domingo, 18 de dezembro de 2016

Dando número aos bois


O ano começa a acabar e 2016 leva consigo a marca dos dez anos de existência da Pequena Companhia de Teatro. Atravessamos uma década fazendo teatro e vivendo dele, em um mesmo grupo, com os mesmos integrantes, desenvolvendo pesquisa, montando espetáculos, circulando, ministrando oficinas, promovendo festivais, participando de debates, palestras, seminários, fóruns, sem fazer concessões de ordem estética, política, investigativa, financeira ou intelectual. Esse posicionamento nos custou sangue, suor e lágrimas, mas posso assegurar que nada pingou sem a devida dose de satisfação por saber que construíamos uma trajetória regular, honesta, progressiva e permanente.

Primeiro com César Boaes enredando Jorge Choairy no labirinto de “O Acompanhamento”; depois com o fraternal enlace de Lio Ribeiro e Cláudio Marconcine, em “Entre Laços”; em 2010, Jorge e Cláudio se unem num rito patriarcal, em Pai & Filho, para logo depois saírem da órbita com Velhos caem do céu como canivetes, em 2013. Quatro espetáculos em dez anos. Em dois interstícios a Pequena colabora com a Cia. A Máscara de Teatro para as montagens de “Medéia” e “Deus Danado”, em Mossoró, além de coproduzir duas edições do “Auto da Liberdade”. Pinçaria, também, as 4 edições da Semana Imperatrizense de Teatro, e a performance poético-teatral “Literatura Viva”, com mais de 200 intervenções, para as duas primeiras edições da Feira do Livro de São Luís, das quais a Pequena Companhia de Teatro foi responsável pela direção artística. Para dez anos, poderíamos dizer que se trata de uma produção econômica, mas construída na medida dos nossos anseios e das nossas condições.

Uma das principais virtudes foi que essas produções não se bastaram em São Luís. Desde a primeira circulação, com “O Acompanhamento” pelo interior do Maranhão, em 2006, até a derradeira, com “Velhos caem do céu como canivetes” pela Amazônia Legal, viajamos 67 cidades de 25 estados do país. Todos os espetáculos da Pequena Companhia de Teatro cumpriram pelo menos um projeto de circulação. Visitamos 26 cidades do Nordeste, 14 do Sul, 4 do Centro-oeste, 14 do Sudeste e 9 do Norte, ultrapassando as 250 apresentações. Participamos dos principais projetos de circulação nacional – Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, Palco Giratório/SESC, Viagem Teatral/SESI e SESC Amazônia das Artes –, além de ocupar(e)mos os Centros Culturais BNB de Sousa e Fortaleza, através da Seleção de Projetos Culturais BNB. Viajamos de carro, de barco, de van, de avião, de ônibus, de trem, de carroça – isso mesmo que você lê.

Os 4 Prêmios FUNARTE de Teatro Myriam Muniz ganhos pela Pequena Companhia de Teatro, em 2009, 2010, 2012 e 2013, foram nosso esqueleto de sustentação, e a tábua de salvação para inúmeros grupos teatrais do Brasil, que agora padecem com a falta de entusiasmo do MINC em sinalizar uma gestão séria. Tanto os atores Cláudio e Jorge, quanto os espetáculos, direções, produções, cenários e figurinos ganharam o Prêmio SATED/MA de Artes Cênicas - 10 ao todo. Participamos de 62 festivais ou mostras de teatro locais, regionais, nacionais, internacionais e intergalácticas.

Além disso estudamos, enrolamos, aprendemos e ensinamos. Ministramos 5 oficinas – de atuação, de iniciação, de dramaturgia, de leituras dramáticas e de cenografia –  para mais de 50 turmas, em 30 cidades de 18 estados deste brasilzão, e publicamos, lançamos e vendemos/distribuímos 1.000 exemplares de um livro, minha dramaturgia reunida. Parte dessas atividades promovidas pelo Programa BNB de Cultura, outro inestimável investimento cultural que a classe artística perdeu e não se apercebeu.

Adquirimos a sede, que foi nosso grito de independência criativa. Aqui montamos e estreamos o espetáculo “Velhos caem do céu como canivetes”, mantivemos nosso repertório em temporada regular, ofertamos diversas oficinas, debates, visitas guiadas e um seminário com Gilberto Freire de Santana, Dyl Pires e André Lisboa. Ainda abrimos as portas para produções externas, e recebemos os espetáculos “Para uma avenca partindo”, “A escrita do Deus”, “As 3 fiandeiras”, a performance “Ocupa Árvore”, a palestra “Ser indígena hoje em contexto urbano”, a roda de conversa com Gero Camilo, a Mostra SESC Guajajara de Artes, a Conexão Teatro, a Semana do Teatro no Maranhão, o Festival Ponto de Vista/UFMA, A Feira do Livro de São Luís, o lançamento da revista Palavra, os intercâmbios com o Coletivo Alfenim, a Cia. A Máscara, os Clowns de Shakespeare, o Patuanú, o Tibanaré, a Cia. Pão Doce, A Outra Cia. de Teatro (na verdade, esta nos deve a visita, nós é que fomos lá), a oficina literária de Marcelino Freire, e tudo aquilo que por aqui passou e você não viu.

Também aqui, neste blog, a história da Pequena Companhia de Teatro foi sendo construída; foram 525 publicações, 1283 comentários de assíduos ausentes leitores, e milhares de visualizações, em mais de 6 anos de ininterrupta reflexão sobre o teatro e seu entorno, o mundo. Você, confidente leitor, atenta leitora, foram testemunhas das dores e dos sabores dessa jornada hercúlea, a de se fazer teatro no Maranhão e fazê-lo reverberar além das suas fronteiras.   

Para mim, sem sombra de dúvida, foram os melhores dez anos da minha vida. Katia, Jorge e Cláudio, obrigado. No agradecimento aos três sintetizo minha gratidão a todos os atores que ajudaram a consolidar a nossa caminhada, apoiando, assistindo, comemorando, participando, criticando, patrocinando, aplaudindo, conversando, ignorando, refletindo, jantando, ensinando, torcendo, brigando, convivendo, saboreando. Obrigado!

domingo, 4 de dezembro de 2016

Ler sem entender – uma curiosa equação


João Ubaldo Ribeiro, na propaganda de uma entrevista dada a Fernanda Torres que ainda não vi, falava sobre ler sem entender. É o que tenho feito durante mais de quarenta anos: ler sem entender. Vou lendo, deixando que as palavras façam seu genioso trânsito pelo cérebro, esperando que essa experiência repercuta de alguma maneira em tudo o que meu ser procura, sonha, contesta, provoca, pratica. Mas entender, entender mesmo, nunca entendi. Creio que cerca de oitenta por cento de tudo o que li na vida me deixou com aquela incessante sensação do incompreendido; aquela eterna pergunta que por vezes me deixa contrafeito: será que é isso? Agora mesmo, enquanto leio algum clássico que me devo, fico me perguntando: o que está assentado nessas páginas que jamais chegarei a entender?

Enquanto essa sensação perdura, vou me deliciando com o hábito de confrontar as páginas, vou deslizando os olhos sobre as frases e seus mistérios, deixando a leitura fluir como queira, sem constrangimento. Quantas vezes atravessei laudas inteiras esperando que os miolos concluíssem o raciocínio provocado pela escritura,e padeci, em silêncio profundo, com os olhos cravados no ponto final, perante a certeza de não ter entendido nada? De Nietzsche a Derrida, de Borges a Vallejo, de Suassuna a Saussure, de Raymond Williams a William Shakespeare, de Macedonio Fernandez a Roland Barthes, centenas de páginas livres; uma chuva de papel em forma de sentido desafiando minha paciência, e eu, com a persistência que me é peculiar, lendo, sem pressão, sem pretensão, aguardando o destino que o pensamento dará para a sentença; esperando encontrar na cabeça um lugarzinho útil para aquele capítulo inteiro que me pareceu inútil.

