domingo, 25 de setembro de 2016

Sobre uma nova montagem – confissão inaugural


O processo de montagem de um novo espetáculo é sempre o momento mais agudo da minha vida. Sempre que o momento urge, inicia-se em mim uma espécie de desconstrução criativa, pasmo abissal, escândalo informativo, colapso temporal, caos dramático. Tudo o que penso, imagino, estudo, pesquiso, desenvolvo, projeto, cobre-se de uma acentuada insignificância, irrelevância; a mais absoluta comprovação da verdadeira inutilidade da arte, do teatro, do artista. Tudo apodrece, tudo é falência, tudo é angústia, tudo é miséria, tudo é desencanto, tudo é descontentamento. Só me reconheço inútil, medíocre, embusteiro.

Então, para que isso tudo? O que me motiva? O que me provoca? O que me faz ser o encenador da próxima montagem da Pequena Companhia de Teatro? A utopia. Eu acredito piamente que, depois de pronto, o futuro espetáculo da Pequena será capaz de transformar o mundo. Sim. Transformar o mundo: acabar com a fome, resolver o problema dos refugiados, reduzir os índices de analfabetismo, suspender o aquecimento global, derrubar o governo Temer. A insistente leitora, o resistente leitor, devem espantar-se com o tamanho da minha pretensão nesta última sentença, mas é isso que eu pretendo quando se inicia uma nova jornada teatral. No momento da criação de um novo espetáculo, a exigência que me faço é que a montagem tenha a potência necessária para mudar o mundo. Claro que a realidade chegará, e a estreia confirmará outro dos tantos fracassos que colecionei durante toda minha vida. Mas, agora, com toda a dor da insegurança, acredito nisso.

Não sei bem como meus companheiros de grupo lidam com o início de um processo. Nunca sentamos, Katia, Jorge, Cláudio e eu, para falar das nossas aflições no momento de iniciar uma nova montagem. Como também é ofício, sempre nos concentramos no desenvolvimento do espetáculo, com seus ensaios, discussões, pesquisas, recursos; mas raramente externamos angústias íntimas, dúvidas existenciais, agonias criativas. Fazemos isso paralelamente, amigos que somos, um com outro, outros sem um, dois entre dois, e as configurações que o número quatro permite. Tampouco sei como outras pessoas lidam com isso. Raramente ouço de um amigo em processo de montagem quais são os seus fantasmas; divagamos sobre técnica, caminhos, leituras, treinamento, temática, mas raramente o âmago, a víscera, a chaga, a dor.

Dói. Dói em mim tudo o que há para dizer, tudo o que há para fazer, tudo ao mesmo tempo agora, e nunca, e sempre, e de repente. Sustento, apunhalada às minhas costas, a bandeira da transformação, e para alcançar o feito tento me transformar em um delirante, em um demente, em um infame; buscar o dito na palavra muda, conseguir o grito que acorde o mundo, desferir o golpe que vença a injustiça; e me deparo com a falha, a falência, a derrota, o problema, o dilema.

Utopia. Começar um novo espetáculo é reafirmar o poder da utopia, é relembrar a importância da luta inútil, é iniciar a luta da batalha perdida. É o único e singelo momento em que se vive a epifania de compreender a subversiva inutilidade da arte. Por isso minha dor, meu descalabro, meu desatino, meu desalento. Claro que o leitor insensível perguntará, com o escarnio que lhe é peculiar quando encontra o momento de achincalhar este dedicado escritor, – e o teatro é isso tudo? – É necessário esse drama todo? – É preciso essa choradeira infinda? – Se é tão ruim, não para por quê?

Respondo que só sei fazer assim. Foi assim que a vida me levou para este caminho. Foi assim que as mazelas do mundo me fizeram desembarcar no teatro. Nunca decidi fazer teatro, eu me percebi fazendo teatro. O teatro foi se transformando no meu grito. O teatro foi se transformando no meu solo. O teatro foi quem me deu colo. Por isso tem que ser assim. Por isso não pode ser diferente. Por isso não posso parar. Por isso não posso abandonar a utopia. Porque sem acreditar que podemos mudar o mundo minha vida não faria o menor sentido, e de inútil basta a arte.


domingo, 18 de setembro de 2016

A vitória da vaidade


O que está acontecendo com a sensatez humana? A pergunta, que será a provocadora da série de postagens que começo hoje, surge da espantosa capacidade de me surpreender que a sociedade contemporânea vem desenvolvendo, e que me transforma, cada vez mais, neste vetusto e incorrigível homem das cavernas.

Hoje ajusto o foco na vaidade, no autorretrato, na autopromoção, no autoelogio, na visibilidade a qualquer preço. Como chegamos a isso? Se fizermos um pouco de memória, não muito tempo atrás, tudo o que englobava esse tipo de comportamento era defeito grave digno de rejeição social e, em alguns casos, motivo de chacota, galhofa, pilhéria, caçoada, zombaria, troça, que atualmente recebe o nome de bullying – como se palavras como assédio, intimidação, tirania, opressão, ameaça não existissem no nosso vernáculo.

