domingo, 27 de setembro de 2015

Dois – uma jornada pelo abismo teatral


Fui espectador da primeira montagem profissional do texto “Dois”, terceiro texto da minha dramaturgia reunida publicada em 2011, pelo Programa BNB de Cultura, com o apoio do SESC–MA. O desafio ficou a cargo da queridíssima e parceira Cia. A Máscara de Teatro, de Mossoró, por consequência, o afeto me impede de tecer qual seja a crítica digna de confiança, pois minhas palavras seriam suspeitíssimas, mas não vou me privar de aprofundar o meu olhar sobre as ofertas que a montagem proporciona para o espectador, esse catatônico das plateias, como prega o próprio texto.

A experiência do autor teatral como espectador da própria obra é algo diferente de tudo o que um artista possa experimentar; principalmente no meu caso, onde a intenção de montagem jamais permeou meus pensamentos quando da escrita dos cinco textos que fazem minha dramaturgia. Como a dramaturgia de gabinete sempre foi um exercício parar o melhoramento do meu ofício – a direção – nunca me precipitei além do dramaturgo, imaginando como procederia eu se fosse o encenador da dita obra. Então, assisto como espectador, e me divirto, me emociono e me envolvo com a oferta.

No teatro, o autor do texto é um mero provocador da explosão cósmica que os atores, o encenador, o iluminador, cenógrafo, sonoplasta, se encarregam de transformar em universo; e foi esse universo que se revelou para mim, quando me encontrava sentado na segunda fila do Espetáculo Espaço Cultural, incomodado com a primeira fileira reservada e vazia, primeira surpresa que reservava a montagem, mesmo para o tolo autor que não enxergou o óbvio.

A partir daí me deparei com uma construção atoral de unidade singular, onde Tony Silva e Luciana Duarte produziam vigoroso desempenho, durante os três momentos de desconstrução pelos quais passam as atrizes. Me causou certo espanto ver a versatilidade de ambas, tendo em vista já ter trabalhado tanto com as duas que imaginava não restar muita coisa para me surpreender.

Uma direção segura, generosa, e tomada de um frescor visceral foi uma das principais surpresas. O diretor Jeyson Leonardo era para mim um estranho, pois ainda não havia aparecido nenhuma oportunidade de acompanhar suas empreitadas no universo da encenação. A revelação foi a de um artista comprometido, inquieto e expressivo, disposto a oferecer a cara a tapa sem o menor constrangimento.

Outra surpresa foi a forma esteticamente criativa que encontraram para apresentar a ausência de cenografia que a obra sugere. Mantendo o conceito, o preenchimento do vazio árido com um vazio estético, capitaneado por Damásio Costa, alargou a possibilidade de comunicação, resolvendo o desconforto provocado pela aridez excessiva, que faria com que o espectador se distanciasse.

Eu transitava entre o lúdico, o caótico, o cômico, o orgânico, o dramático, sem me aperceber do autor que se escondia atrás da minha prazerosa jornada, e não consegui enxergar nenhum excesso, ruído, ou lapso, natural para um espetáculo que inicia sua trajetória – que espero, torcendo, seja longa, inspiradora e divertida.

A única pergunta que me faço é quanto à opção na forma e conteúdo das duas desconstruções que se sucedem – nas cenas de transição entre um momento e outro –, quando me inquietava a curiosidade de saber qual foi a análise que fizeram para chegar à opção encenada. Como minha passagem por Mossoró foi como um relâmpago, não tivemos aqueles saborosos momentos de intimidade, que proporcionariam o aprofundamento do diálogo sobre essa peculiar opção, que, de alguma maneira, repaginou o segundo momento da peça – momento este que sempre me pareceu problemático de sustentar.

Espero que esta querida parceira nunca pare, e que sua máscara continue a espantar o espectador, distribuindo arte a partir desse epicentro teatral tão querido e improvável, esse país chamado Mossoró.

domingo, 20 de setembro de 2015

Sobre fracassos, holofotes, engraxates e clichês


A aprovação do nosso projeto no Programa Petrobras Distribuidora de Cultura, o ineditismo do fato, e a consequente capa no caderno de cultura do jornal O Estado do Maranhão, me fez refletir sobre o quanto dependemos de factoides para que o nosso trabalho artístico seja assimilado e reconhecido pela sociedade não vinculada às artes cênicas.

A percepção da relevância não se estabelece mantendo temporadas regulares dos espetáculos gratuitamente, oferecendo oficinas de formação, dedicando dez longos anos na construção de um dizer artístico, na consolidação de procedimentos metodológicos, ou na tentativa de alargar as opções teatrais do espectador. É preciso da manchete, do fato, da notoriedade.

