domingo, 26 de abril de 2015

A arte precisa de entrelinhas


O que vale na arte? O que ela é ou o que os artistas são? Por diversas vezes elaborei projetos para editais culturais de circulação de espetáculos teatrais que não requeriam sequer um vídeo, um link, ou algo que desse acesso ao espetáculo, porém, exigiam matérias jornalísticas, críticas, currículo etc. Na labuta de tentar pensar como um parecerista, sempre que isso ocorre, me pergunto: como selecionar um espetáculo para circular sem vê-lo? A resposta dada pelo conteúdo dos próprios editais sempre está ancorada na relevância cultural da obra. Mas, o que determina essa relevância, se não a avaliação da própria obra? A quantidade de público? O número de matérias de capa? O nome do artista? A quantidade de críticas? O nome do crítico? Vivemos na cultural da visibilidade e certas armadilhas merecem cuidado: se o artista precisa desesperadamente criar e cultuar o mito pessoal – como se isso fosse possível –, é esperar demais que ele encontre tempo para criar uma obra e esperar que seja cultuada por nós outros. Nós, espectadores-leitores-ouvintes, só receberemos lampejos do tempo criativo desprendido na produção da obra, pois, a maior parte desse tempo, foi ocupada na articulação do mito pessoal e na reverberação do mesmo. Acham que estou delirando? Vou dar um exemplo: frequentemente vemos, nas redes sociais e no tête-à-tête, artistas tentando emplacar seu pensamento, sua imagem, seu estilo de vida, sua alimentação balanceada. Na maioria das vezes, nós, espectadores-leitores-ouvintes, sabemos que essa pessoa é artista, contudo, não lembramos qual foi a última obra concretizada por ele. Qual foi o último espetáculo que fez? A última música que compôs? O último livro que escreveu? A última exposição de artes que realizou? (Lembrando que, para esta postagem, fotos esquisitas em redes sociais não contam como obras de arte). Na atualidade, emplacar uma imagem de artista, um comportamento de artista, um estilo caricaturado de artista, parece ser mais eficiente do que desperdiçar anos produzindo arte. Essa ilusão, que costuma confundir artista com celebridade (tema para uma próxima postagem), gera um universo paralelo de pessoas auto-cultuadas, polêmicos de botequim, criadores do invisível, bufões virtuais, artistas sem arte. Cabe a nós, reles espectadores dessa trágica confecção de mitos, extricar os artistas dos mitômanos. Eu me divirto fazendo esse exercício.

19 comentários:

Anônimo disse...

Tuas postagens só ampliam meu vocabulário... Hahaha

Leidson Ferraz, do Recife disse...

Ah, essa eterna luta de legitimação, para si ou pelos outros! Cruel vida de artista. Parabéns pelo texto.

Unknown disse...

Acho que esse texto foi escrito pra mim. Rss. Nunca mais pintei nem escrevi nada. Levei tanta lambada recentemente que desanimei...

Marcelo Flecha disse...

Sem comentários para você, Rute (risos). Obrigado, Leidson! Escreva mais aqui! Faça como a Rute, mesmo que seja para tirar uma onda com o meu vocabulário gargalhadas)!

Piahuy: Estúdio das Artes disse...

Por isso sempre digo: Artista que não cria atrofia! Aqui em Teresina existem multidões de atrofiados, que entre goles de cerveja e maledicências, nutrem a doce ilusão de fazerem parte do mundo da arte. São artistas de boca, artistas rede social, atores, atrizes e fazedores da cultura do nada faço. Entre outros, que realizam alguma mixaria teatral uma única vez na vida e, acham-se celebridades, com seus vídeos patéticos na internet, comentários pseudo inteligentes e uma necessidade enorme de serem o que jamais serão. Artistas da verdade.

Marcelo Flecha disse...

Não faça isso, Sandro! Se há alguém a quem não cabe o texto é a você... a não ser que os poemas que leio não sejam seus e você esteja rouba versos noite adentro!

Marcelo Flecha disse...

É, Adriano. Mas há uma forma de responder a tudo isso: fazendo. Apareça, querido!

Unknown disse...

Caro Marcelo! Compartilho do mesmo pensamento, que dedilhas nesse texto, altamente indigesto para alguns. Mas, que precisam ser ditas. Existem várias espécies de "Artistas", porém os medíocres, são os que mais sofrem na luta exacerbada pelo reconhecimento,vivem de se auto projetarem a todo custo, expondo suas vidinhas desinteressantes, que não contribuem em nada com a arte, que tanto, dizem que fazem. Só penso que esses mesmos indivíduos tem prazo de validade, nas suas tão "sonhadas", obras, os ideofrênicos estão por toda parte. E o Teatro nada tem haver com toda essa balbúrdia. Vamos trabalhar né?

Marcelo Flecha disse...

Conseguiu, Silmara! obrigado pelo esforço de comentar aqui!

Rodrigo França disse...

Ser artista tbm é se expor e querer se expor, mas sempre através de sua "obra". Busca-se mais apreciadores, leitores, espectadores... e como fazer isso se não tbm através da propaganda. Sua arte fala por si... ok! Não obstante a 'autonomia' do objeto artístico, vemos nele o "panfleto" ideológico do artista. Sua difusão implica uma parte importante da construção identitária do artista (podemos chamar de carreira), a forma que assume "midiaticamente" é que pode ser criticada. Sim... existe a megalomania! A mitomania (dicionário tbm Rute! rsrsrs)! Mas vejo como um sintoma do artista que quer ser consumido, devorado, como quando os espectadores o faziam ao apreciar suas produções... O que aconteceu a Baby Jane? Está acenando para um desfile que já passou. Nem todos podem ser Warhol ou Dali, mas o artista adora uma massagem no ego, né?

Marcelo Flecha disse...

Rodrigo, sempre preciso. Lembrando que coloco o acento nos artistas sem obra, porque são esses os que mais me enervam. Saudações baluarte do blog!

Fernando Braga disse...

Boa reflexão. Primeiro contato com blog. Estarei atento. Abs

Marcelo Flecha disse...

Saudações, Fernando Braga! Apareça, sim.

Anônimo disse...

Ah, a polêmica, rs. :] Saudade! Teu telefone voltou?

Marcelo Flecha disse...

Saudades, André!

14ª Aldeia Sesc Guajajara de Artes disse...

Caro Marcelo, nesse contexto o trabalho do curador e programador cultural fica muito mais difícil, pois procuramos a obra e nos deparamos com excessos. O culto pessoal acima de tudo, não dará a possibilidade de vivenciar um outro sentido de tempo.

Marcelo Flecha disse...

É isso, Isoneth. O desafio está em conseguir diferenciar alhos de bugalhos, berimbau de gaita, mitos de mitômanos. Fico feliz que o convite ao exercício que aqui faço encontre eco na sua sensibilidade. É muito bom ler suas palavras por aqui!

Aécio Cândido disse...

Excelentes indagações, Marcelo, e observações instigantes. É muita coisa para se pensar.

Marcelo Flecha disse...

Obrigado, Aécio! Apareça mais por aqui!