domingo, 10 de maio de 2015

Lei Rouanet ou a diferente lógica de um artista

Vinte anos da minha relação com o mecenato

Tem coisas que o mercado não entende. Coisas que não dizem respeito ao intrínseco mundo do dinheiro, do comércio, do negócio. Aqui sintetizarei todo esse conceito econômico-financeiro em um termo que será tratado como uma entidade, um fantasma, um encosto: Lei Rouanet. Ela não entende que a Pequena Companhia de Teatro não tenha um carro e que use o meu, sem dó nem piedade, e sem pagar nada por isso, por acharmos necessário otimizar os custos para podermos viabilizar nossos projetos. A lei Rouanet não entende que o motorista desse mesmo carro seja eu, e que já tenha dirigido mais de trinta mil quilômetros em projetos de circulação sem receber um único centavo a mais do que os recebidos por Katia, Jorge e Cláudio, pelo mesmo propósito anterior: otimizar, viabilizar, realizar. A lei Rouanet não entende que a Pequena Companhia de Teatro jamais teria condições de comprar uma sede como a nossa, e que eu gastei tudo o que juntei na vida e parte do que herdei do meu pai para comprar um teatro, e que o prazo de retorno do investimento é de trezentos e cinquenta anos. A lei Rouanet não entende que dirigi o espetáculo Medeia, um fragmento, para a Cia. A Máscara de Teatro, gratuitamente, por acreditar no trabalho do coletivo mossoroense. A lei Rouanet não entende que pelo cachê de direção eu também faço o cenário, a iluminação, o figurino, opero luz e som, teorizo, faço a faxina e cuido do jardim. A lei Rouanet não entende que o espetáculo O Acompanhamento só existiu graças à clandestinidade e que a clandestinidade é fundamental para a existência da arte. A lei Rouanet não entende que plateias de cinquenta pessoas são tão importantes quanto plateias de mil e quinhentas. A lei Rouanet não entende que um homem pode não ser ambicioso, ganancioso, interesseiro, mercenário. A lei Rouanet não entende que a prestação de contas é uma ação e não uma profissão. A lei Rouanet não entende que o meu maior patrimônio é o meu conhecimento. A lei Rouanet não entende que eu faça oficinas de graça, palestras de graça, treinamentos de graça, consultorias de graça, mapeamentos de graça, jantares de graça, pesquisas de graça, quando a situação me é cara. A lei Rouanet não entende que todo artista bate o escanteio e corre para cabecear. A lei Rouanet não entende de utopia. A lei Rouanet não entende que, ainda jovem, troquei um caminho fértil para fazer dinheiro por fazer teatro, e que ganhei mais correndo o mundo do que correndo atrás de grana. A lei Rouanet não entende que a lei é para todos. A lei Rouanet não entende que fazer teatro é decepcionar a família, virar piada entre os amigos, receber a pecha de boa-vida. A lei Rouanet não entende que o Brasil é maior do que o Projac. A Lei Rouanet não entende que mesmo que desapareçam as leis eu continuarei fazendo teatro. A Lei Rouanet não entende que a lógica, o pensamento, o desejo do artista é diferente do que almeja um investidor. A lei Rouanet não entende nada de arte. A lei Rouanet não me entenderá jamais.

4 comentários:

Anônimo disse...

O ABC da Lei Rouanet é de quem não entende nada mesmo: atrasar, burocratizar, complicar... Estudei um pouco sobre ela e perdi a paciência de tanto perceber que ela mais atrapalha do que ajuda. Não sei bem a quem ela beneficia, mas com certeza não aos meus amigos, artesãos de almas, materializadores de magia, pq esses continuam fazendo de tudo um muito. Eu? Meus 80 anos mentais me fizeram perder também a vontade de insistir num futuro próximo ou distante com essa lei... Espero que daqui a trezentos e cinquenta anos, a lei Rouanet (e seus pares) tenham aprendido um pouco mais sobre arte...
Beijo, Marcelo.

P.S.: não sabia que tu era jardineiro hahahah

Marcelo Flecha disse...

Você precisa vir com mais frequência para ver os progressos do nosso paisagismo, Rute! Belas palavras, dignas da sua vetustez precoce. Só espero que o seu futuro continue reservando uns minutinhos para a leitura das tolices deste teimoso amigo.

Anônimo disse...

Vivaaa a arte, viva ao teatro!!!

/singelaformadeapoioedizerquepasseielioquevcescreveu

Marcelo Flecha disse...

Valeu, Anônimo!