João Ubaldo
Ribeiro, na propaganda de uma entrevista dada a Fernanda Torres que ainda não
vi, falava sobre ler sem entender. É o que tenho feito durante mais de quarenta
anos: ler sem entender. Vou lendo, deixando que as palavras façam seu genioso
trânsito pelo cérebro, esperando que essa experiência repercuta de alguma
maneira em tudo o que meu ser procura, sonha, contesta, provoca, pratica. Mas
entender, entender mesmo, nunca entendi. Creio que cerca de oitenta por cento
de tudo o que li na vida me deixou com aquela incessante sensação do incompreendido;
aquela eterna pergunta que por vezes me deixa contrafeito: será que é isso?
Agora mesmo, enquanto leio algum clássico que me devo, fico me perguntando: o
que está assentado nessas páginas que jamais chegarei a entender?
Enquanto essa
sensação perdura, vou me deliciando com o hábito de confrontar as páginas, vou
deslizando os olhos sobre as frases e seus mistérios, deixando a leitura fluir
como queira, sem constrangimento. Quantas vezes atravessei laudas inteiras
esperando que os miolos concluíssem o raciocínio provocado pela escritura,e
padeci, em silêncio profundo, com os olhos cravados no ponto final, perante a certeza
de não ter entendido nada? De Nietzsche a Derrida, de Borges a Vallejo, de Suassuna
a Saussure, de Raymond Williams a William Shakespeare, de Macedonio Fernandez a
Roland Barthes, centenas de páginas livres; uma chuva de papel em forma de sentido
desafiando minha paciência, e eu, com a persistência que me é peculiar, lendo,
sem pressão, sem pretensão, aguardando o destino que o pensamento dará para a
sentença; esperando encontrar na cabeça um lugarzinho útil para aquele capítulo
inteiro que me pareceu inútil.
Minha irmã lê e
entende. Entende com uma precisão assustadora. Uma leitura profunda, que
permite a reprodução milimétrica de todo o sentido, por mais complexo que seja.
Quando me explica algo que acabou de ler, fico olhado para ela como um jumento
olhando para um castelo. Na maioria das vezes não consigo acompanhar plenamente
o raciocínio, mas separo um tempinho no meu juízo para ficar apenas contemplando
a cena, seus gestos e compassos, admirado com a clareza que ela consegue ter do
que acabou de ler, enquanto extraio da explicação algo do que ali estava
escrito. Sempre invejei essa inteligência, e encontrei na boa e
descompromissada prática de ler sem entender a forma de acompanhar tudo aquilo
que eu imaginava existir em cada uma das obras que se me apresentaram no
decorrer da vida.
O leitor deve
pensar que faço galhofa, mas sou franco. Falando profissionalmente, o que
existe em mim de Grotowski, Artaud, Barba, Stanislavisk, Kantor, Chekhov, Brecht,
Brook, é o manifesto estado do ler sem entender. Em mim, esses autores são uma
massa fértil e confusa de ideias, estudos, postulações, indagações, métodos, tratados
e teses impregnadas, assimiladas de maneira particular, pessoal e peculiar,
através da passagem das páginas desses livros pelos olhos de alguém que lê,
deseja entender, e continua lendo à espera de que o fenômeno aconteça, sem se
assombrar com o fracasso. Assim construí meu pensamento por falta de mediação,
como outrora comentei aqui.
Hoje, já cambaleando
no tempo reservado ao homem para fazer o resumo da sua história, não tenho mais
pretensões. Imagino que chegarei ao fim como um ser que leu mais do que devia, menos
do que queria, entendeu um pouco do que lia, e se divertiu com o hábito de ler,
mesmo sem entender. Por isso continuo. Lendo sem parar para pensar se entendo.
Mesmo agora, quando me espera o presente da querida Flávia Teixeira, tentando
provocar meu juízo com a Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han. Tomara que eu
entenda.
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