domingo, 30 de outubro de 2016

Da epicização do teatro


Há alguns anos venho percebendo uma acentuada epicização do teatro brasileiro atual. Se eu tomasse como exemplo minha recente trajetória como espectador, diria, sem receio, que oitenta por cento do teatro que assisti nos últimos anos constrói sua narrativa substituindo a ação como fundamento de constituição do dizer, consolidando sua dramaturgia através da contação, da narração, da utilização do discurso indireto, da presença do narrador, elementos basilares da escrita épica, mesmo que a intenção esteja distante de qualquer relação com o teatro épico, que tem como referência o dramaturgo Bertold Brecht. Isso porque o que proponho discutir é sobre o ponto de vista de uma epicização ocorrente a partir dos gêneros literários e não teatrais. A tese que levanto não procura fazer juízo de valor, apenas busca problematizar a pronunciada desproporção entre as características épicas/narrativas e as dramáticas na construção teatral contemporânea, sua gênese e possíveis consequências.

Inicialmente valeria apontar algumas características de ambas estruturas, e tentar, a partir da forma, problematizar seu conteúdo. Ao tomar a palavra drama no sentido de ação, podemos dizer, rasteiramente, que uma peça teatral dramática consolida sua escrita cênica através da ação das personagens. É a ação entre as personagens que conta a história, basicamente, através do discurso direto. O bom e velho Aristóteles, no livro III da sua Poética, diz: (...) “seja deixando as personagens imitadas tudo fazer, agindo”. E ainda: (...) “pois ambos [Sófocles e Aristófanes] representam pessoas fazendo, agindo. Essa, segundo alguns, a razão do nome drama, o representá-las em ação”. Por outro lado, a epicização que aqui problematizo, apresenta a figura de algum tipo de narrador contando a história, com personagens formais menos robustas, atores intercalando funções narrativas e dramáticas, e grande parte da dramaturgia construída em discurso indireto.

Feito esta contextualização para a querida leitora e o caro leitor pouco afeito a chatices tecnicistas de quem faz teatro ou literatura, e mais acostumado ao provocativo exercício de ser espectador ou leitor – e você pensava que o blog só tinha leitores artistas –, desenvolvo o problema, e apresento minha tese. Para mim, o problema está no desequilíbrio – mesmo problema percebido na postagem anterior, apesar de tratar de outro tema. Não vejo maiores consequência em qualquer uma das formas estruturantes de uma peça teatral, apenas me preocupa o desequilibro numérico entre as partes, suspeitando que uma desproporção de magnitude proeminente como a que suponho, seja, de alguma maneira, comprometedora da lucidez que o conjunto de produção teatral de uma época deve ter para confrontar sua realidade e ser instrumento de balizamento desta.

Diferentemente da maioria das minhas postagens, que busca a reflexão através da negação de uma escritura conclusiva, apresentando perguntas e especulando com as imaginárias respostas do leitor, hoje apresento minhas suspeitas quando à origem da desproporção entre uma cênica mais dramática e outra mais epicizada.

Com frequência ressalto que o ser humano ocidental é forjado pela sociedade como um narrador. Desde a infância somos provocados a contar histórias, seja na redação de como foi o nosso fim de semana, seja na mesa de jantar, contando como foi o nosso dia. Raramente, para não sentenciar um nunca, na nossa formação escolar, somo provocados a construir personagens e a contar histórias através da ação dessas personagens. As personagens aparecem, contudo, contadas por nós, narradores das nossas redações, contos, histórias, fantasias, conversas. O paciente leitor estará se perguntando onde quero chegar, o impaciente, calculando o momento de abandonar o texto, e eu apresentando, no próximo parágrafo, a segunda informação fundamental para embasar minha teoria.

Outra particularidade recorrente da recente estruturação do teatro brasileiro contemporâneo se dá na mudança na construção do texto teatral. Se tradicionalmente o texto era escrito por um dramaturgo de gabinete, atualmente grande parte da multiforme e polissêmica dramaturgia contemporânea substituiu o dramaturgo por construções coletivas, colaborativas, presenciais, onde a principal fonte de produção do dizer é o ator, um ator criador, pesquisador, um ator robusto de formação e entendimento, mas, na maioria das vezes, sem um conhecimento técnico formal de dramaturgia. No entanto, o ator, como cidadão, recebeu a mesma preparação sócio-escolar que todos nós, e não está imune à epicização que defendi no parágrafo acima.

Naturalmente – e concluindo, prometo! – a influência que o ator recebe na formação social interfere, acidentalmente, nas postulações, improvisações, incursões e escrituras no momento de produzir dramaturgia. Com isso, organicamente, a produção teatral receberia uma influência de cunho mais narrativo/épico que dramático, e passaria a preponderar essa forma em detrimento marcante da outra. Penso que esse seria apenas um dos fatores do sintoma que apresento e que convido a discutir, pois acredito que outros são igualmente responsáveis pelo desequilíbrio aqui problematizado, entretanto, a extensão já obscena desta postagem me impede de aprofundar.