A ideia do homem de sucesso, do caso de sucesso, da empresa de sucesso, do sucesso do espetáculo, do ator de sucesso, do grupo de sucesso está tão consolidada na sociedade contemporânea que por mais que você renegue esses valores o interlocutor suspeitará, torcendo a boca ao imaginar que você blefa, pois é inconcebível hoje alguém ignorar um holofote.

Ainda que o caro leitor desconfie, eu afirmo: meus valores são outros. Sobre essa perspectiva, prefiro ser um homem de fracasso. Não acredito nesses valores. Sucesso e fracasso são bases de um conceito que de nada contribuem para a formação do cidadão, do artista, da sociedade. Se o conceito de sucesso é a medição da minha sobreposição ao meu entorno posso concluir que todo o entorno fracassou, e passo a medir o meu sucesso pelo fracasso dos outros?

Há décadas abandonamos a ideia de medir a arte teatral através desses parâmetros; lutamos para que hoje 99% dos festivais e mostras de teatro brasileiro não sejam competitivos, por acreditar que não é sobre o escudo desse tipo de valores que conseguiremos mensurar a relevância de uma obra de arte para a problematização da sociedade, contudo, permanecemos reféns do reconhecimento pálido, da exposição fugaz, da notícia vaga, da visibilidade anônima.

Penso que é nosso dever romper com essa lógica e assimilar a virtude da nossa insignificância. Como sentencia o clichê, a arte é inútil, e mais inútil ainda é insistir em tentar chamar a atenção do cidadão indiferente ao nosso fazer através da exposição de um esporádico episódio de sucesso. A ação artística chegará a esse cidadão de outra forma, sutilmente, sem ele perceber, e sem a necessidade de que ele reconheça a grandeza da nossa insignificância.

Mas como sobreviver sem esse reconhecimento? Como manter uma atividade artística permanente sem a visibilidade necessária para que a sobrevivência possa ser possível? Trabalhando. Da mesma maneira que a médica, o engraxate, o feirante, a professora, o barbeiro. Nenhum deles depende do reconhecimento daquele que não necessita dos seus serviços. O engraxate não depende do reconhecimento de um homem que só usa tênis. A médica não precisa do reconhecimento do são. O barbeiro não necessita do reconhecimento de um careca. Contudo, trabalham para sanar necessidades básicas e vitais para a existência humana, e lidam cotidianamente com sucessos e fracassos diários: a graxa que manchou a calça, o sorriso do paciente curado, o alto índice de reprovação na sala de aula, a fruta que apodreceu e não chegou à boca do faminto porque não dispunha do dinheiro para comprá-la.

Com o artista não é diferente. Vivemos do entendimento daqueles que enxergam em nosso fazer um sentido para suas vidas, e esse sentido está além da proximidade do sapato, do cabelo, da saúde. É nesse interstício da vida das pessoas que a arte se mostra, com o fracasso diário de tentar alargar essa brecha e com o sucesso esporádico de encontrar cabida em outro coração inquieto.

domingo, 13 de setembro de 2015

As amarras da liberdade


Um amigo, mais afeiçoado a modernices do que eu, ao término de uma das apresentações de Velhos caem do céu como canivetes, sentenciou: Que massa! Vocês fazem teatro mesmo, com personagens, cenários, texto, figurinos... O amigo não vai me censurar por tomá-lo como exemplo, aja vista que escrevo para passar o tempo e escasseio de atenções desmensuradas.

Enquanto se desenrolava o devir da conversação eu me perguntava: como assim? Mas o teatro não é isso, basicamente? Digo, isso não deveria ser a base, e não a exceção? Senti-me jurássico, no decorrer dos poucos minutos que prosseguiram enquanto outras adjetivações assombravam o teatro que fazemos.

Eu reconheço a pluralidade teatral, e penso que uma linguagem só se desenvolve a partir desse pluralismo, mas não vejo com bons olhos o olhar de quem nos vê com olhos saudosistas (o trocadilho é para você ficar estrábico), porque do teatro precisa sobrar para o espectador pouco mais do que uma ideia na cabeça.

O pensamento revelado pelo amigo encontrou eco recente em uma reunião de artistas para compreender as diretrizes de um outro dos tantos editais de cultura que minimamente propiciam o fazer artístico por todo o Brasil – sendo este mecanismo o que sobrou das promessas de políticas públicas culturais em que tanto acreditamos e continuamos esperando.

