Há alguns anos
venho percebendo uma acentuada epicização do teatro brasileiro atual. Se eu
tomasse como exemplo minha recente trajetória como espectador, diria, sem
receio, que oitenta por cento do teatro que assisti nos últimos anos constrói
sua narrativa substituindo a ação como fundamento de constituição do dizer,
consolidando sua dramaturgia através da contação, da narração, da utilização do
discurso indireto, da presença do narrador, elementos basilares da escrita
épica, mesmo que a intenção esteja distante de qualquer relação com o teatro
épico, que tem como referência o dramaturgo Bertold Brecht. Isso porque o que
proponho discutir é sobre o ponto de vista de uma epicização ocorrente a partir
dos gêneros literários e não teatrais. A tese que levanto não procura fazer
juízo de valor, apenas busca problematizar a pronunciada desproporção entre as
características épicas/narrativas e as dramáticas na construção teatral
contemporânea, sua gênese e possíveis consequências.
Inicialmente
valeria apontar algumas características de ambas estruturas, e tentar, a partir
da forma, problematizar seu conteúdo. Ao tomar a palavra drama no sentido de
ação, podemos dizer, rasteiramente, que uma peça teatral dramática consolida
sua escrita cênica através da ação das personagens. É a ação entre as
personagens que conta a história, basicamente, através do discurso direto. O
bom e velho Aristóteles, no livro III da sua Poética, diz: (...) “seja deixando
as personagens imitadas tudo fazer, agindo”. E ainda: (...) “pois ambos
[Sófocles e Aristófanes] representam pessoas fazendo, agindo. Essa, segundo
alguns, a razão do nome drama, o representá-las em ação”. Por outro lado, a
epicização que aqui problematizo, apresenta a figura de algum tipo de narrador
contando a história, com personagens formais menos robustas, atores
intercalando funções narrativas e dramáticas, e grande parte da dramaturgia
construída em discurso indireto.
Feito esta
contextualização para a querida leitora e o caro leitor pouco afeito a chatices
tecnicistas de quem faz teatro ou literatura, e mais acostumado ao provocativo
exercício de ser espectador ou leitor – e você pensava que o blog só tinha
leitores artistas –, desenvolvo o problema, e apresento minha tese. Para mim, o
problema está no desequilíbrio – mesmo problema percebido na postagem anterior,
apesar de tratar de outro tema. Não vejo maiores consequência em qualquer uma
das formas estruturantes de uma peça teatral, apenas me preocupa o desequilibro
numérico entre as partes, suspeitando que uma desproporção de magnitude proeminente
como a que suponho, seja, de alguma maneira, comprometedora da lucidez que o
conjunto de produção teatral de uma época deve ter para confrontar sua
realidade e ser instrumento de balizamento desta.
Diferentemente
da maioria das minhas postagens, que busca a reflexão através da negação de uma
escritura conclusiva, apresentando perguntas e especulando com as imaginárias
respostas do leitor, hoje apresento minhas suspeitas quando à origem da
desproporção entre uma cênica mais dramática e outra mais epicizada.
Com frequência
ressalto que o ser humano ocidental é forjado pela sociedade como um narrador.
Desde a infância somos provocados a contar histórias, seja na redação de como
foi o nosso fim de semana, seja na mesa de jantar, contando como foi o nosso
dia. Raramente, para não sentenciar um nunca, na nossa formação escolar, somo
provocados a construir personagens e a contar histórias através da ação dessas
personagens. As personagens aparecem, contudo, contadas por nós, narradores das
nossas redações, contos, histórias, fantasias, conversas. O paciente leitor
estará se perguntando onde quero chegar, o impaciente, calculando o momento de
abandonar o texto, e eu apresentando, no próximo parágrafo, a segunda informação
fundamental para embasar minha teoria.
Outra
particularidade recorrente da recente estruturação do teatro brasileiro
contemporâneo se dá na mudança na construção do texto teatral. Se
tradicionalmente o texto era escrito por um dramaturgo de gabinete, atualmente
grande parte da multiforme e polissêmica dramaturgia contemporânea substituiu o
dramaturgo por construções coletivas, colaborativas, presenciais, onde a
principal fonte de produção do dizer é o ator, um ator criador, pesquisador, um
ator robusto de formação e entendimento, mas, na maioria das vezes, sem um
conhecimento técnico formal de dramaturgia. No entanto, o ator, como cidadão,
recebeu a mesma preparação sócio-escolar que todos nós, e não está imune à
epicização que defendi no parágrafo acima.
Naturalmente – e
concluindo, prometo! – a influência que o ator recebe na formação social
interfere, acidentalmente, nas postulações, improvisações, incursões e
escrituras no momento de produzir dramaturgia. Com isso, organicamente, a
produção teatral receberia uma influência de cunho mais narrativo/épico que
dramático, e passaria a preponderar essa forma em detrimento marcante da outra.
Penso que esse seria apenas um dos fatores do sintoma que apresento e que
convido a discutir, pois acredito que outros são igualmente responsáveis pelo
desequilíbrio aqui problematizado, entretanto, a extensão já obscena desta
postagem me impede de aprofundar.
É uma tese.
Absurda, botequinesca, mas tese, enfim. Como advertido em toda a postagem, a
experiência de qualquer forma teatral jamais será problema, ao contrário,
oxigena, desestabiliza, provoca, sustenta o teatro que fazemos. Contudo, se
confirmado o saliente desequilibro que aqui apresento como suspeita, creio que
uma reflexão profunda e aguda seria pertinente para não sermos conhecidos pela
história como a turma que epicizou o teatro, ou aqueles que destruíram o drama
– do verbo grego “draomai”, que significa agir, levado por uma causa visando
uma consequência, segundo um bom e velho professor de latim, nas minhas eternas
e fugazes experiências acadêmicas. Aguardo sua antítese pós-dramática.