Minha irmã lê e entende. Entende com uma precisão assustadora. Uma leitura profunda, que permite a reprodução milimétrica de todo o sentido, por mais complexo que seja. Quando me explica algo que acabou de ler, fico olhado para ela como um jumento olhando para um castelo. Na maioria das vezes não consigo acompanhar plenamente o raciocínio, mas separo um tempinho no meu juízo para ficar apenas contemplando a cena, seus gestos e compassos, admirado com a clareza que ela consegue ter do que acabou de ler, enquanto extraio da explicação algo do que ali estava escrito. Sempre invejei essa inteligência, e encontrei na boa e descompromissada prática de ler sem entender a forma de acompanhar tudo aquilo que eu imaginava existir em cada uma das obras que se me apresentaram no decorrer da vida.

O leitor deve pensar que faço galhofa, mas sou franco. Falando profissionalmente, o que existe em mim de Grotowski, Artaud, Barba, Stanislavisk, Kantor, Chekhov, Brecht, Brook, é o manifesto estado do ler sem entender. Em mim, esses autores são uma massa fértil e confusa de ideias, estudos, postulações, indagações, métodos, tratados e teses impregnadas, assimiladas de maneira particular, pessoal e peculiar, através da passagem das páginas desses livros pelos olhos de alguém que lê, deseja entender, e continua lendo à espera de que o fenômeno aconteça, sem se assombrar com o fracasso. Assim construí meu pensamento por falta de mediação, como outrora comentei aqui.

Hoje, já cambaleando no tempo reservado ao homem para fazer o resumo da sua história, não tenho mais pretensões. Imagino que chegarei ao fim como um ser que leu mais do que devia, menos do que queria, entendeu um pouco do que lia, e se divertiu com o hábito de ler, mesmo sem entender. Por isso continuo. Lendo sem parar para pensar se entendo. Mesmo agora, quando me espera o presente da querida Flávia Teixeira, tentando provocar meu juízo com a Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han. Tomara que eu entenda.

domingo, 20 de novembro de 2016

Da arte de não dizer nada sobre coisa alguma


O blog tem sido a conexão do meu pensamento com o exterior, a minha relação com o mundo outro que o meu mundo mesmo de sempre. Este instrumento conecta os conhecidos íntimos e os poucos amigos com alguma opinião minha mais organizada, um pensamento meu mais extravagante, uma reflexão um pouco mais desenvolvida, e me brinda com a saborosa interlocução dos mais atenciosos e delicados, com seus comentários escassos e provocativos. Pessoalmente, apenas dois ou três amigos íntimos me visitam para trocar uma ideia nesta masmorra construída por Katia para me isolar do mundo, e que atende pela alcunha de Residência Lopes Flecha para momentos privados, e de Pequena Companhia de Teatro para temas de ofício. Sorte a minha, porque nem de gente eu gosto.

Por outro lado, tenho recebido convites que reforçaram o que exercito no blog, quando convidado para uma sorte de encontros, aulas, palestras, mesas redondas e retangulares. Essa prática tem me provocado imensamente, e servido para me relacionar de maneira mais presencial com o pensamento teatral e seus provocadores, que em grande parte, são queridos e generosos amigos. As mais recentes jornadas de pensamento foram no FestLuso – Festival de Teatro Lusófono, em Teresina/PI, e no Festival O Mundo Inteiro é um Palco, em Natal/RN. Não pude ir para o Festival de Teatro Velha Joana, em Primavera do Leste/MT, mas pagarei a dívida na próxima edição. Todos esses encontros acabam se tornando espaços para reverberar as reflexões que já faço aqui.

Estou enrolando para ver se você percebe que estou há dois domingos sem postar, pois, preciso dessa constatação para fundamentar a pergunta que perpassará o desenvolvimento desta postagem. A sensação de alívio de passar quinze dias sem escrever não abranda minha culpa, sem saber direito com quem firmei este compromisso. Como todo e qualquer fato insignificante gera aqui uma inútil reflexão, foi inevitável que o silêncio das teclas durante duas semanas me provocasse a pergunta que se reitera com certa frequência durante os últimos seis anos em que decidi compartilhar minhas opiniões, seja virtual ou pessoalmente: qual o motivo disso? E as outras: o que valora um pensamento ao ponto de torná-lo útil ao público? O que sobrevive de uma reflexão, a não ser a vaidade do autor de sentir-se tão importante ao ponto de achar que sua ideia merece alçar horizontes além do seu banheiro? Por que a autoafirmação contemporânea passa por expormos nossa opinião publicamente sobre qualquer assunto, polêmica, notícia, sem nem saber ao certo quem é o nosso interlocutor? Por que tememos tanto a nossa insignificância, e evitamos nos confrontar com o fato de que nossa opinião não tem a menor relevância perante a magnitude da crueldade dos assuntos que assolam e carcomem nossa sociedade?

Não sei. Os fóruns específicos, como os encontros e mesas que citei acima, ainda me parecem menos estéreis, e consigo voltar de cada um deles com a sensação de ter contribuído para coisa alguma, de estar em contato com a opinião de muitos que respeito, mas, sobretudo, das gargalhadas entre os pares, das ironias ao constatar nossa pretensão de achar que estamos mudando algo. Já as reflexões virtuais, essas onde somos seduzidos a falar de tudo e todos, ainda me despertam do sono – nada me tira o sono; por isso me esforço há anos para utilizar o teatro como epicentro provocador do meu pensamento e das consequentes reflexões.

Tenho percebido – é apenas uma suspeita – que no meu caso se estabelece uma necessidade de dizer, e está diretamente relacionada com o fazer teatral da Pequena Companhia de Teatro. Meu caminho de expressão desse dizer sempre foi o teatro. Como nós montamos, em média, um espetáculo a cada três anos e meio, a lacuna deixada pelo tempo de silêncio atentou meu juízo, levando-o a assentar minhas ponderações em outros veículos, e o blog, os encontros e as escassas visitas canalizaram essas elucubrações. Como a ideia agora é tentar reduzir esse tempo, fazer um esforço para montar um espetáculo a cada ano e meio ou dois anos, pela urgência de dizeres que o momento atual exige, eu me pergunto: essas reflexões devem minguar? Deveriam? Se o artista se expressa a partir da sua obra, é necessária a exposição do seu pensamento através de outros meios? Ou seria o momento de repensar a frase do prólogo de Oscar Wilde para o Retrato de Dorian Gray, quando diz que “revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte”? Não sei. Hoje o dia foi de perguntas. Espero não estar falando com as paredes, pois, nesse caso, bastaria entrar no banheiro.

domingo, 30 de outubro de 2016

Da epicização do teatro


Há alguns anos venho percebendo uma acentuada epicização do teatro brasileiro atual. Se eu tomasse como exemplo minha recente trajetória como espectador, diria, sem receio, que oitenta por cento do teatro que assisti nos últimos anos constrói sua narrativa substituindo a ação como fundamento de constituição do dizer, consolidando sua dramaturgia através da contação, da narração, da utilização do discurso indireto, da presença do narrador, elementos basilares da escrita épica, mesmo que a intenção esteja distante de qualquer relação com o teatro épico, que tem como referência o dramaturgo Bertold Brecht. Isso porque o que proponho discutir é sobre o ponto de vista de uma epicização ocorrente a partir dos gêneros literários e não teatrais. A tese que levanto não procura fazer juízo de valor, apenas busca problematizar a pronunciada desproporção entre as características épicas/narrativas e as dramáticas na construção teatral contemporânea, sua gênese e possíveis consequências.

