domingo, 24 de maio de 2015

A celebrização da arte

O público, em geral, confunde artista com celebridade. Responsabilizo os meios de comunicação de massa pelo fenômeno. Também confunde fama com reconhecimento, pela ação dos mesmos responsáveis. Para esse público, menos acostumado ao convívio com as linguagens artísticas e mais próximo do padrão televisivo, se você não é célebre não é artista, e se você é artista está buscando a celebrização.

Essa situação, mais anedótica que incômoda, se ramifica com feroz alcance, ao ponto de constranger amigas docentes que, egressas do curso de Licenciatura em Teatro da UFMA, se depararam com a inocente sentença provinda de parentes e amigos: agora você já pode ir pra Globo, né?

A confusão formada, produto da visibilidade a qualquer preço, faz com que Renato Gaúcho e Dalton Trevisan se encontrem no mesmo balaio, correndo o risco de atribuírem-lhe maior fortuna crítica ao primeiro por ser possuidor de uma exposição mais acentuada. O que difere um do outro é que o vampiro de Curitiba não toma conhecimento disso, e o ex-atleta usa o conhecimento disso para forçar o seu reconhecimento. Sutil diferença.

Cabe à classe artística fazer um exercício para que o fenômeno da celebrização do artista não prospere, fazendo com que a arte volte aos holofotes e os artistas voltem para seus estúdios e estudos, deixando claro que o ganha pão da celebridade é a exposição e o ganha pão do artista é a sua obra.

Claro que, em alguns casos, a superexposição é inevitável e alguns grandes artistas provaram em vida essa notoriedade, mas, outros, submersos nas entranhas das suas elucubrações, morreram esquecidos porque sua genialidade estava acima da compreensão dos seus contemporâneos – não digo que estes últimos, também, não desejassem reconhecimento, mas asseguro que pouco se importariam com a fama.

Foi exatamente a confusão entre fama e reconhecimento que fez surgir essa recente corrida desenfreada para a luz, que turva o olhar do cidadão fazendo-o misturar a fama de quem emplacou um vídeo tosco dançando na internet com o reconhecimento de um grande bailarino.

Um artista pode ser reconhecido e respeitado em todo o país e não necessariamente dar cabida a essa famosidade predatória de paparazzi, gourmetizações, casamentos, e milhões. A bem da verdade, o conceito de fama eufórica vem mais assustando que cooptando os operários da arte que buscam, nas suas linguagens, a revisão do seu papel na antropologia cultural, apesar de falharem no momento de democratizar seus conteúdos, mantendo o povo distante da possibilidade de compreensão das diferentes realidades artísticas e seu lugar nas páginas da história.

Como consequência, o público ao que me refiro neste escrito, entende por fama o ápice da carreira – mesmo que tenha sido adquirida matando os pais, esquartejando a namorada ou alimentando seu cãozinho com foie gras – sem entender que o reconhecimento se dá através da valoração atribuída à trajetória de um agente que contribuiu de alguma maneira para a transformação do seu entorno.

Um grande passo seria dado se conseguíssemos, ao menos, fazer com que a Dona Antônia da padaria entendesse que uma Licenciada em Teatro quer ser uma ótima professora e não a mais nova célebre desconhecida da semana.
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domingo, 17 de maio de 2015

Você sabia que...


... o espetáculo Velhos caem do céu como canivetes foi selecionado para a Mostra Internacional de Teatro Paraíba Encena 2015? Foram mais de quinhentos inscritos para um recorte de oito espetáculos internacionais, oito nacionais e oito paraibanos. A curadoria dos espetáculos ficou a cargo de Valmir Santos e Marcelo Bones que indicaram a Pequena Companhia de Teatro como uma das oito representantes nacionais. Será a oitava mostra de teatro que o espetáculo participa, sendo a primeira internacional. Desde sua estreia, a encenação realizou trinta e quatro apresentações e esteve em sete cidades de três estados brasileiros. A Paraíba é um dos sete estados que a Pequena Companhia de Teatro ainda não visitou com seu repertório, e 2015 oferece essa oportunidade em dose dupla: Pai & Filho estará em Sousa/PB realizando projeto de ocupação do Centro Cultural BNB e, agora, essa agradável notícia. Aqui nossa gratidão ao MITpb-2015 pela oportunidade.

