me incomodo em assumi-las, tomá-las como meta, e parecer tolo e antigo perante os meus pares – sabedores de que tudo já foi feito, dito, criado, e que só nos cabe variar sobre suas formas.
Paciência. Acredito que não é possível viver artisticamente reproduzindo os mesmos caminhos apontados pelos cânones ou detentores do poder. Isso nos tornaria mais servis e menos artistas, e um teatro servil é mais nocivo que a ausência. De fato, quão servil estamos nos tornando ao forçar um diálogo como o contemporâneo? Nossa autonomia está preservada no dizer, ou penso no dizer a partir das modelações do entorno? Refaço a postagem fragmentada e a reformulo nos moldes aos que o leitor está acostumado a ler? Sou artista ou mentiroso?
Questões. Questão. Questã. Quão independente se pode ser, quando se depende da aceitação para a viabilização? Quão corrompida está a criação da Pequena Companhia de Teatro se se mantém presente no circuito da sua contemporaneidade? Quão sincero deve ser um escritor ao expor suas angústias? Minha opinião é formatada e desconfigurada dia após dia, por isso pergunto tanto.
O ideal seria que minha inquietude fosse exagerada e as perguntas fossem retóricas, pois acredito nas honestidades dos atores, conheço a maioria dos curadores do país, e me surpreendo com a generosidade de alguns amigos envolvidos nos mais diversos festivais, projetos, espaços, editais, ocupações – aqueles ambientes onde se definem os caminhos do teatro do pais. Todavia, não me canso de questionar. Quando vejo algo demasiadamente bom, que me agrada, que me entusiasma profundamente, é aí que procuro afinar o olhar, distanciar o envolvimento, e advogar para o diabo – como disse, estou místico. É o que tento fazer aqui.
Penso no quão plural é possível ser para não esterilizar iniciativas. Penso no quanto é necessária a ideia de recorte, contudo, no quanto de sangue corre a partir de um esquartejamento. Penso em sermos responsáveis pela superestimação de algumas funções e pela subestimação de outra. Penso que, como a Pequena Companhia de Teatro também é banhada pela luz desses mesmos holofotes, eu não deveria escrever nada disso. Penso na irresponsabilidade da minha postagem, ao escrever sem dados, pesquisas, estudos, levantamentos, estatísticas. Penso que se eu me levasse tão a sério não teria escrito a primeira linha deste blog. A minha única certeza é que, como diria o filósofo, todo penso é torto.

domingo, 19 de março de 2017

A cosmética do pensamento


Um amigo, curador e crítico teatral, ao se referir a mais uma das infindáveis polêmicas da semana, brincava, em uma rede social, sobre a diferença entre pensamento, autoajuda, sabedoria, reflexão e afins. O comentário, contido de deliberada despretensão, caiu sobre minha cabeça com o peso da Biblioteca de Alexandria.
O que, efetivamente, tenho escrevinhado aqui? A ideia de fazer parte de uma cosmética do pensamento atropelou meu juízo, e desde a leitura do despretensioso comentário, não consigo deixar de me ver como um fantoche a serviço da rede, elucubrando formas de externar o que penso, como se isso tivesse alguma relevância. A função do exercício, para mim, sempre foi clara, a de assentar angústias, pensamentos, reflexões que faço; mas para esse fim bastaria arrolá-las em alguma espécie de diário, caderno de cabeceira, lista de tiradas, arquivo como atalho no desktop. A pergunta que já se reiterava, e que agora assume cinquenta tons de cinza (desculpem-me o trocadilho infame) é: qual a função de tornar esse exercício público?
Como sempre levei uma vida pacata, abrigada – com indícios de sociopatia para alguns, e de egoísta reserva para outros –, vi na proposta lançada por Jorge de criar um blog, uma alternativa de conexão com o exterior, uma forma de interlocução nova, onde pudesse organizar um pensamento mais estruturado, diferentemente da fugacidade oferecida pelas redes sociais – como já versei aqui sobre tudo o que versarei a seguir, abordando outros aspectos. Nesse exercício vão-se sete longos anos de ininterrupta provocação, reflexão, confissão, análise, crítica, com a despretensão que me é cara, mas sem o fantasma de frivolidade que agora me assola. Não, não quero isso. Não era essa minha intenção. Mas, como saber se essa prática de escrita serve a deus ou ao diabo – sim, perdoem meu preconceito, mas autoajuda, para mim, é coisa do capeta –, pergunta o ateu? O que pode se produzir de sentido no limite de uma postagem? Quanto de reflexão cabe na brevidade da blogosfera? A exposição não seria apenas uma forma de revelar uma personalidade narcísica?
Penso teatro, preponderantemente. Esse pensamento busca entender melhor o nosso fazer; problematizar, na medida do possível, algumas amarras entorpecedoras; contestar máximas imutáveis, tão frágeis quanto bolhas de sabão; e tentar aferir ao contemporâneo o seu lugar, o de ser novo na medida em que o novo é um velho amigo de tudo o que já foi. Mas, tudo isso serve a mim, no máximo a nós, membros da Pequena Companhia de Teatro. Logo, como mensurar se o valor do pensamento merece extrapolar as fronteiras da Rua do Giz? Não consigo uma resposta.
Com o passar dos anos – e eles passaram até me aproximar do meio século – tenho tido menor capacidade para responder, e uma abusada necessidade de perguntar, provocando respostas que exigem um ouvido atento, fato que se contrapõe à prática que me obrigo aqui; então, para que se precipitar no abismo das considerações?
Talvez alguma resposta esteja incrustada no próprio pensamento; o de ser a expressão mais concreta do espirito humano, o que nos diferencia, o que nos torna uma massa de carne criadora do mundo que conhecemos. Quiçá, na minha bruta formação, foi no pensamento que encontrei o melhor caminho para o parco conhecimento que carrego – o “parco” é a contra modéstia da personalidade narcísica citada acima e escamoteada até aqui. Talvez seja a forma que encontrei para sobreviver, neste exagerado novo mundo de bestagens, vazios, vaidades, aberrações e banalidades; apostando na transformação da vida a partir das reflexões geradas no caminho para a morte.
Como advertido, e mais uma vez, só tenho perguntas. Talvez essa seja a real motivação. Através deste instrumento – o blog – consegui encontrar os interlocutores necessários para dar as respostas às perguntas que passaram a me acabrunhar na derradeira etapa da vida; e das formas mais variadas – o comentário no blog, nas redes, a interpelação do leitor na fila do teatro, a ressalva feita pelo amigo no sofá da sala, a mesa redonda provocada pelo assunto abordado na postagem – esse interlocutor se apresenta para amenizar a grande angústia, a que constrói o humano ser por não saber de coisa alguma.
Talvez. Não sei. Só sei que diante da possível pecha de esteticista de autoajuda lhe peço, encarecidamente, me outorgue o emblemático, pitoresco e descompromissado título de filósofo de botequim.