Inicialmente valeria apontar algumas características de ambas estruturas, e tentar, a partir da forma, problematizar seu conteúdo. Ao tomar a palavra drama no sentido de ação, podemos dizer, rasteiramente, que uma peça teatral dramática consolida sua escrita cênica através da ação das personagens. É a ação entre as personagens que conta a história, basicamente, através do discurso direto. O bom e velho Aristóteles, no livro III da sua Poética, diz: (...) “seja deixando as personagens imitadas tudo fazer, agindo”. E ainda: (...) “pois ambos [Sófocles e Aristófanes] representam pessoas fazendo, agindo. Essa, segundo alguns, a razão do nome drama, o representá-las em ação”. Por outro lado, a epicização que aqui problematizo, apresenta a figura de algum tipo de narrador contando a história, com personagens formais menos robustas, atores intercalando funções narrativas e dramáticas, e grande parte da dramaturgia construída em discurso indireto.

Feito esta contextualização para a querida leitora e o caro leitor pouco afeito a chatices tecnicistas de quem faz teatro ou literatura, e mais acostumado ao provocativo exercício de ser espectador ou leitor – e você pensava que o blog só tinha leitores artistas –, desenvolvo o problema, e apresento minha tese. Para mim, o problema está no desequilíbrio – mesmo problema percebido na postagem anterior, apesar de tratar de outro tema. Não vejo maiores consequência em qualquer uma das formas estruturantes de uma peça teatral, apenas me preocupa o desequilibro numérico entre as partes, suspeitando que uma desproporção de magnitude proeminente como a que suponho, seja, de alguma maneira, comprometedora da lucidez que o conjunto de produção teatral de uma época deve ter para confrontar sua realidade e ser instrumento de balizamento desta.

Diferentemente da maioria das minhas postagens, que busca a reflexão através da negação de uma escritura conclusiva, apresentando perguntas e especulando com as imaginárias respostas do leitor, hoje apresento minhas suspeitas quando à origem da desproporção entre uma cênica mais dramática e outra mais epicizada.

Com frequência ressalto que o ser humano ocidental é forjado pela sociedade como um narrador. Desde a infância somos provocados a contar histórias, seja na redação de como foi o nosso fim de semana, seja na mesa de jantar, contando como foi o nosso dia. Raramente, para não sentenciar um nunca, na nossa formação escolar, somo provocados a construir personagens e a contar histórias através da ação dessas personagens. As personagens aparecem, contudo, contadas por nós, narradores das nossas redações, contos, histórias, fantasias, conversas. O paciente leitor estará se perguntando onde quero chegar, o impaciente, calculando o momento de abandonar o texto, e eu apresentando, no próximo parágrafo, a segunda informação fundamental para embasar minha teoria.

Outra particularidade recorrente da recente estruturação do teatro brasileiro contemporâneo se dá na mudança na construção do texto teatral. Se tradicionalmente o texto era escrito por um dramaturgo de gabinete, atualmente grande parte da multiforme e polissêmica dramaturgia contemporânea substituiu o dramaturgo por construções coletivas, colaborativas, presenciais, onde a principal fonte de produção do dizer é o ator, um ator criador, pesquisador, um ator robusto de formação e entendimento, mas, na maioria das vezes, sem um conhecimento técnico formal de dramaturgia. No entanto, o ator, como cidadão, recebeu a mesma preparação sócio-escolar que todos nós, e não está imune à epicização que defendi no parágrafo acima.

Naturalmente – e concluindo, prometo! – a influência que o ator recebe na formação social interfere, acidentalmente, nas postulações, improvisações, incursões e escrituras no momento de produzir dramaturgia. Com isso, organicamente, a produção teatral receberia uma influência de cunho mais narrativo/épico que dramático, e passaria a preponderar essa forma em detrimento marcante da outra. Penso que esse seria apenas um dos fatores do sintoma que apresento e que convido a discutir, pois acredito que outros são igualmente responsáveis pelo desequilíbrio aqui problematizado, entretanto, a extensão já obscena desta postagem me impede de aprofundar.

É uma tese. Absurda, botequinesca, mas tese, enfim. Como advertido em toda a postagem, a experiência de qualquer forma teatral jamais será problema, ao contrário, oxigena, desestabiliza, provoca, sustenta o teatro que fazemos. Contudo, se confirmado o saliente desequilibro que aqui apresento como suspeita, creio que uma reflexão profunda e aguda seria pertinente para não sermos conhecidos pela história como a turma que epicizou o teatro, ou aqueles que destruíram o drama – do verbo grego “draomai”, que significa agir, levado por uma causa visando uma consequência, segundo um bom e velho professor de latim, nas minhas eternas e fugazes experiências acadêmicas. Aguardo sua antítese pós-dramática.

domingo, 23 de outubro de 2016

Quando a internet consumiu o cérebro


Convenhamos, conteúdo? No que se refere a conhecimento, a rede mundial de computadores cumpre a função que as bibliotecas cumpriam antes do advento da internet: estavam lá, mas ninguém se destacava até elas para ler um livro. A facilidade de acesso a qualquer tipo de conhecimento não redunda na sua assimilação, muito pelo contrário, a garantia da acessibilidade muitas vezes amortiza o navegante, pelo simples fato de saber que o conteúdo estará lá, a qualquer hora, submisso e disponível como o livro na estante que nunca nos dignamos a abrir.

O universo que se mostra perante o internauta é tão emblemático quanto as primeiras cinquenta páginas do livro “Grande Sertão: Veredas”; se você não conseguir superá-las, não conhecerá a verdade. Da mesma forma, a maioria dos navegadores não ultrapassa o óbvio, e acaba num círculo vicioso de redes sociais, portais de notícias, jogos, músicas e vídeos engraçados. É um enredamento de frivolidades que subjuga nosso discernimento, nossa atenção, nossa objetividade, nossa intenção.

Com uma frequência assustadora, a opção online nos encaminha para a mais improvável polêmica da semana – tanto discussões pertinentes, de cunho sócio-político-cultural, quanto fastidiosas, como da santificação à satanização, em menos de vinte e quatro horas, do hipster da Polícia Federal –, antepondo-se ao acesso daquela informação importante e necessária que buscávamos no momento em que entramos na internet.

Me causa espanto nossa falta de inteligência ao explorar um dos instrumentos mais democráticos que o ser humano criou, e o quanto essa falta de inteligência transforma a vida virtual em uma espécie de zona morta, morada de zumbis, exercício de catatonia. Das horas que ocupamos nos desocupando na internet, não recebemos sequer minutos de uma boa pesquisa, de uma urgente significação, de uma prometida análise, daquela fonte de conhecimento que sempre desejamos aceder, mas que requer uma sequência de cliques tão intrincada que forja a justificativa necessária para cairmos na rede social mais acorde com o nosso humor.

Se você, cara leitora, desconfiado leitor, suspeita do meu argumento, façamos o cálculo. Calculemos o tempo demandado pelo combo citado acima (redes, portais, vídeos, jogos) e o tempo que dedicamos à maior fonte de conhecimento de que se tem notícia desde a Biblioteca de Alexandria. A conta será traumática, e correremos para a rede social mais polêmica para vomitar nosso descontentamento com a constatação.