domingo, 10 de maio de 2015

Lei Rouanet ou a diferente lógica de um artista

Vinte anos da minha relação com o mecenato

Tem coisas que o mercado não entende. Coisas que não dizem respeito ao intrínseco mundo do dinheiro, do comércio, do negócio. Aqui sintetizarei todo esse conceito econômico-financeiro em um termo que será tratado como uma entidade, um fantasma, um encosto: Lei Rouanet. Ela não entende que a Pequena Companhia de Teatro não tenha um carro e que use o meu, sem dó nem piedade, e sem pagar nada por isso, por acharmos necessário otimizar os custos para podermos viabilizar nossos projetos. A lei Rouanet não entende que o motorista desse mesmo carro seja eu, e que já tenha dirigido mais de trinta mil quilômetros em projetos de circulação sem receber um único centavo a mais do que os recebidos por Katia, Jorge e Cláudio, pelo mesmo propósito anterior: otimizar, viabilizar, realizar. A lei Rouanet não entende que a Pequena Companhia de Teatro jamais teria condições de comprar uma sede como a nossa, e que eu gastei tudo o que juntei na vida e parte do que herdei do meu pai para comprar um teatro, e que o prazo de retorno do investimento é de trezentos e cinquenta anos. A lei Rouanet não entende que dirigi o espetáculo Medeia, um fragmento, para a Cia. A Máscara de Teatro, gratuitamente, por acreditar no trabalho do coletivo mossoroense. A lei Rouanet não entende que pelo cachê de direção eu também faço o cenário, a iluminação, o figurino, opero luz e som, teorizo, faço a faxina e cuido do jardim. A lei Rouanet não entende que o espetáculo O Acompanhamento só existiu graças à clandestinidade e que a clandestinidade é fundamental para a existência da arte. A lei Rouanet não entende que plateias de cinquenta pessoas são tão importantes quanto plateias de mil e quinhentas. A lei Rouanet não entende que um homem pode não ser ambicioso, ganancioso, interesseiro, mercenário. A lei Rouanet não entende que a prestação de contas é uma ação e não uma profissão. A lei Rouanet não entende que o meu maior patrimônio é o meu conhecimento. A lei Rouanet não entende que eu faça oficinas de graça, palestras de graça, treinamentos de graça, consultorias de graça, mapeamentos de graça, jantares de graça, pesquisas de graça, quando a situação me é cara. A lei Rouanet não entende que todo artista bate o escanteio e corre para cabecear. A lei Rouanet não entende de utopia. A lei Rouanet não entende que, ainda jovem, troquei um caminho fértil para fazer dinheiro por fazer teatro, e que ganhei mais correndo o mundo do que correndo atrás de grana. A lei Rouanet não entende que a lei é para todos. A lei Rouanet não entende que fazer teatro é decepcionar a família, virar piada entre os amigos, receber a pecha de boa-vida. A lei Rouanet não entende que o Brasil é maior do que o Projac. A Lei Rouanet não entende que mesmo que desapareçam as leis eu continuarei fazendo teatro. A Lei Rouanet não entende que a lógica, o pensamento, o desejo do artista é diferente do que almeja um investidor. A lei Rouanet não entende nada de arte. A lei Rouanet não me entenderá jamais.

domingo, 3 de maio de 2015

Canção para o pequeno ato


Um provérbio africano atribuído a Eduardo Galeano, ou vice-versa – não tenho fonte segura que garanta a origem da sentença –, sintetiza o pensamento da Pequena Companhia de Teatro desde sua fundação: Mucha gente pequeña, em lugares pequeños, haciendo cosas pequeñas, pueden cambiar el mundo.  É nisso que acreditamos. É nisso que acredito. Nunca imaginei, esperei, pretendi ou sonhei que nossas ações encontrassem eco e reverberação imediata, muito menos que contribuíssem para qualquer tipo de transformação em curto prazo. Sou um homem que sempre investiu no longo prazo, mesmo sem deixar filhos biológicos para herdar qualquer tipo de transformação defendida por mim. O sonho de construir um mundo melhor nunca se relacionou com o melhor futuro para os meus; sempre pensei nos meus, nos teus, nos nossos, e sempre acreditei que a vida com teatro seria melhor para todos. Melhor no sentido existencial, não no sentido midiático da felicidade a qualquer preço, do desespero do ter, da exposição do ser, da aparência do estar, da salvação do crer; seria melhor porque o teatro confunde as certezas, acachapa a soberba, refuta o conformismo, sabota a impaciência. Numa sociedade atrofiada pela celebração da frivolidade, o teatro é a pequena pedra no sapato, que faz manquejar o dono do andar mais elegante, porém, nunca estará entre as estatísticas das atividades que influenciam o mundo, nem será capa, chamada, destaque, assunto. A influência do teatro é uma questão antropológica: você não a percebe, não a celebra, ela está. O que aqui escrevo não é uma declaração de princípios, é apenas a aclaração do por que a pequenez defendida pelo provérbio me é tão cara. São as pequenas coisas que movimentam meu entusiasmo teatral: a peculiar atmosfera da sala, o olhar virginal do espectador, as batidas de Molière, a rudeza do encontro cara a cara e a consumação da arte sem edição. Pequenas e intensas coisas. A imensidão dos grandes projetos quase sempre naufraga na própria pretensão. O teatro é uma dessas pequenas coisas que podem mudar o mundo, fazê-lo refletir e refleti-lo para que se veja. As ações pequenas comem pelas beiradas, sabendo que não se atinge o centro sem passar pela periferia. Eu falo por mim, a Pequena Companhia de Teatro fala através das suas ações e, claro, através do próprio nome: Pequena. Foi pensando nisso que Katia, Jorge e eu a denominamos em uma tarde à beira-mar. Depois de passados dez anos, não consigo encontrar nome mais acertado para a nossa empreitada.