É uma tese. Absurda, botequinesca, mas tese, enfim. Como advertido em toda a postagem, a experiência de qualquer forma teatral jamais será problema, ao contrário, oxigena, desestabiliza, provoca, sustenta o teatro que fazemos. Contudo, se confirmado o saliente desequilibro que aqui apresento como suspeita, creio que uma reflexão profunda e aguda seria pertinente para não sermos conhecidos pela história como a turma que epicizou o teatro, ou aqueles que destruíram o drama – do verbo grego “draomai”, que significa agir, levado por uma causa visando uma consequência, segundo um bom e velho professor de latim, nas minhas eternas e fugazes experiências acadêmicas. Aguardo sua antítese pós-dramática.

9 comentários:

Fernando Yamamoto disse...

Concordo com o diagnóstico do Teatro contemporâneo, discordo do caminho que você percorre. De nada adianta essa referência narrativa na nossa formação (aliás, será só nossa? A tradição dos griôs é milenar, inclusive nos nossos indígenas), se Hollywood e, principalmente, a globo, chegam atropelando com drama estrategicamente ilusionista (em geral de má qualidade). 99% dos participantes das oficinas de iniciação que já encontrei na vida vieram carregados dessa referência televisiva que, pra colocar um pouco de distanciamento crítico (nem falo de épico), dá um trabalho danado.
Mas é fato que o teatro que fazemos é eminentemente narrativo e, salvo raras exceções, chato! Esquecemos o poder de encantamento do Teatro, como se não fosse possível encantar e ser político ao mesmo tempo. Eu acho que dá. Não consegui fazer isso ainda, mas é o que persigo cotidianamente...

Kil disse...

Marcelo, procede. Mas eu diria que trata-se mais de uma "narrativização" da cena que uma epicização, ao menos se a referência for Brecht. Você aponta essa diferença de passagem, mas acho que ela não sobrevive até o final. Sem dúvida o "boom" é na direção de um teatro narrativo, mas não necessariamente épico, no sentido moderno.

O teu argumento é interessante e como diz o Fernando Yamamoto acho que se mantém de pé até certo ponto. Isso da formação em termos de um teatro narrativo é fato. Mas, há algumas implicações nos arredores, que te proponho (daí a gente pode discutir ao vivo e a cores qualquer hora):

Como diz o velho Anatol em umas duas ou três linhas que a gente costuma desprezar na apresentação do seu fundamental "O teatro épico", os gêneros não são departamentos criados pela teoria literária do nada. Estão enraizados na vida e nas maneiras como aprendemos a nos relacionarmos. Cada gênero tende a responder mais de perto a uma série de disposições - existenciais, filosóficas e políticas - ou seja, tendem a traduzir, em forma, os modos específico da sociabilidade (e não somos só "ocidentais", somos brasileiros, e paraenses, maranhenses, potiguares, paulistas, cariocas - cada praça com as suas novidades) . No nosso caso isso se torna algo interessantíssimo. Por que se formos olhar com a lupa veremos que nem o drama nunca foi uma vocação redonda para o Brasil. Porque a sociabilidade não deixa. O fundamental do drama, além da ação que você sintetizou bem, é o seu fundamento político: a assunção do enfrentamento, do conflito que se resolve na luta entre argumentos opostos. Por isso o drama é invenção europeia - é fruto de uma cultura de enfretamentos como motor da História. Daí as revoluções burguesas e etc. Entre nós foi difícil pegar. Basta consultar o Sergio Buarque de Holanda e a ideia da cultura cordial (hoje discutida), pra ver que a nossa vocação está mais para os panos quentes, para a acomodação, os tapinhas nas costas e apadrinhamentos. Ou para os enfrentamentos estéreis, que não dão os "saltos de qualidade" no sentido do aprofundamento dos impasses indispensáveis às pequenas revoluções que um drama rigoroso sempre instaura na sua forma.
Quanto à recorrência à narrativa, junto com esse aspecto formativo te proponho pensar sobre o porquê disso. Por que o teatro começou desesperadamente a narrar (e não necessariamente em termos brechtianos)?. É uma questão em torno da qual eu também estou. Outro dia eu lia uma fala do Paulo Leminiski, num seminário sobre a paixão (jã não se fazem mais seminários como antigamente!!). O tema dele era "paixão e poesia". E ele começa dizendo mais ou menos o seguinte: muitas vezes, quando a gente começa a falar muito sobre uma coisa não é porque ela está de fato a mão, é porque está em falta. A recorrência, na arte, em geral não denuncia o que já está; denuncia os buracos, as faltas. Se essa ideia estiver num caminho bom, uma pergunta talvez produtiva seja: o que é que esse gosto pela narrativa está nos dizendo? O que é que está nas suas formas e nos seus efeitos, que nos falta? Voltando ao Anatol, talvez esse seja um bom caminho pra entender as escolhas formais e as suas recorrências um pouco além das escolhas como um ato em si. Tá tudo enraizado na vida. É uma pergunta, pra fazer a dialética com o que você postou.
Veja se faz sentido e qualquer hora apareço por aí pra comer um camarão maranhense e tomar uma com você e Kátia. Aquele abraço.