Se o assunto é teatro, das experiências cênicas de Tadeusz Kantor à obra completa de Shakespeare, tudo está ali, pedindo uma atenção desesperada, porém, o dedo é rapidamente conduzido para o humorístico da moda. História do teatro, clássicos, teses, projetos cenográficos, cartografias, tudo ali. A um clique está o acesso aos espetáculos dos amigos, dos distantes, dos malditos, mesmo entendendo que a experiência teatral não é transponível. Contudo, através da pesquisa, podemos contextualizar, investigar, perceber, reconhecer, aprofundar. Estudar. Sim, por mais óbvio que pareça, é bom ressaltar que a internet pode ser uma inesgotável fonte de estudo.

O que tento nesta postagem, me divertindo com a pretensão, é entender qual foi a falha na criação deste instrumento chamado internet. Que tipo de fantasma binário entravou a lógica da rede, fazendo com que o usuário tenha dificuldade de penetrar além da primeira camada. Algo aconteceu. De alguma maneira a eletrônica substituiu a mecânica, e a nossa lógica física de procurar o que queremos foi substituída pela absorção da primeira coisa que aparecer; sendo que, na maioria dos casos, essa coisa está relacionada com os recursos financeiros que o interessado tenha para garantir a visibilidade da coisa em questão. É muita coisa.

Essa lógica nos tornou tolos, manipuláveis, consumistas, redundantes; filósofos de botequim. Descompassamos os ritos sociais, onde qualquer reunião se tornou um encontro entre telas, ou, diretamente, trocamos realidade por virtualidade; mas, principalmente, confundimos conhecimento com informação, e passamos a absorver tudo aquilo que se apresenta à nossa frente, curvando nossa fronte, sem chegar ao conhecimento que fingimos procurar. Quando uma leitura exige um pouco mais de paciência, atenção, complexidade, análise, chamamos de “textão”. Quando o link se abre, corremos o cursor para verificar a extensão da possível caixa de Pandora, que, por valoração do nosso precioso tempo, preferimos não abrir – como fez o leitor que não chegou a este ponto da postagem, e se livrou desta inútil reflexão que não abre caixa alguma.

Talvez esteja no equilíbrio a medida para evitar todos os tombos contemporâneos. Conseguir equilibrar-se entre tempo real e tempo virtual. Equilibrar-se entre informação e diversão, conhecimento e nugacidade. Entender que uma pesquisa vai muito além do Google, que rede social não é fonte, que pode haver ordem no caos das nuvens. Equilibrar é o verbo. Equilibrar-se é o que evita o tombo. Como rede, a teia deixada pela internet exige equilíbro. Como malabaristas do todo, precisamos estudar cada passo, equacionar cada movimento, sob pena de perdermos um tempo precioso que jamais poderemos recuperar. Claro que, apesar de falar na primeira pessoa do plural, sei que estou falando apenas de mim. Sorte a sua.

sábado, 8 de outubro de 2016

Sonhando com a realidade sem sonho


Sonhei que o ser humano sofria uma grave mutação na garganta. Sutil e gradualmente, perdia a capacidade de gritar e desenvolvia a capacidade de engolir. Como o grito caíra em desuso antes do fenômeno que o sonho anunciava, pouco se percebia a gravidade da mutação, e a sociedade caminhava aliviada, em silêncio e engolindo tudo.
Bizarro. Engolia-se tudo, sem gritar. A garganta se tornara um bueiro, uma fossa, alargada pela quantidade de matéria e miséria que por ela passava, e a deglutição aumentava, impossibilitando a saída do grito que tentava trafegar em sentido contrário, sem sucesso. Tudo era engolir, tragar, ingerir. A falta de grito gerava uma falsa ideia de tranquilidade, de controle do caos, de encaixotamento sistêmico, de domação da anarquia, de ressignificação da utopia.
Engolia-se professor de teatro, filosofia, educação física e sociologia em uma mesma tragada. Mesmo que esses quisessem gritar não adiantava, porque o sistema já os tinha engolido, e agora faziam parte do grande bolo alimentar que levava o nome de reforma. A privatização era engolida com o tempero da concessão, e por essa garganta passavam parques, autódromos, petroleiras. Engolia-se PEC, CLT, USA, em uma grande sopa de letrinhas.
A garganta tornava-se tão profunda que chegava a ser obscena. No sonho, engolia-se homofobia, racismo, tortura, pedofilia, machismo. Onde antes sopravam gritos anticorrupção agora engolia-se pactuação. Também, por essa mesma garganta, passavam os goles de whisky, enquanto as varandas gourmet cozinhavam direitos sociais, trabalhistas e culturais para degustação; o grito da delação dava lugar ao gole de negociação; o grito de fúria virava fuagrá; engolia-se voto, vitória, maioria; engoliam-se as minorias.
O novo sistema digestivo era tão perfeito que ministérios engoliam ministérios, secretarias engoliam secretarias, turismo engolia cultura, restituição de posse engolia ocupação. Em alguns casos, a secretariofagia acontecia sem se ouvir um grito, porque os cargos, contracheques e contratos engoliam a ética, a decência, a transparência, a moral.
Nem mesmo o teatro, que figurava como instrumento de confronto, sustentava o grito. Era tragado pelo mercado, pelo sucesso, pelo público a qualquer preço, pela necessidade de dialogar com o capital, com o vil metal, com o material. O teatro deixava de ser o contraponto, o contrassenso, o contrabando; o teatro virava a cereja do bolo pronta para se degustar.
A autofagia foi tamanha que a garganta engoliu o próprio grito, e ninguém mais protestou. Ao acordar, sobressaltado, me perguntei: qual é o mundo que quero para os meus não-filhos? Intrigado com a falta de nexo entre a pergunta que me afligia e o sonho antropofágico que me acordava, respirei fundo, dei um grito mudo, e voltei a dormir, em silêncio.

domingo, 25 de setembro de 2016

Sobre uma nova montagem – confissão inaugural


O processo de montagem de um novo espetáculo é sempre o momento mais agudo da minha vida. Sempre que o momento urge, inicia-se em mim uma espécie de desconstrução criativa, pasmo abissal, escândalo informativo, colapso temporal, caos dramático. Tudo o que penso, imagino, estudo, pesquiso, desenvolvo, projeto, cobre-se de uma acentuada insignificância, irrelevância; a mais absoluta comprovação da verdadeira inutilidade da arte, do teatro, do artista. Tudo apodrece, tudo é falência, tudo é angústia, tudo é miséria, tudo é desencanto, tudo é descontentamento. Só me reconheço inútil, medíocre, embusteiro.

Então, para que isso tudo? O que me motiva? O que me provoca? O que me faz ser o encenador da próxima montagem da Pequena Companhia de Teatro? A utopia. Eu acredito piamente que, depois de pronto, o futuro espetáculo da Pequena será capaz de transformar o mundo. Sim. Transformar o mundo: acabar com a fome, resolver o problema dos refugiados, reduzir os índices de analfabetismo, suspender o aquecimento global, derrubar o governo Temer. A insistente leitora, o resistente leitor, devem espantar-se com o tamanho da minha pretensão nesta última sentença, mas é isso que eu pretendo quando se inicia uma nova jornada teatral. No momento da criação de um novo espetáculo, a exigência que me faço é que a montagem tenha a potência necessária para mudar o mundo. Claro que a realidade chegará, e a estreia confirmará outro dos tantos fracassos que colecionei durante toda minha vida. Mas, agora, com toda a dor da insegurança, acredito nisso.

Não sei bem como meus companheiros de grupo lidam com o início de um processo. Nunca sentamos, Katia, Jorge, Cláudio e eu, para falar das nossas aflições no momento de iniciar uma nova montagem. Como também é ofício, sempre nos concentramos no desenvolvimento do espetáculo, com seus ensaios, discussões, pesquisas, recursos; mas raramente externamos angústias íntimas, dúvidas existenciais, agonias criativas. Fazemos isso paralelamente, amigos que somos, um com outro, outros sem um, dois entre dois, e as configurações que o número quatro permite. Tampouco sei como outras pessoas lidam com isso. Raramente ouço de um amigo em processo de montagem quais são os seus fantasmas; divagamos sobre técnica, caminhos, leituras, treinamento, temática, mas raramente o âmago, a víscera, a chaga, a dor.

