domingo, 31 de julho de 2016

Entre tantas escrituras, uma homenagem ao leitor


Hoje presto uma homenagem a você, minha cara leitora, meu caro leitor. Dos meus dez anos de Pequena Companhia de Teatro, seis foram ocupados escrevendo neste blog, em um permanente adestramento do pensamento para tentar estabelecer um diálogo reflexivo, escrevendo sobre teatro e todo o seu entorno, o mundo, pois, para mim, o mundo gira em torno dele.
Portanto, hoje abandono minha permanente lamúria quanto à sua indiferença, minha constante chantagem por uma leitura, minha persistente insistência na sua presença, para dar lugar ao fato que escondo, por mero mecanismo de defesa, pois, sou apenas um fabulador que faz da sua escritura uma tentativa de aproximar um pensamento quanto aos caminhos que podemos seguir para sentirmos úteis fazendo algo de inútil nesta vida de exigente rendimento.
Comecei escrevendo para ninguém; outrora, para quase ninguém; logo, para alguns; mais tarde, para poucos; depois, para vários; e hoje escrevo para algumas centenas e, dependendo da postagem, milhares. Sim, essa informação que escondo permanentemente de você, para que não me abandone, hoje é uma realidade que quero externar e lhe dedicar.
É difícil prestar esta homenagem sem revelar minha surpresa ao ver a quantidade de gente que, no decorrer dos anos, se aproximou para estender seu olhar e amenizar as angústias que este parco escritor carrega na lida com um mundo repleto de injustiças, desigualdades, mazelas e intempéries. Perceber que mais e mais pessoas estão atentas às agruras de uma sociedade precária de autocrítica me fez acreditar cada vez mais na potência do diálogo e na necessidade de questionar tudo e todos, para que das questões surjam mais conceitos e menos iluminuras.
Em certa medida, íntima e cálida, você é parte do meu pensamento, parte do meu ser, parte do meu existir, parte da minha teimosa fortuna de jamais desistir. Você está aí e eu não sei se lhe conheço, mas você me conhece na mais profunda intimidade e me ampara com a generosidade de um irmão, de uma amiga, de um compadre, de uma companheira, extraindo de mim um compromisso inadiável, um diálogo inimaginável, um franqueamento incurável.
Por isso, minha homenagem. Jamais desista de mim, minha cara leitora, meu caro leitor. Jamais abandone a esperança de tornar o diálogo a arma para combater as mazelas do mundo, as faltas sociais, os descompassos da vida. Você é a minha esperança de que ainda existe espaço para a reflexão, para o pensamento, para o questionamento, para o velado desconforto atual de debater ideias.
A homenagem não apresenta uma justificativa palpável. Não é uma data específica, nem é o dia que iniciei este exercício; não há marca no calendário, não estou morrendo (espero), nem vou parar de escrever. Não há nada que pontue esta homenagem, a não ser o reconhecimento do quão importante você se tornou no decorrer dos anos, e no quanto eu, por mero exercício de sobrevivência criativa e literária, insisti em ocultar, imaginando que talvez um dia, sem aviso prévio ou motivo justificável, você fosse desaparecer. Obrigado. Por mais infiel, irresponsável, traidor, displicente e preguiçoso, você jamais me abandonou.

domingo, 24 de julho de 2016

Relato confessional sobre um conflito existencial


Durante toda a minha vida teatral me esquivei da palavra método quando se referia a práticas e teorizações organizadas por mim para o desenvolvimento de um ator pleno. Processo metodológico, treinamento, prática metodológica, metodologia, sistema, uma sorte de expressões e termos que serviram para camuflar, esconder, velar o desenvolvimento de algo que, ao nomenclaturá-lo como método, manifestava uma pretensão não condizente com o sentido da minha trajetória, porque, aos meus ouvidos, as palavras método e metido forçavam uma paronímia constrangedora.

Hoje, quase trinta anos depois de uma lida permanente e conflitante com o teatro, me pergunto: por que não chamar nosso sistema de operação do Quadro de Antagônicos de método? Pode ser insignificante, ineficiente, trôpego, claudicante, mas, tecnicamente, não seria um método, quer eu queira querer ou não?