domingo, 5 de março de 2017

O outro passado


O passado de um artista é a sua trajetória, e dele depende o implacável presente e o incerto futuro. Materialistamente é melhor deixa-lo lá, imutável e empoeirado, porém, se nos permitíssemos um exercício metafísico, eu perguntaria: como um artista da vida, o que você mudaria do seu passado?

Para gerar a reflexão, convido a voraz leitora, o compulsivo leitor, a eliminar os famigerados clichês de “teria feito tudo igual” e “faria tudo de novo”, ou o brado, aos quatro ventos, de que repetiria cada passo. Essa postura esconde uma empáfia e um delírio de perfeição que não se afina com a sua sensibilidade. Feita a ressalva, construo meu argumento a partir do descompasso entre a realidade e o sonho.

Uma postagem anterior, perdida no limbo cibernético, provocava com a pergunta: o que você quer ser quando crescer? Da resposta a essa pergunta derivaram os fatos presentes da nossa vida, oriundos dos desejos futuros. Quanto de tudo aquilo que desejei, realizei? Quanto de tudo aquilo que projetei, executei? Quanto de tudo aquilo que sonhei, vivi? A resposta a essas perguntas vai lhe fazer admitir que sim, se pudesse, mudaria uma coisinha aqui, outra coisinha ali, do incorruptível passado, nesse exercício nefasto que, por não ter o que fazer, lhe proponho hoje.

Artisticamente falando, somos o resultado desse passado. Como artista, cada passo dado nesta longa jornada para o fim, moldou o presente – que assola ou regozija – e configura o futuro. Em qual ajuste você investiria, se a vida não fosse tão sólida como a pedra? O que teria alterado na sua vida, para melhor ou pior, aquela mudança de comportamento, decisão ou opção, que sempre esteve sufocada no âmago da sua essência simplesmente pela máxima de saber que o passado não se muda? O convite recusado? A decisão pouco pensada? A música que não deveria ser gravada? O livro não publicado a tempo, e que agora caducou? A performance que envergonhou? A genialidade fingida? A construção descuidada daquela personagem? O conhecimento simulado? A encenação não encarada por covardia? A constelação de trejeitos, rompantes, discurso e tiradas usada para camuflar o embuste?

Por tudo isso, é muito mais fácil abraçar-se aos clichês, não pensar no assunto, e sentenciar: não me arrependo de nada! Talvez – e isto é apenas a especulação de um artista inútil –, a revista ao passado, a ficcional possibilidade de mudar o que passou, possa gerar uma reflexão que afete o ser presente, e, naturalmente, altere o ser futuro, tornando-o menos pior. O que penso é que, se o passado servir para corrigir o presente, teremos um futuro melhor – claro que falo sobre o ponto de vista de outro eterno clichê inútil, o de mudar o mundo, que me é tão caro. A ideia ególatra de não alterar um passo de tudo o que foi feito não é uma armadilha que afetará consideravelmente o porvir?

Eu mudaria algumas coisinhas, sim. Talvez estudasse mais. Talvez aprofundasse a intimidade com artistas outros que conheci. Talvez seria mais militante. Talvez recusasse alguns trabalhos. Talvez construísse mais castelos na areia. Certamente venderia um pouquinho menos minha alma pro diabo. Talvez fosse menos severo comigo, mais delicado contigo. Talvez falaria menos e criaria mais. Talvez atravessasse o deserto para levar uma peça de teatro para o amigo moribundo. Talvez vivesse mais e pensasse menos. Talvez, se o passado fosse um palimpsesto onde pudéssemos escrever e apagar, indefinidamente, até cansar de peregrinar. E você?

Claro que esta reflexão é motivada pela pesquisa do nosso novo espetáculo, inspirado no conto “La otra muerte”, de Jorge Luís Borges. Enquanto você não vê o resultado artístico, lhe perturbo com o processo – essa coisa que não é nada, confunde todo o mundo, e alimenta o ego do artista que tenta garantir o holofote antes mesmo que o espetáculo veja a luz. Quem sabe você não colabora para conseguirmos realizar outro dos nossos retumbantes fracassos?