Dói. Dói em mim tudo o que há para dizer, tudo o que há para fazer, tudo ao mesmo tempo agora, e nunca, e sempre, e de repente. Sustento, apunhalada às minhas costas, a bandeira da transformação, e para alcançar o feito tento me transformar em um delirante, em um demente, em um infame; buscar o dito na palavra muda, conseguir o grito que acorde o mundo, desferir o golpe que vença a injustiça; e me deparo com a falha, a falência, a derrota, o problema, o dilema.

Utopia. Começar um novo espetáculo é reafirmar o poder da utopia, é relembrar a importância da luta inútil, é iniciar a luta da batalha perdida. É o único e singelo momento em que se vive a epifania de compreender a subversiva inutilidade da arte. Por isso minha dor, meu descalabro, meu desatino, meu desalento. Claro que o leitor insensível perguntará, com o escarnio que lhe é peculiar quando encontra o momento de achincalhar este dedicado escritor, – e o teatro é isso tudo? – É necessário esse drama todo? – É preciso essa choradeira infinda? – Se é tão ruim, não para por quê?

Respondo que só sei fazer assim. Foi assim que a vida me levou para este caminho. Foi assim que as mazelas do mundo me fizeram desembarcar no teatro. Nunca decidi fazer teatro, eu me percebi fazendo teatro. O teatro foi se transformando no meu grito. O teatro foi se transformando no meu solo. O teatro foi quem me deu colo. Por isso tem que ser assim. Por isso não pode ser diferente. Por isso não posso parar. Por isso não posso abandonar a utopia. Porque sem acreditar que podemos mudar o mundo minha vida não faria o menor sentido, e de inútil basta a arte.


domingo, 18 de setembro de 2016

A vitória da vaidade


O que está acontecendo com a sensatez humana? A pergunta, que será a provocadora da série de postagens que começo hoje, surge da espantosa capacidade de me surpreender que a sociedade contemporânea vem desenvolvendo, e que me transforma, cada vez mais, neste vetusto e incorrigível homem das cavernas.

Hoje ajusto o foco na vaidade, no autorretrato, na autopromoção, no autoelogio, na visibilidade a qualquer preço. Como chegamos a isso? Se fizermos um pouco de memória, não muito tempo atrás, tudo o que englobava esse tipo de comportamento era defeito grave digno de rejeição social e, em alguns casos, motivo de chacota, galhofa, pilhéria, caçoada, zombaria, troça, que atualmente recebe o nome de bullying – como se palavras como assédio, intimidação, tirania, opressão, ameaça não existissem no nosso vernáculo.

Quando foi que isso mudou? Em que momento a vaidade deixou de ser um defeito, um famigerado pecado capital, e se transmutou em qualidade? Que curiosa transformação colocou a humanidade nessa disputa despudorada e explícita para ver quem é o mais vaidoso? Como não preciso mais de provas, transformarei as minhas suspeitas em convicções, e tentarei lançar um olhar sobre a desumanização da humildade e o (in)consequente envaidecimento da vaidade.

Suspeito que a transformação ocorreu quando a lente da máquina fotográfica, que era a tradutora do nosso olhar perante o mundo – um olhar particular, único, que mostrava, através do meu enquadramento, das minhas opções de cores, das minhas escolhas, como eu enxergava o universo à minha volta –, foi rotando, sutilmente, em direção ao nosso próprio rosto, à nossa cara, à nossa maquiagem carregada, à nossa barba bem-feita, à nossa sobrancelha desenhada, ao nosso lifting, ao nosso Botox, à nossa necessidade de escancarar nossa belíssima perfeição estética, promovendo a cultura do autorretrato, do auto-almoço, da auto-paisagem, do auto-eu-mesmo-de-tudo-o-que-seja-de-mim, que hoje atende pela alcunha de selfie. Vaidade. Ao virarmos a câmara para nós, deixamos de entender a importância do nosso olhar particular perante o mundo, e transformamos o mundo na vitrine onde exponho o meu eu para uma infindável cachoeira de curtidas catatônicas.

 
Com a mesma sutileza, a humildade passou a ser defeito, uma característica a ser ocultada, mascarada, sob o risco de apresentar-se como uma pessoa com baixa autoestima. A humildade passou a ser conhecida como falsa modéstia, como se a modéstia fosse uma qualidade impossível de existir na atualidade. A humildade chegou ao ponto de ser a própria vaidade, se o humilde não se descuidar ao defender seu comportamento. Ouçam o meu brado retumbante: humildade não é defeito! A humildade precisa ser preservada, exercitada, ou viveremos a amargura de trocar uma mesa com velhos amigos por velhos em uma mesa com retratos antigos.
 

No início deste século dediquei um ano inteiro a um dos meus inúmeros fracassos poéticos, um livro que se chamava “O Calvário da Vaidade”, onde eu decidia enfrentar um dos meus mais temidos fantasmas, tentando dissecar esse pesado capital, na inútil tentativa de me tornar um homem melhor. Claro que fracassei, poeticamente, humanamente. Contudo, a experiência me acurralou, e ao terminar minha hercúlea jornada me deparei com um dilema matricial: a publicação do conteúdo do livro não seria um exercício de vaidade? Se tudo o que eu queria com a experiência era exercitar a humildade, o pavoneio da exposição comprometeria minha empreitada. Fracassei no exercício. A humanidade jamais viu os escritos, não por minha decisão de não publicar o livro, e sim pela mediocridade do seu conteúdo. Insisti, inscrevi, enviei, implorei, mas nunca consegui publicar. Todavia, inescrupulosamente, tentei. A tosca anedota demostra que, apesar do meu esforço em extirpá-la, a vaidade me venceu. Aviso aos navegantes que se regozijam ao saber do meu fracasso: não está morto quem peleja, e continuo meu exercício cotidiano.
 
Se eu procurei, sem sucesso, expurgar a vaidade através da literatura, a literatura tornou-se uma das grandes responsáveis pelas consequências que bradejo hoje, através de um gênero textual chamando de autoajuda. Os livros deste gênero são insufladores de autoestima, vaidade, autoafirmação, egolatria. Para estes, um ser humano humilde é um ser menor, com autoestima baixa, precisando de ajuda, mergulhado no abismo da sua insignificância. Para que ler o Dom Quixote, e se angustiar com a mediocridade do Cavaleiro da Triste Figura e sua derrocada perante a vida, se posso enriquecer meu repertório de ostentação qualitativa com a leitura de livros que vão direto ao ponto: seja um vencedor?
 
É isso o que este momento histórico pretende: camuflar nossa insignificância. Esconder o grande paradoxo da existência, nascer para morrer. Com essa investida, o sistema ameniza as angustias do humano ser, enquanto se alimenta com o consumo de processadores de selfies, cosmeticomilagres, app’aradores de falhas, gerando o consumismo predatório que hoje nos assola (tema de uma próxima postagem). Não lembro se Narciso se afogou, mergulhando atrás da sua imagem, se definhou contemplando sua beleza, ou se abriu um perfil em uma rede social. Só sei que sua experiência pouco tem contribuído para que as máquinas fotográficas recuperem seu objetivo original.  
 