Para simplificar o diálogo comigo mesmo recorro ao dicionário, e transponho a definição: 1) procedimento, técnica ou meio de se fazer alguma coisa, esp. de acordo com um plano. 2) processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa, instrução, investigação, apresentação etc. É o que desenvolvemos, no mínimo, há mais de uma década com o Quadro de Antagônicos. Sei que o fato nomenclatural é irrelevante, mas o que faço aqui é um desafogo quanto à minha angustiante relação com essa palavra, instrumento de cânones intocáveis da teoria teatral.

Não sei se o que expresso tem alguma importância, nem se resolve o meu conflito, mas creio que desmistificando publicamente certos conceitos arraigados em mim, endosso a desmistificação de outros tantos que engessam o fazer teatral, principalmente para que novos agentes não demorem trinta anos como eu para se livrar de alguma amarra. Todo engessamento na arte é nocivo, inclusive quando o gesso vem da resistência em se engessar com uma palavra – haja dicotomia paradoxal para justificar essa última frase!

É isso. O breve comentário que aqui faço sobre o tema, e que me é tão incômodo, foi provocado em uma das oficinas que ministrei recentemente pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, quando o caro Táliton questionou meu receio e opôs-se contundentemente à minha resistência em utilizar o termo. Como o tempo na oficina não possibilitava minha réplica, prometi que a faria em uma futura postagem. Eis.

E agora, caro leitor, o meu sussurro final. É assombrosa a função confessional que, por momentos, este instrumento [o blog] exerce sobre minha vida profissional e pessoal – que nada mais é do que tratar de teatro dentro de casa. Espero que tenha alguma valência para você, pobre confidente a quem convido a receber a confissão. Não fosse assim, eu morreria seco.
 
 

domingo, 17 de julho de 2016

Teatro em movimento – a roda da fartura


Hoje encerramos o projeto Pai & Filho, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, que buscou ocupar, com o maior número de atividades possíveis (apresentações, debates, oficinas e um fórum permanente de reflexão com um grupo de teatro convidado), o Centro-Oeste do Brasil (as cidades de Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e Goiânia/GO), região menos atingida pelas circulações da Pequena Companhia de Teatro até aqui, pois só Cuiabá havia nos recebido, em 2012.
É o teatro que nos move, literalmente. Nos movimentamos durante uma década, em todas as direções; seguimos por via terrestre, aérea, fluvial; de carro próprio, de avião, de van, de balsa, de ônibus, de camionete, de carroça (sim, nossos cenários já viajaram de carroça algumas vezes), e colhemos os frutos desse trânsito no olhar de cada espectador, de cada garçom, de cada companheiro de luta, de cada cidadão.
Plateia em Campo Grande
Na região central não foi diferente. O Centro-Oeste se apresentou como um outro Brasil, dos muitos Brasis distintos que carregamos na nossa memória, basilar para a composição deste país plural, heterogêneo, multicultural, ambíguo, desigual; carregado de tanta potência e desperdiçado por tanta incompetência – política, pois a soma desses muitos Brasis demonstra que um poder não é capaz de aniquilar a soma das vontades de uma nação.
Aqui, goianienses, primaverenses, campo-grandenses nos ensinaram que Panelinha, Mojica de Pintado e Sobá são manjares incomuns, que toda cidade tem os taxistas que merece, que árvore dá sombra, que teatro pode ser um belo programa de fim de semana, que existe um maranhense em cada esquina, que o valor de um real varia; e nos relembraram que toda plateia merece apreço, seja de vinte ou de duzentas pessoas, pois, sempre haverá um espectador atento ao trabalho de uma companhia de teatro compromissada com a reflexão sobre o nosso país.   
Oficina em Primavera do Leste
É impossível não pensar nas pessoas que encontramos pelo caminho; nos produtores, assistentes, atores, diretores, assessores, amigas,  recepcionistas, alunos, técnicos, tradutores; nos grupos Faces Jovem, Anthropos, e Mercado Cênico a materializar a importância da troca de experiências; na quantidade de gente que resolveu dedicar sua vida ao teatro e seu entorno, e no quanto essa escolha pesa, para bem ou para mal.
O país só será nosso quando nos apropriarmos dele na sua totalidade. É o que tentamos fazer quando circulamos. Nos apropriar de cada sabor, de cada costume, de cada gesto, de cada dificuldade, de cada paisagem, de cada distância; nos sentirmos donos de cada parte que forma esse todo chamado Brasil.
Espetáculo em Goiânia
Quando parados, aprisionados na nossa aldeia, não conseguimos mensurar o quão importante é viajar, conhecer, entender, refletir; e chegamos a duvidar do poder que o teatro tem de provocar a reflexão das pessoas, de abrandar convicções cristalizadas, de dar concretude ao pensamento crítico, de abrir o diálogo, de redefinir parâmetros para a vida. O teatro é importante para vocês, para nós.
Hoje falo na terceira pessoa do plural, pois, se bem sabemos que como grupo somos a soma das nossas particularidades, como indivíduos somos a comunhão da nossa mais profunda intimidade, mesmo sem ter a menor consciência disso. E que venha a segunda etapa do SESC Amazônia das Artes!