Nessa reunião senti-me igual. Sobre a égide da inovação, ineditismo, pluralismo, singularidade e afins, o poeta que escreve poesia, o cantor que canta, o grupo de teatro que faz teatro, o bailarino que dança, o ator que atua parecem verdadeiros dinossauros perdidos ou encaixotados em arcaicas e ultrapassadas linguagens artísticas. Por mais relevante que seja uma obra de arte, parece ser necessário que esteja apresentada em um invólucro contemporâneo, logo, não importa quão revolucionário se mostre o seu dizer/fazer, se não for apresentado de forma inusitada.

Claro que não me contive, e perguntei se nessas quase duas décadas de programa havia sido selecionado algum projeto que contemplasse simplesmente as atividades artísticas dos fósseis citados acima. A resposta foi curiosa: parecer ser que uma Cia. de dança que estava no fim, resolveu celebrar esse fim inscrevendo um projeto, uma espécie de extrema-unção da sua dança. Não preciso dizer que a inovação de uma Cia. que celebra seu fim foi contemplada.

O disparate para mim é celebrar o fim de uma Cia., quando a verdadeira inovação é conseguir manter no Brasil um coletivo artístico na contramão do mercado, do achincalhe das artes, do entorpecimento criativo. Cias, grupos e coletivos morrendo tem aos borbotões. Inédito é um grupo de teatro brasileiro conseguir chegar a trinta anos de história fazendo teatro. Insisto, é muito fácil inventar-se criativo, inovador, polêmico, como já falei aqui e aqui, o difícil é inovar organicamente, comprometer-se com as mudanças estruturais que devem acontecer no país para que a barbárie não se estabeleça.

Consigo ouvir a pergunta que está prestes a pular da sua boca: o edital não tem o direito de fazer esse recorte, e por consequência, não incluir aqueles que não se coadunam com esse formato? Teria, se o próprio não se vangloriasse da quebra de caixas, da não compartimentalização, do não enquadramento, da liberdade criadora, do não formato, da contemplação total. Se tudo pode, poderia também aquilo que não tenta reinventar a roda e apenas desliza sobre a original invenção que fez o mundo girar. Sob esse modelo, creio que sem perceber, acabara criando sua própria caixinha.

Ao caro leitor que enxerga no meu comentário um comprometimento da minha relação com a oferta de oportunidade promovida por qualquer que seja o instrumento (edital, lei de incentivo, patrocínio, fundos etc.), sugiro que não tema. Não cale sua voz só por medo a perder a boquinha. Onde houver recursos públicos, é nossa obrigação questionar, indagar, contestar. Assim o fiz com a Lei Rouanet, com políticas públicas estaduais, e o farei com quanto eu achar que minha opinião é oportuna, mesmo que não seja.

Se eu pretendo inscrever algum projeto? Claro. Mas estruturado no meu particular conceito de inovação, ineditismo e contemporaneidade, pois não é a arte que deve se adequar ao sistema, e sim o contrário... E pode me ignorar, afinal, eu sou uma ficção.
 
Marcelo Flecha

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Morre ator vencedor do prêmio Sated/MA


Entrelaços, Pai&Filho e Velhos... 3 espetáculos em que o procedimento adotado pela Pequena... emprenha seus atores na construção de suas personagens. Revisito-o, agora, em Extrato de nós. 

Questionava-me se esse procedimento, que exige demasiado esforço do corpo, seria funcional para atores quarentões. Sei que estou há uma semana em processo e, excetuando o primeiro dia, para mim atípico, os demais foram extremamente prazerosos, comparável a pinto em merda, e bem executados, por um ator de 46 anos.

Cheirei cocaína uma vez, no Rio de Janeiro, na companhia de um amigo. A sensação me foi recuperada esta semana com o exercício do Quadro. Uma energia inesgotável, que se transforma, permanentemente. Chego com uma, reelaboro-a, e saio com outra. 

Algumas dores são inevitáveis a partir da exigência de cada antagônico. Por vezes é doloroso acordar. Entretanto, depois de assistir a toda a série de House, posso me dar o direito de ter uma dor de estimação. Agregue-se a isso a musculação nossa de cada dia e a energia sexual que uma masturbação matinal não resolve – tenho a sensação de que esta postagem vai ser censurada –, e tem-se a morte de um ator para o surgimento de uma personagem - ou persona.