 


domingo, 4 de setembro de 2016

Sobre festivais, festas, FestLuso e festejos

De 22 a 28 de agosto passado acompanhei a totalidade do FestLuso – Festival de Teatro Lusófono, em Teresina/PI, e participei da 5ª edição do NORTEA – Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste como expositor na mesa redonda “Teatro brasileiro de expressão nordestina: realidades, desafios e perspectivas”, além de dialogar através de demonstrações técnicas, encontro de diretores lusófonos, colóquios, conferências etc. Foi uma semana intensa, provocativa, afetiva.

A querida leitora, o caro leitor, sabem que toda experiência artística me provoca reflexões. No caso, lanço o olhar sobre os festivais, seus objetivos, desafios e padeceres, a partir de um exemplo singular, um encontro que se propõe a reunir todos os países de língua lusófona através do teatro – no caso da edição 2016, Brasil (Piauí, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro), Portugal, Cabo Verde, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

A primeira angústia emerge do enlace da realidade do FestLuso com a grande maioria dos festivais de teatro brasileiros: a falta de apoio continuado, tornando a edição seguinte uma mescla de sonho, desafio e abnegação. Com raríssimas exceções, todo festival brasileiro que se finda vive o dilema de não fazer ideia de como promoverá o vindouro, fator de comprometimento agudo no que tange à qualidade da programação, ao recorte curatorial, aos provocadores convidados, e a todo o entretecido que forma um festival de qualidade. É fácil colocar o olhar crítico durante, quando não se conhece o período de pré-produção dispensado possível, tendo em vista que algumas experiências chegam ao lançamento com promessas políticas e conta vazia.

Outro apontamento é quanto ao principal equipamento teatral da cidade, o Teatro 4 de Setembro, palco central da mostra lusófona e que, por coincidência, nos recebeu na semana anterior para a apresentação de Velhos caem do céu como canivetes, pelo SESC Amazônia das Artes. É urgente remediar o problema acústico provocado pela instalação de um número inimaginável de spliters em substituição à central de ar-condicionado anterior. Se a casa já não era de uma acústica impecável – apresentamos “Ramanda e Rudá”, em 1999 – agora transformou-se em um sumidouro de vozes, e nada que seja dito no palco consegue se ouvir se você estiver a partir da quinta fileira da plateia.

Observados esses dois problemas que perpassaram toda a mostra, ressalvo alguns pontos que valem a reflexão crítica, e me provocam como convidado e permanente colaborador deste querido festival. Quanto à necessidade de haver um recorte curatorial específico – neste ano versou sobre a negritude e suas ramificações – o comentário atento de Jorge Choairy ao ouvir meus relatos deu o tom da provocação: o ser lusófono já não é um recorte significativo como para somar recortes específicos? É uma questão que penso que valha ser analisada, sob pena de inviabilizar uma produção potente.

Certamente, a diferença mais significativa em relação às edições anteriores que acompanhei, foi a realização do NORTEA, deslocada sua 5ª edição do FILTE Bahia – Festival Latino-americano de Teatro da Bahia para o FestLuso. Se nos anos anteriores era reservada uma manhã para o encontro de diretores lusófonos, este ano todo o período matutino do festival dedicou importante espaço para a problematização do teatro, seu fazer e dizeres. Um diálogo intenso foi travado durante toda a jornada, oxigenando a mostra e ampliando seu alcance reflexivo. Penso que uma maior presença deveria ser cobrada dos grupos participantes em todas as atividades formativas e reflexivas, como contrapartida ao esforço da organização em viabilizar o intercâmbio. Essa participação auxiliaria no mapeamento dos grupos, suas estruturas e formas de manutenção artística.

Quanto à mostra propriamente dita, o recorte lusofônico promove um desnivelamento qualitativo significativo, fazendo o espectador transitar por estéticas e linguagens atípicas, ora seja por contingenciamento econômico evidente, ora pela peculiaridade da construção desenvolvida naquele país. No geral, percebe-se que há um esforço conjunto, por parte da produção e dos grupos convidados, para conseguir manter de pé uma proposta tão autêntica e tão na contramão do mercado cultural; e estendê-la para todo o estado, pois a mostra se ramifica por outros municípios do Piauí, alargando o alcance dos recursos públicos envolvidos.

O encerramento da programação de cada dia acontecia no espaço Trilhos. O encontro dava o tom afetivo que o festival propõe. Toda noite, músicos dos mais diversos estilos, desfilavam seus sons para uma plateia feita de pessoas de todas as artes. Movimentos, conversas, performances espontâneas, discursos, improvisos, integravam realidades de países tão distintos ligados pela língua, em alguns casos, literalmente.

Foi uma experiência deliciosa e exaustiva (me propus acompanhar todos os espetáculos da mostra e todas as atividades reflexivas, tornando a rotina diária uma jornada que começava às 9h e terminava às 3h.), e em cada momento, em cada canto, em cada diálogo a certeza da potência que encontros artísticos dessa natureza têm para ajudar a confrontar momentos tão duros como os que estamos enfrentando atualmente. Os afetos envolvidos também me tornam suspeito, mas quero acreditar que, ao enfrentar um desafio tão instigante quanto o FestLuso oferece, todos os envolvidos – organizadores, artistas e voluntários – estão empenhados em superar-se, ano após ano, na busca de produzir o melhor festival possível para a comunidade piauiense.  

domingo, 28 de agosto de 2016

As tolas palavras de um charlatão


A falta de reflexão crítica é o principal fator que amarra o desenvolvimento da cena teatral maranhense. Falo da nossa aldeia por não possuir nenhum fundamento para alargar a análise além das fronteiras do nosso umbigo. Nossa produção só adquirirá uma potência que extrapole as fronteiras do nosso estado quando tivermos condições de enxergar a nossa mediocridade e, a partir desse exercício, provocar nossa criatividade na busca da excelência que o teatro exige, pois, arte não admite meio-termo.

Nossa dificuldade em lidar com a crítica (tomo o termo em sentido único, pois não acredito em crítica destrutiva, por menos favorável que ela seja) vem entorpecendo a análise de nossa produção. E assim, fomos nos tornando uma classe corporativa, onde elogios superficiais abundam e tudo o que vemos é genial – mesmo que uma simples virada de costas desconstrua a opinião inicial, e retornemos para o nosso ego vociferando a real opinião.

Se você precisar de um companheiro para admitir, eu ajudo. Desde minha adolescência venho lutando com a dificuldade de assimilar as críticas no que se refere ao meu fazer teatral, e, frequentemente, me observo estruturando um discurso de compreensão para abafar minha dolorosa labuta com esse exercício. Por quê? Porque alguns artistas (estou lhe dando a chance de se isentar) lidam com o fantasma da mediocridade, a pretensão da genialidade, com a vontade de estar fazendo algo relevante, com a utopia de mudar o mundo. Só consegui começar a entender a função das críticas quando comecei a admitir os meus fracassos. Ainda estou tentando.

Nós temos a liberdade de fazer uma reflexão crítica sobre o trabalho de algum colega e expô-la sem constrangimento? Estamos preparados para ouvir uma reflexão crítica do nosso colega e recebê-la sem constrangimento? Arrisco a dizer que não, e, por isso, ouvimos, repetimos e institucionalizamos os acenos de parabéns, bravos e uhus. Maravilhoso, genial e fantástico também são adjetivações comuns. Menos. Enxerguemos o lugar do teatro maranhense na cena teatral brasileira dos últimos trinta anos e perceberemos que nosso autoelogio não contribuiu em nada para o amadurecimento do nosso fazer.