domingo, 10 de julho de 2016

Passeando na contramão – 10 anos de teatro


Amanhã, dia 11 de julho, a Pequena Companhia de Teatro celebra dez anos de história. Durante os dias que antecederam a data, ocupei meu desgovernado juízo na reflexão do quão descompassadas com a norma foram as nossas opções no decorrer desta década, fazendo-nos trafegar na contramão na maioria das nossas ações, projetos, pensamentos e realizações.
O leitor atento perceberá que o que aqui faço não é um juízo de valor, e que não mensuro virtudes ou defeitos, apenas aponto o nosso contrapasso com a atualidade, sendo por vezes crítico, ou pelo menos ácido, ao abordar alguns dos assuntos da nossa prática.
No que se refere à tecnologia teatral – quando sabemos que a palavra tecnologia alude a todo e qualquer saber técnico desenvolvido para o aprimoramento do teatro – a Pequena Companhia de Teatro sempre transitou na contramão da pirotecnia, dos equipamentos eletrônicos, das novidades estéticas, dos mecanismos modernos, e focou o desenvolvimento de uma  tecnologia que favorecesse soluções simples para problemas complexos, concebendo técnicas de praticidade, precisão, operacionalidade e efetividade; alertando para a percepção de que é possível desenvolver tecnologia teatral a partir do desperdício contemporâneo, sem necessariamente depender de recursos financeiros  significativos.
No exemplo que estamos vivendo agora, outra contravenção. Sustentado pela lógica do capital, as circulações de espetáculos devem sempre realizar suas ações no menor prazo de tempo, buscando a otimização de recursos, e tornando as passagens pelas cidades fugazes, tanto para quem visita quanto para quem recebe. Nossa prática, quando são projetos propostos pela Pequena Companhia, busca a permanência na cidade visitada pelo maior tempo possível e incluindo o maior número de atividades, para viabilizar um intercâmbio efetivo, nos possibilitando conhecer minimamente a cidade que nos recebe e sermos por ela reconhecidos.
Mesmo nas atividades formativas, quando hoje prepondera a maleabilidade de conteúdo, a horizontalidade, o improviso, a descontração, a ausência de rigidez, a tolerância de horários, nossas oficinas concentram esforços em estabelecer um padrão de conteúdo, uma organização programática, uma intolerância com atrasos e ausências, uma exigência em oferecer resultados, um rigor em avaliar se os resultados foram atingidos; uma chatice. Contramão.
Em tempos de tablets, laptop, celulares e afins – e agora falo de uma prática minha – os registros de processos de montagens, oficinas, observações de ensaios, análises de circulações e reflexões são manuscritas em catálogos, diários e cadernos, que vão se espalhando pela sede e pela casa, consumindo dezenas de canetas BIC pretas, para depois deixar-me contrafeito ao precisar transportar os manuscritos para o computador, palavra por palavra, quando uma necessidade de produção me exige o transporte.
Outra curiosa oposição de sentido percebe-se na terceirização: quando a lógica atual é a de aglutinar, através da contratação de terceiros, para fazer como que o trabalho seja o mais coletivo possível, nossa prática é a de concentrar o maior número de funções prováveis, e só são buscados fora da companhia aqueles serviços que não nos sentimos verdadeiramente capazes de realizar, não significando que aqueles a que nos propomos tenham a excelência pressuposta para a empreita.
E a sede? Enquanto qualquer humano normal pensa em ter uma piscina, nós queríamos ter um teatro. Próprio. Esse desejo talvez fosse mais meu e de Katia, do que de Jorge e Cláudio. Ou, talvez, nem de Katia, pois imagino que ela ainda sonhe em pegar sol à beira de uma piscina. Ainda assim, investiu-se todo e qualquer centavo acumulado durante toda uma vida para poder conquistar a independência de espaço, fundamental para o efetivo desenvolvimento artístico de um grupo teatral dedicado à pesquisa de linguagem.
E assim chegamos à própria linguagem. No momento em que tempo é dinheiro, e quanto maior o número de montagens por ano maior a possibilidade de multiplicar os ganhos, nossas encenações levam, em média, três anos, entre o início da pesquisa e a estreia do novo espetáculo, contramão digna de multa gravíssima e perda de sete pontos na carteira.
Tudo na contramão; não calculada, não programada, não pensada, mas, contramão enfim. O tortuoso caminho de estabelecer um fazer identitário, orgânico, honesto, por vezes reinventando a roda, por vezes sendo atropelado por ela.
Como supracitado, o que faço aqui é uma reflexão sobre a nossa jornada, nesse dia que antecede o do nosso aniversário, sem apontar erros ou acertos, pois, acredito que na arte não exista certo ou errado, existem caminhos; e se bem sabemos que o caminho de dez anos não nos torna gênios, ele serve, com certeza, para descobrirmos que nós possuímos a soma dos quatro piores gênios que possa existir em um grupo de teatro – adoro antanáclases.