Deixemos o tempo cristalizar.

sábado, 5 de setembro de 2015

Pequena Distribuidora de Cultura


A Pequena Companhia de Teatro foi contemplada no Programa Petrobras Distribuidora de Cultura 2015/2016. Em sua quarta edição o programa contemplou 83 projetos, sendo 67 na categoria adulto e 16 na categoria infanto-juvenil, que circularão por 119 municípios dos 26 estados e do Distrito Federal. Os selecionados são provenientes de 20 estados brasileiros e é a primeira vez que um espetáculo teatral adulto maranhense participa deste programa.

O espetáculo selecionado foi Pai & Filho, que acaba de retornar de uma ocupação no Centro Cultural BNB, em Sousa, na Paraíba. Pelo programa de circulação da Petrobras o espetáculo circulará pelas cidades de Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e Goiânia/GO, realizando 9 apresentações e 9 debates. Ao fim dessa circulação, o espetáculo terá visitado 62 cidades de 22 estados, com 145 apresentações Brasil afora.

Além do espetáculo, a Pequena Companhia de Teatro ofertará a oficina Do épico ao dramático: a transposição de gênero como instrumento de confecção de dramaturgia, atividade formativa já realizada em 10 cidades de 9 estados. A oficina democratiza os mecanismos de construção dos textos teatrais da Pequena Companhia de Teatro quando o ponto de partida são textos oriundos de outros gêneros literários.

Também acontecerão três encontros como grupos de teatro de cada uma das cidades, para intercâmbio de experiências e pesquisa. A inovação proposta pela Pequena Companhia de Teatro é que o grupo convidado participe, não só dos momentos reservados para a reflexão, mas de toda a estada na cidade, acompanhando oficina, montagem, preparação dos atores, ensaio, desmontagem, apresentações, debates, alargando o tempo de intercâmbio entre os grupos.

A jornada acontecerá em julho de 2016, mês em que a Pequena Companhia de Teatro completará dez anos de estrada. Até lá esperamos encher este blog de novidades e engordar a celebração deste decênio de existência.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

URGENTE! Pequena Companhia seleciona atores


E mais uma vez retomo a proposta de espetáculo-solo, agora com o aporte de Marcelo Flecha na direção. 

É recorrente a insegurança e a dúvida em início de processo. Para o ator, que sempre está às vistas, exige-se a eficiência de superação de limites na composição de personagens. As comparações entre montagens são inevitáveis. Ficamos reféns do julgamento e da aceitação de estranhos.

A mortalidade dá espaço à imortalidade das personagens na memória de quem as viu. Entrega é a palavra que move qualquer processo criativo. Se há barreiras, elas definem parâmetros de ação, estabelece-se um delineamento na construção. A criação permanece, mas limitada. Sempre o é. Procedimentos metodológicos funcionam para direcionamento, determinando o espaço de criação a parâmetros específicos. A censura também o é, como a dúvida, a indecisão, o medo. 

E diz a lenda que o que nos mobiliza é a constante solidão e o digladiar-se entre o ficar e o partir. Nessa fissura me habito e me deixo conduzir. E virão composições, prazeres e dores – físicas até. E se faço um retrospecto do meu trabalho, percebo que essa fragilidade é matinal. Ao final do dia o pensamento reage e conduz o corpo para um outro estado. As horas me apartam.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Ocupar


O centro histórico de São Luís, dizem, encontra-se abandonado. Carece de ocupação.

A Pequena Companhia de Teatro, através do projeto Teatralidades, pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, patrocinado pelo Centro Cultural Banco do Nordeste e realizado pelo Ministério da Cultura, Governo Federal ocupou Sousa, na Paraíba, na primeira quinzena de agosto do corrente ano.

Essa ocupação foi além da programação cultural proposta pelo projeto. Ela foi feita na interação cotidiana dos seus membros com a cidade.

Foram 15 dias, e diferentemente dos projetos anteriores, houve tempo e espaço para uma interlocução com a comunidade. Espaço para turismo paleontológico, gastronômico, comercial, cultural. Espaço para o diálogo além das ações de formação e debates. Ocupação de dentro também, pois foi um período em que a Pequena esteve em contato com seus pares, o convívio foi intenso na perspectiva das horas. 

Essa ocupação preenche um pouco a lacuna da ausência de ocupação no nosso próprio terreiro; minimiza aquela sensação de distanciamento da cidade que moramos para habitar uma cidade outra que não a nossa. Um espécie de experimento controlado, ou um ensaio sobre o desejo de fazer o mesmo em nossa cidade.

A vida acumula ciclos, e estamos dançando neles permanentemente. De alguma forma nós fazemos a ponte entre eles. Somos interferidos e interferimos. Não saímos ilesos. É só uma questão de tempo para que o centro histórico de nossa cidade seja acolhido e acolhedor. Um outro ciclo.