Quando foi que isso mudou? Em que momento a vaidade deixou de ser um defeito, um famigerado pecado capital, e se transmutou em qualidade? Que curiosa transformação colocou a humanidade nessa disputa despudorada e explícita para ver quem é o mais vaidoso? Como não preciso mais de provas, transformarei as minhas suspeitas em convicções, e tentarei lançar um olhar sobre a desumanização da humildade e o (in)consequente envaidecimento da vaidade.

Suspeito que a transformação ocorreu quando a lente da máquina fotográfica, que era a tradutora do nosso olhar perante o mundo – um olhar particular, único, que mostrava, através do meu enquadramento, das minhas opções de cores, das minhas escolhas, como eu enxergava o universo à minha volta –, foi rotando, sutilmente, em direção ao nosso próprio rosto, à nossa cara, à nossa maquiagem carregada, à nossa barba bem-feita, à nossa sobrancelha desenhada, ao nosso lifting, ao nosso Botox, à nossa necessidade de escancarar nossa belíssima perfeição estética, promovendo a cultura do autorretrato, do auto-almoço, da auto-paisagem, do auto-eu-mesmo-de-tudo-o-que-seja-de-mim, que hoje atende pela alcunha de selfie. Vaidade. Ao virarmos a câmara para nós, deixamos de entender a importância do nosso olhar particular perante o mundo, e transformamos o mundo na vitrine onde exponho o meu eu para uma infindável cachoeira de curtidas catatônicas.

 
Com a mesma sutileza, a humildade passou a ser defeito, uma característica a ser ocultada, mascarada, sob o risco de apresentar-se como uma pessoa com baixa autoestima. A humildade passou a ser conhecida como falsa modéstia, como se a modéstia fosse uma qualidade impossível de existir na atualidade. A humildade chegou ao ponto de ser a própria vaidade, se o humilde não se descuidar ao defender seu comportamento. Ouçam o meu brado retumbante: humildade não é defeito! A humildade precisa ser preservada, exercitada, ou viveremos a amargura de trocar uma mesa com velhos amigos por velhos em uma mesa com retratos antigos.
 

No início deste século dediquei um ano inteiro a um dos meus inúmeros fracassos poéticos, um livro que se chamava “O Calvário da Vaidade”, onde eu decidia enfrentar um dos meus mais temidos fantasmas, tentando dissecar esse pesado capital, na inútil tentativa de me tornar um homem melhor. Claro que fracassei, poeticamente, humanamente. Contudo, a experiência me acurralou, e ao terminar minha hercúlea jornada me deparei com um dilema matricial: a publicação do conteúdo do livro não seria um exercício de vaidade? Se tudo o que eu queria com a experiência era exercitar a humildade, o pavoneio da exposição comprometeria minha empreitada. Fracassei no exercício. A humanidade jamais viu os escritos, não por minha decisão de não publicar o livro, e sim pela mediocridade do seu conteúdo. Insisti, inscrevi, enviei, implorei, mas nunca consegui publicar. Todavia, inescrupulosamente, tentei. A tosca anedota demostra que, apesar do meu esforço em extirpá-la, a vaidade me venceu. Aviso aos navegantes que se regozijam ao saber do meu fracasso: não está morto quem peleja, e continuo meu exercício cotidiano.
 
Se eu procurei, sem sucesso, expurgar a vaidade através da literatura, a literatura tornou-se uma das grandes responsáveis pelas consequências que bradejo hoje, através de um gênero textual chamando de autoajuda. Os livros deste gênero são insufladores de autoestima, vaidade, autoafirmação, egolatria. Para estes, um ser humano humilde é um ser menor, com autoestima baixa, precisando de ajuda, mergulhado no abismo da sua insignificância. Para que ler o Dom Quixote, e se angustiar com a mediocridade do Cavaleiro da Triste Figura e sua derrocada perante a vida, se posso enriquecer meu repertório de ostentação qualitativa com a leitura de livros que vão direto ao ponto: seja um vencedor?
 
É isso o que este momento histórico pretende: camuflar nossa insignificância. Esconder o grande paradoxo da existência, nascer para morrer. Com essa investida, o sistema ameniza as angustias do humano ser, enquanto se alimenta com o consumo de processadores de selfies, cosmeticomilagres, app’aradores de falhas, gerando o consumismo predatório que hoje nos assola (tema de uma próxima postagem). Não lembro se Narciso se afogou, mergulhando atrás da sua imagem, se definhou contemplando sua beleza, ou se abriu um perfil em uma rede social. Só sei que sua experiência pouco tem contribuído para que as máquinas fotográficas recuperem seu objetivo original.  
 
 


domingo, 4 de setembro de 2016

Sobre festivais, festas, FestLuso e festejos

De 22 a 28 de agosto passado acompanhei a totalidade do FestLuso – Festival de Teatro Lusófono, em Teresina/PI, e participei da 5ª edição do NORTEA – Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste como expositor na mesa redonda “Teatro brasileiro de expressão nordestina: realidades, desafios e perspectivas”, além de dialogar através de demonstrações técnicas, encontro de diretores lusófonos, colóquios, conferências etc. Foi uma semana intensa, provocativa, afetiva.