Kil disse...

* "Os modos específicos da sociabilidade"
*"Porque se formos olhar com a lupa" (e não "Por que")

Fernando Yamamoto disse...

Fecho com o Kil! Aliás, como sempre... Na cachaça e no pensamento! O elemento definidor do teatro épico é, ao meu ver, a historicização do olhar, e não o distanciamento em si ou o recurso narrativo. Mas esses acabam aparecendo num primeiro plano e gerando essa identificação imediata. Quanto à recorrência, também tenho a clara impressão que é uma busca de preencher as ausências. Só questiono - voltando ao final do meu comentário anterior - que o recurso vira dogma e tudo que passa à sua margem vira menor, alienado... Há caminhos! Há braços!

Marcelo Flecha disse...

Rapaz! Os dois, você e Fernando, estão devendo essa visita, sem compromissos teatrais, só para curtir a residência Lopes Flecha! Quanto aos comentários de ambos, muita coisa para pensar, e muitas provocações. Como só li agora, vou processar e, provavelmente, reservar as réplicas para o tete a tete, que é muito mais prazeroso... Isso se eu resistir até la! Abraço aos dois, e a saudades de um bom papo!

Marcelo Flecha disse...

Quando terminei de comentar, você já tinha comentado, Fernando, e meu comentário ficou fora da ordem. Mas como a ordem dos fatores não altera a cachacinha, espero os dois! (Gargalhadas)

Marcelo Flecha disse...

Adriano Abreu disse:
O "desequilíbrio" entre estruturas narrativas (não épicas, concordo com o Kil) e dramáticas caracterizam boa parte do teatro feito na contemporaneidade, isso é corretíssimo Flechovski, porém, não é tudo. Acredito que essa característica não seria em virtude da nossa formação cultural unicamente, provavelmente, faz parte da busca do teatro por uma maior potência (isso é uma tese absolutamente questionável, ainda assim, vou propagando-a). O enfrentamento da nossa arte, diante da força dos outros veículos que exploram o dramático (TV, cinema), causou essa "narratização", em muitos casos uma "performatização".
A questão que me incomoda porém é outra, nessa luta por poder de fogo e efetividade, muitas vezes, o fenômeno teatral acaba tornando-se seara de muitas crises de identidade, como essa tocada no seu texto, e as formas utilizadas por ele, tornam-se mais essenciais do que os conteúdos e ideias abordadas .
Escrevi aqui Flecha, porque não consegui postar lá e queria meter meu bedelho nesse imbróglio.
Como sugestão que tal escrever como isso ocorre na sua prática na Pequena Cia, ou não ocorre?
Aqui no Piauhy Estúdio das Artes tenho buscado um "equilíbrio" entre o narrativo e o dramático nos nossos trabalhos. No caso do espetáculo Fogo, na Mostra Nordeste de 2014, tascaram-lhe a pecha de teatro épico, o que eu discordei peremptoriamente.
Na mostra desse ano, disseram que nosso trabalho, "Exercício Sobre Medeia", era Teatro Antropológico, SQN. Porque a necessidade esfuziante de rotularem os teatros? Outra pauta para ti.... Abração!

Eraldo Maia disse...

Eraldo Maia,
Só hoje tive oportunidade de visitar a Pequena Cia e achei por demais interessante o tema, quis meter meu bedelho na discussão, aí vai.
Tem um filme francês chamado Bem me quer, mal me quer que conta a história de amor, entre um médico e uma artista, não mais interessante que outras histórias de amor, entre um homem e uma mulher. O interessante do filme é que o diretor o dividiu em duas metades: Na primeira a personagem feminina conta a história, e, na segunda, ele mostra que toda aquela história era uma fantasia da cabeça da personagem. E com isso, põe-nos diante de duas “verdades”. Por que cito esse filme aqui nesse comentário? Por que acredito que diferentes maneiras de ver e ler o mundo podem partir da mesma vivência, entretanto, os sujeitos viventes, dependendo de suas posições no contexto geo-político em que se inserem podem apresentar diferentes versões (aqui vai uma antítese) verdadeiras para uma mesma vivência. Talvez um modo de começarmos a escavar suas provocações Flexa, seja perguntar se, essa história vista hoje no teatro a que você se refere fosse também apresentada no padrão dramático que outra verdade nos traria? Confrontando e comparando os resultados, talvez pudéssemos começar a comrpreender o porquê das escolhas.

JeyzonLeonardo disse...

...(processando)...