Hoje escrevo no contexto do FestLuso – Festival de Teatro Lusófono, em Teresina, dentro do NORTEA – Núcleo de Pesquisadores Teatrais do Nordeste, fórum propício para oxigenar o pensamento, para exercitar a humildade, para identificar nossas falências, para tentar entender nosso lugar na cena, para perceber a nocividade da vaidade artística – tema da minha próxima postagem. Aqui, o exercício da reflexão permanente se estabeleceu, propiciando-me o tempo e a distância necessária para enxergar o óbvio.

Não saberia diagnosticar por que nos tornamos essa fonte inesgotável de hipocrisias. Só tenho suspeitas. A primeira passa pelo afeto. Ao não estar preparado para sofrer críticas (a utilização do verbo sofrer não é gratuita) nos precavemos elogiando os nossos pares, por receio de que o efeito desta seja o mesmo que sentimos quando criticados, e com isso, deixamos de estabelecer parâmetros reflexivos para o artista que espera (ou deveria esperar) a verdade do nosso olhar perante a obra apresentada.

Precisamos admitir isto, sobre pena de cairmos no ostracismo artístico, retroalimentando nosso egocentrismo. Quem de nós já teve a coragem de dar, sem receio, uma opinião verdadeira perante o olhar afetuoso, fraterno e esperançoso do artista amigo que a espera, como se esta fosse a sentença definitiva para a obra em questão? Reflexão crítica, opinião, ponto de vista, impressão: é apenas isso. O meu olhar não refletirá a verdade, mas a negação de um olhar verdadeiro refletirá na trajetória do espetáculo, pois, o silêncio esconderá o contraponto necessário para os vivas, aplausos e loas.

Precisamos ser mais amigos. Mais sinceros. Mais delicados. Mais dedicados. Precisamos entender que a arte não resiste sem verdade, e que a verdade é fundamental para a análise de qualquer obra, pois os diversos e múltiplos olhares ajudam a reorganizá-la. Não é possível que sejamos assim com nossos amigos. Digamos a verdade, ou admitamos que não estamos em condições de dizê-la pelo envolvimento afetivo com o interlocutor. Desconfiemos se só ouvimos elogios. Cobremos a honestidade dos próximos, dos pares.

Mesclo a condição de artista e espectador propositadamente, pois em um estado onde não há reflexão crítica formal, onde os meios de comunicação só se dedicam a reproduzir releases, nós cumprimos essa dupla função, mesmo que a contragosto. A recente passagem de Beth Néspoli e Kil Abreu pela Semana do Teatro no Maranhão foi fundamental para sinalizar os caminhos de uma reflexão crítica delicada, produtiva, atenta, dedicada; contudo, conseguimos perceber a importância e reavaliamos nosso posicionamento quanto à forma de receber diferentes opiniões? Espero que sim. Espero que eu esteja totalmente errado, que seja o único que tenha dificuldade em lidar com críticas, que seja o único que omita sua real opinião, que a realidade da cena maranhense seja apenas um problema sócio-político-cultural, e não tenha nada a ver com falta de autocrítica. Tomara. Dessa maneira, bastaria me banir e todos viveriam felizes para sempre.  

domingo, 21 de agosto de 2016

Entretecendo a teia da revolução


Anteontem encerramos nossa participação no SESC Amazônia das Artes, e mês passado concluímos nossa circulação pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. A experiência de circular e suas consequências já foram postas aqui diversas vezes, sobre plurais pontos de observação. Todavia, em todos, a ressalva quanto a importância dessa deslocação permanente para que um grupo de teatro possa manter uma pulsação contundente, artística e financeira.

No decorrer dos últimos anos, precisamente treze, esse exercício foi possível graças a uma atenção específica por parte do governo federal, através dos mais diversos programas de fomento ao teatro, que culminou em um fortalecimento de coletivos teatrais palpável, reconhecível, admirável. Esse esforço conjunto, operado por estes dois atores – grupos e governo – possibilitou que plateias de todo o Brasil tivessem acesso ao teatro de todo o Brasil, experiência capital para o desenvolvimento de cidadania (o espectador conhece o país através dos dizeres apresentados por cada estado), para o fortalecimento do sentido de pertencimento (o país é nosso, e cada parte dele diz da nossa identidade) e para a redução dos preconceitos de classe, gênero, região, cor, religião etc.

Agora, o grave momento político vivido e os claros e daninhos caminhos sinalizados pelo Ministério da Cultura, me provocam a reflexão quanto a pouca atenção que foi dada por nós, grupos de teatro de todo o Brasil, para a consolidação de uma rede sólida de teatro que caminhasse paralelamente à esfera pública, e construísse condições de autonomia gerencial, formativa,  financeira – não cito a autonomia artístico-criativa porque creio que essa permaneceu imutável independentemente de qualquer tipo de pressão recebida. Inúmeras experiências aconteceram, com os mais diversos nomes, e semana passada, enquanto circulávamos, acontecia o III Congresso do Teatro Brasileiro, em Goiânia. Foi pouco. Para o poder que nos foi dado na última década, nossa articulação como atores políticos foi parca, e nossa ação de construção estrutural de inter-relações artísticas e sócio-político-econômicas foi tímida, por vezes, preguiçosa.

Nos foi dada a oportunidade de tecer uma teia indestrutível, onde o poder do intercâmbio, do conhecimento mútuo, da colaboração recíproca entre vinte e seis estados de um gigantesco país seria o principal instrumento de combate às arbitrariedades e desmandos de qualquer projeto político que atentasse contra o cidadão. Sei que muito foi feito (movimentos, ocupações, congressos, encontros, cartas, manifestações etc.), o que tento dizer é que, ainda assim, foi muito pouco, se comparado às condições dadas. Não soubemos entender o momento e acreditamos que poderíamos viver, permanentemente, em um estado minimamente justo. Doce ilusão.

Nos cabe alargar o tempo despendido, aprender com a experiência, e fortalecer essa teia com caminhos além das estratégias que usamos até aqui. Talvez o sinal esteja no passado, quando o único mecanismo que o teatro amador utilizava para não ser massacrado era nada mais do que um contar com o outro. No fim dos anos oitenta, o grupo Ger“ar-te”, de Balsas, sabia que o grupo “Oásis”, de Imperatriz, estava lá, e podia contar com ele.  Recebíamos inúmeros artistas em nossas casas para falar da vida, que é o que o teatro faz. Nós somos muitos e, hoje, fortes. Poderíamos ser mais, e quanto maior essa força, maior o poder para movimentar as estruturas que engessam o poder público e, por consequência, o país.

O que tento dizer é que o poder do enlaçamento, do emaranhado, da tessitura, do embrenhar-se, do enredamento, do ajuntamento foi subutilizado. A força de poder contar com centenas de grupos de teatro Brasil adentro para assentar a nossa independência foi subestimada. Nos apoiamos nos pequenos sinais dados para a construção de uma política pública cultural eficiente (editais, prêmios, fomentos, leis, bolsas etc.) e pouco usamos nosso principal apoio, o mosaico de grupos de teatro incrustados por todo o país. O que digo agora é: podem contar com a Pequena Companhia de Teatro para o diálogo, para a reflexão, para as discussões, para as manifestações, mas, também, para o colchonete no chão, para a divisão do pão, para a toalha limpa; podem contar conosco para conseguir chegar a um dos estados mais pobres do pais com seus discursos artísticos, estéticos, políticos, que são o esteio da revolução que o teatro pode promover através da capilarização dos seus dizeres.

Sim, é um mea-culpa o que faço aqui. Como artista, fiz muito pouco. Como grupo de teatro, fizemos muito pouco. Como já disse, tenho conhecimento de tudo o que foi conseguido, e reconheço nosso esforço para conquistar o que temos. Ccontudo, se você, grupo de teatro combatente, ativo, militante, não entende que tento lançar um olhar além das nossas conquistas, ou sua vaidade não permite reconhecer o que não foi feito, não vejo solução para dissipar a tempestade que se avizinha.

domingo, 7 de agosto de 2016

Como crescer ficando pequeno?