A querida leitora, o caro leitor, sabem que toda experiência artística me provoca reflexões. No caso, lanço o olhar sobre os festivais, seus objetivos, desafios e padeceres, a partir de um exemplo singular, um encontro que se propõe a reunir todos os países de língua lusófona através do teatro – no caso da edição 2016, Brasil (Piauí, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro), Portugal, Cabo Verde, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

A primeira angústia emerge do enlace da realidade do FestLuso com a grande maioria dos festivais de teatro brasileiros: a falta de apoio continuado, tornando a edição seguinte uma mescla de sonho, desafio e abnegação. Com raríssimas exceções, todo festival brasileiro que se finda vive o dilema de não fazer ideia de como promoverá o vindouro, fator de comprometimento agudo no que tange à qualidade da programação, ao recorte curatorial, aos provocadores convidados, e a todo o entretecido que forma um festival de qualidade. É fácil colocar o olhar crítico durante, quando não se conhece o período de pré-produção dispensado possível, tendo em vista que algumas experiências chegam ao lançamento com promessas políticas e conta vazia.

Outro apontamento é quanto ao principal equipamento teatral da cidade, o Teatro 4 de Setembro, palco central da mostra lusófona e que, por coincidência, nos recebeu na semana anterior para a apresentação de Velhos caem do céu como canivetes, pelo SESC Amazônia das Artes. É urgente remediar o problema acústico provocado pela instalação de um número inimaginável de spliters em substituição à central de ar-condicionado anterior. Se a casa já não era de uma acústica impecável – apresentamos “Ramanda e Rudá”, em 1999 – agora transformou-se em um sumidouro de vozes, e nada que seja dito no palco consegue se ouvir se você estiver a partir da quinta fileira da plateia.

Observados esses dois problemas que perpassaram toda a mostra, ressalvo alguns pontos que valem a reflexão crítica, e me provocam como convidado e permanente colaborador deste querido festival. Quanto à necessidade de haver um recorte curatorial específico – neste ano versou sobre a negritude e suas ramificações – o comentário atento de Jorge Choairy ao ouvir meus relatos deu o tom da provocação: o ser lusófono já não é um recorte significativo como para somar recortes específicos? É uma questão que penso que valha ser analisada, sob pena de inviabilizar uma produção potente.

Certamente, a diferença mais significativa em relação às edições anteriores que acompanhei, foi a realização do NORTEA, deslocada sua 5ª edição do FILTE Bahia – Festival Latino-americano de Teatro da Bahia para o FestLuso. Se nos anos anteriores era reservada uma manhã para o encontro de diretores lusófonos, este ano todo o período matutino do festival dedicou importante espaço para a problematização do teatro, seu fazer e dizeres. Um diálogo intenso foi travado durante toda a jornada, oxigenando a mostra e ampliando seu alcance reflexivo. Penso que uma maior presença deveria ser cobrada dos grupos participantes em todas as atividades formativas e reflexivas, como contrapartida ao esforço da organização em viabilizar o intercâmbio. Essa participação auxiliaria no mapeamento dos grupos, suas estruturas e formas de manutenção artística.

Quanto à mostra propriamente dita, o recorte lusofônico promove um desnivelamento qualitativo significativo, fazendo o espectador transitar por estéticas e linguagens atípicas, ora seja por contingenciamento econômico evidente, ora pela peculiaridade da construção desenvolvida naquele país. No geral, percebe-se que há um esforço conjunto, por parte da produção e dos grupos convidados, para conseguir manter de pé uma proposta tão autêntica e tão na contramão do mercado cultural; e estendê-la para todo o estado, pois a mostra se ramifica por outros municípios do Piauí, alargando o alcance dos recursos públicos envolvidos.

O encerramento da programação de cada dia acontecia no espaço Trilhos. O encontro dava o tom afetivo que o festival propõe. Toda noite, músicos dos mais diversos estilos, desfilavam seus sons para uma plateia feita de pessoas de todas as artes. Movimentos, conversas, performances espontâneas, discursos, improvisos, integravam realidades de países tão distintos ligados pela língua, em alguns casos, literalmente.

Foi uma experiência deliciosa e exaustiva (me propus acompanhar todos os espetáculos da mostra e todas as atividades reflexivas, tornando a rotina diária uma jornada que começava às 9h e terminava às 3h.), e em cada momento, em cada canto, em cada diálogo a certeza da potência que encontros artísticos dessa natureza têm para ajudar a confrontar momentos tão duros como os que estamos enfrentando atualmente. Os afetos envolvidos também me tornam suspeito, mas quero acreditar que, ao enfrentar um desafio tão instigante quanto o FestLuso oferece, todos os envolvidos – organizadores, artistas e voluntários – estão empenhados em superar-se, ano após ano, na busca de produzir o melhor festival possível para a comunidade piauiense.