domingo, 3 de julho de 2016

A política da preguiça



Em 2012, durante a nossa circulação pelo Palco Giratório, assistimos ao espetáculo Cabaré, do Teatro Faces, de Primavera do Leste/MT, e debatemos com eles a encenação – prática do projeto de circulação do SESC após as apresentações. Na ocasião, também encontrávamos o querido amigo Sandro Lucose, elo entre a longínqua apresentação e a nossa proposta de ocupar o município mato-grossense com todas as nossas atividades durante a semana que hoje se encerra.
O teatro tem dessas coisas: um espetáculo, uma conversa, um amigo em comum, um contato feito cinco anos atrás, reverberam nas trajetórias dos grupos e possibilitam encontros inesperados como o que estamos vivendo aqui, graças ao patrocínio da Petrobras, através do Programa Petrobras Distribuidora de Cultura.


Quando a Pequena Companhia de Teatro pensou o termo Teatralidades foi na perspectiva de extrapolar a ideia de circulação e tentar estabelecer um conceito de permanência, convivência, entrançamento e intercâmbio com a comunidade que nos hospeda, e o primeiro passo dessa ideia encontrou eco em 2015, quando da ocupação do Centro Cultural Banco do Nordeste, em Sousa.

Agora, com o auspício da Petrobras, a experiência se estende a outras três cidades brasileiras, quando nos instalamos durante uma semana no município e tentamos entender ao máximo sua gente, as agruras, desejos, conquistas e frustrações.
Claro que nossa observação está relacionada principalmente à forma como o teatro está capilarizado na comunidade, de que maneira está inserido no cotidiano da cidade, como se confrontam a obrigação do poder público de construir cidadania e a necessidade de responder ao mercado; tentar entender em qual pé está assentada a relação teatro & cidadão.
O que se vive aqui em Primavera é uma experiência incomum. Escola de teatro, grupos, centro cultural, secretário da área teatral com profundo conhecimento teórico e prático, alunos de teatro com bolsa de estudo, professores de teatro oriundos da escola contratados para lecionar, crianças brincando de teatro, artistas vivendo de teatro, teatro em árvore, teatro em caminhão cegonha, teatro de sombra, teatro na praça, teatro de graça; e o mais surpreendente, tudo isso em um município de pouco mais de cinquenta mil habitantes.
Claro que a primeira pergunta que emerge dessa pancada criativa é: como isso é possível? Um diagnóstico mais aprofundado exigiria muito mais do que uma semana, porém, a primeira resposta que encabeça todas as outras é: vontade política. Vontade política de abraçar boas ideias. Vontade política de identificar e apoiar projetos interessantes. Vontade política de criar condições para o desenvolvimento das artes. Vontade política de contratar seu secretariado por mérito. Vontade política de não se tornar um refém do voto. Vontade política de desenvolver uma gestão programada para todo o mandato, e não para o último ano. Vontade política de ser um servidor; ressalvando que, para servir, precisa-se de vontade – infausto paradoxo.
Em resumo, não há nada mais nocivo para a sociedade do que ver seus gestores alastrando sua melancólica falta de vontade e sua aguda preguiça intelectual.