Com a recente aprovação da nossa ocupação do Centro Cultural BNB de Fortaleza, em novembro, através do Edital de Seleção de Projetos Culturais, chegamos a pouco mais da metade do ano de comemoração da nossa década de teatro passando por três regiões do país, Norte, pelo SESC Amazônia das Artes (terça-feira partiremos para a 2ª etapa), Centro-Oeste, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, e agora, uma mordiscada no nosso Nordeste. Ainda temos três meses livres para convites do Sudeste e Sul para fecharmos o aniversário com chave de roda.

Isso tudo que o parágrafo menciona, e que nos alegra profundamente, esconde um fato gravíssimo que vimos percebendo no decorrer dos últimos anos, e que hoje, como de costume, exponho aqui no blog, este muro de indagações: como crescer mantendo-se pequeno?

A pergunta pode parecer anedótica, mas explicarei seu propósito antes mesmo de você tentar responder ou desvendar. Durante os últimos anos percebemos que nossas conquistas e o robustecimento do nosso currículo tem sido prejudicial na busca de alguns mecanismos de viabilização teatral – leia-se editais e projetos de ocupação, circulação, montagem, manutenção etc. Acredite, o fato de termos nos tornado uma companhia de teatro estruturada, contínua, profissional e produtiva, virou, em certa medida, um problema.

A assertiva vem sendo percebida por outros grupos de teatro parceiros, de trajetórias incomparavelmente mais contundentes que a nossa, o que reforça a necessidade do debate que proponho a partir desta explanação: pode algo ou alguém ser punido por sua excelência? Claro que quando uso o termo excelência estou me referindo a eles, pois nós ainda galgamos, aos sobressaltos, um trilhar na busca de atingir o patamar das nossas referências, que, na maioria, são coletivos teatrais de queridos amigos.

Essa realidade pressupõe que grupos de teatro consolidados são tão estruturados que prescindem dos poucos instrumentos de apoio à produção teatral que existem no país, e que vivem em condições estáveis e confortáveis. O equívoco nefasto esconde a principal realidade de 99% dos grupos de teatro brasileiros, o de não fazerem a menor ideia do que acontecerá com eles no ano seguinte, independentemente do estágio de organização que o coletivo tenha atingido.

Se a esse problema estrutural soma-se a desconsideração por parte dos mecanismos de viabilização cultural, por pressupor a não necessidades desses, pode-se deduzir que quanto maior a trajetória do grupo maior a possibilidade de que ele acabe, o que forja um contrassenso tipicamente brasileiro. Então deveríamos tentar não crescer? Ficarmos um pouquinho piores? Não deixar transparecer nossas conquistas? A querida leitora, o caro leitor, entenderão que o dilema que aqui exponho, apesar de seríssimo, é tão irônico que não me privaria jamais de utilizá-lo para uma chacota: devemos camuflar nossas vitórias e alardear nossas derrotas?

Entendo que o favorecimento ao novo, à iniciação, ao começo é fundamental para a oxigenação da arte, e que todo aquele que começa precisa de apoio para poder se desenvolver, porém, também é verdade que nós começamos na unha, sem apoio nenhum, totalmente clandestinos, e tivemos que provar, a muito chão, porrada e decepção, que estávamos aptos a receber algum tipo de aceno, e nem por isso desistimos.

Mais uma vez vou tropeçar na ausência de políticas públicas, único caminho para aprofundar a compreensão da necessidade de estudos, mapeamentos, diagnósticos e apreciações que a sofisticada linguagem teatral requer; para que problemas capitais como o que aqui exponho não se alastrem, tornando-nos professadores de falácias com a tese de que quanto melhor for o grupo de teatro para a comunidade pior será para ele. Somente políticas públicas bem estruturadas conseguem enxergar além do óbvio, e problematizar questões que fogem do senso comum, do debate virtual, do bate-boca em rede social. Na atual conjuntura, esse sonho está ficando cada vez mais distante, e continuaremos, indefinidamente, tentando fazer no peito o que os governos não fazem por puro desrespeito.

Claro que você, que está começando a fazer teatro, deve pensar que reclamo de barriga cheia. Na verdade, e mais uma vez, estou pensando no seu futuro, se você tiver estômago, persistência, criatividade, coragem, ideal, ânimo e paciência para chegar até lá.  

domingo, 31 de julho de 2016

Entre tantas escrituras, uma homenagem ao leitor


Hoje presto uma homenagem a você, minha cara leitora, meu caro leitor. Dos meus dez anos de Pequena Companhia de Teatro, seis foram ocupados escrevendo neste blog, em um permanente adestramento do pensamento para tentar estabelecer um diálogo reflexivo, escrevendo sobre teatro e todo o seu entorno, o mundo, pois, para mim, o mundo gira em torno dele.
Portanto, hoje abandono minha permanente lamúria quanto à sua indiferença, minha constante chantagem por uma leitura, minha persistente insistência na sua presença, para dar lugar ao fato que escondo, por mero mecanismo de defesa, pois, sou apenas um fabulador que faz da sua escritura uma tentativa de aproximar um pensamento quanto aos caminhos que podemos seguir para sentirmos úteis fazendo algo de inútil nesta vida de exigente rendimento.
Comecei escrevendo para ninguém; outrora, para quase ninguém; logo, para alguns; mais tarde, para poucos; depois, para vários; e hoje escrevo para algumas centenas e, dependendo da postagem, milhares. Sim, essa informação que escondo permanentemente de você, para que não me abandone, hoje é uma realidade que quero externar e lhe dedicar.
É difícil prestar esta homenagem sem revelar minha surpresa ao ver a quantidade de gente que, no decorrer dos anos, se aproximou para estender seu olhar e amenizar as angústias que este parco escritor carrega na lida com um mundo repleto de injustiças, desigualdades, mazelas e intempéries. Perceber que mais e mais pessoas estão atentas às agruras de uma sociedade precária de autocrítica me fez acreditar cada vez mais na potência do diálogo e na necessidade de questionar tudo e todos, para que das questões surjam mais conceitos e menos iluminuras.
Em certa medida, íntima e cálida, você é parte do meu pensamento, parte do meu ser, parte do meu existir, parte da minha teimosa fortuna de jamais desistir. Você está aí e eu não sei se lhe conheço, mas você me conhece na mais profunda intimidade e me ampara com a generosidade de um irmão, de uma amiga, de um compadre, de uma companheira, extraindo de mim um compromisso inadiável, um diálogo inimaginável, um franqueamento incurável.
Por isso, minha homenagem. Jamais desista de mim, minha cara leitora, meu caro leitor. Jamais abandone a esperança de tornar o diálogo a arma para combater as mazelas do mundo, as faltas sociais, os descompassos da vida. Você é a minha esperança de que ainda existe espaço para a reflexão, para o pensamento, para o questionamento, para o velado desconforto atual de debater ideias.
A homenagem não apresenta uma justificativa palpável. Não é uma data específica, nem é o dia que iniciei este exercício; não há marca no calendário, não estou morrendo (espero), nem vou parar de escrever. Não há nada que pontue esta homenagem, a não ser o reconhecimento do quão importante você se tornou no decorrer dos anos, e no quanto eu, por mero exercício de sobrevivência criativa e literária, insisti em ocultar, imaginando que talvez um dia, sem aviso prévio ou motivo justificável, você fosse desaparecer. Obrigado. Por mais infiel, irresponsável, traidor, displicente e preguiçoso, você jamais me abandonou.