Não sou homem
de listas, pedidos, desejos, promessas. Faço o que está ao meu alcance para que
minha vida seja tão boa quanto o meu esforço para que a vida dos outros seja.
Não consigo imaginar o bem-estar se não for coletivo. Os outros são outros eus,
e meus eus são tão plurais que confundiriam meus pedidos. Uma virada de ano não dá
conta da histórica desigualdade que nos constituiu como sociedade, portanto, em
vez de dar pulinhos sobre as ondas, dou meus pulos para fazer do teatro o
instrumento de transformação que sonhei quando ainda não fazia promessas para
um ano novo – como disse, não sou homem afeito a essas práticas. Principio
insistindo em não abandonar a utopia — um ser humano que acredita no poder de
algo tão inútil como o teatro, ou é um tolo, ou um idealista, que,
contemporaneamente, significam a mesma coisa. Abraçado a essa égide, vou
imaginando um mundo melhor enquanto reparo pequenas fissuras, porque um mundo
se constitui de partes pequenas, e se deixo que a parte que me cabe roa, não
posso exigir o melhor através do reparo dos outros. Entretanto, sabedor de que
tudo é pouco quando os excluídos são tantos, desabito o utópico desejo para
habitar a realidade, e mergulho na análise dos pequenos atos, aqueles que
corrompem, transformam, denigrem, enriquecem, destoem, melhoram. Qual humano me
tocou ser? O foragido? O mesquinho? O mártir? O clandestino? O corrupto? O
exilado? O invejoso? O ser simbólico é a essência do ser real. Qual é o meu
traje? Que papel me fora outorgado pela imagem que criei de mim? É a partir
dessa imagem que se constitui a relação com o entorno, e não se espera
honestidade do corrupto, lealdade do infiel, clausura do mundano. O que o mundo
espera de mim enquanto me pavoneio sobre o quanto eu ajudo a melhorá-lo?
Tocou-me o papel do insignificante, do invisível. É desse lugar que tento mudar
o mundo. É da impotência dessa condição que enfrento todos os moinhos. É desse
abismo que sonho construir um mundo melhor para todos. É dessa miserável
situação que violento a minha vaidade ao prever que o próximo ano será tão
igual quanto todos, se minha inércia não se quebrar em benefício do todo.
domingo, 27 de dezembro de 2015
sábado, 12 de dezembro de 2015
Cansei de ser enganado
Estou cansado
de ver artistas abrindo concessão por tudo: dinheiro, religião, crítica,
opressão. Uso hoje o dinheiro como objeto de provocação. Estou cansado de
assistir a obras que não são o que seriam, porque a redução de custos comprimiu
a arte a ponto de mutilá-la. O cenário não cabe no orçamento? Faço de um
barbante meu castelo. Não dá para pagar a banda inteira? Vou de voz e violão. A
grana não cobre a contratação de luz? Faço da minha incandescência uma soturna
escuridão. Artistas vão de multimídia a monobloco em fração de segundos para
adaptar conceitos, sem se ater aos efeitos, que na maioria das vezes se tornam
defeitos. Estou cansado da argumentação etimológica, com palavras de ordem –
pós, contemporaneidade, processo, efemeridade, flexibilidade –, para camuflar a
óbvia necessidade de faturar. Estou cansado de ouvir a frase “artista tem que
sobreviver” como argumento para estuprar a arte, o pensamento, a paixão, a
víscera, a vocação. Estou cansado de ouvir a explicação do artista me dizendo
como é a apresentação original, o quão genial é a obra pressuposta, enquanto eu
vejo o Frankenstein que ele criou para poder chegar até aqui apertando o
orçamento. Estou cansado de que mintam na minha cara sem pudor, estou cansado
da conivência do espectador, estou cansado da ausência de fervor. Estou cansado
de ficar em casa com medo do que vou encarar no teatro, no museu, na praça. Onde foram parar as deliciosas
frases “botei do meu bolso”, “gastei tudo o que eu tinha”, “tomei prejuízo”,
para explicar a odisseia que foi conseguir trazer essa obra magnífica a um
estado tão periférico como o Maranhão? Estou cansado de boas ideias e péssima
execução. Estou cansado de ser condescendente para não magoar o amigo, de ser
hipócrita para não parecer sempre crítico, de ser taxado por não comungar com a
mediocridade, de ser o excêntrico porque não engulo qualquer coisa. Estou
cansado da ideia de que qualquer coisa é melhor que nada, quando o nada é bem
melhor do que qualquer coisa. Estou cansado de levar gato por lebre, apesar de
preferir gatos. Não aleije sua obra, não flexibilize em demasia, não venda seu
rigor, não comprometa seu dizer, não subestime o espectador. Recentemente vivemos
uma situação similar, onde precisamos ajustar nossa montagem a um projeto de circulação, e o norte do país verá Velhos caem do céu como canivetes sem um
centímetro de prejuízo em relação ao espectador que assiste o espetáculo em nossa
sede; não fosse assim, não veria. Portanto, não me venham com arengas.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2015
sábado, 5 de dezembro de 2015
A Pequena na Amazônia Legal
A última apresentação do ano de Velhos caem do céu como canivetes, a quadragésima, encerrando a programação de artes
cênicas da 10ª Aldeia SESC Guajajara de Artes, culminou com o anúncio da
seleção do espetáculo para participar do projeto SESC Amazônia da Artes, em
2016, anúncio feito pela querida Isoneth Almeida antes do início do espetáculo.
Serão dez apresentações por todos os estados da região Norte, além de Mato
Grosso, Piauí e Maranhão.
Com o anúncio, no ano em que a Pequena
Companhia de Teatro completa dez anos, teremos nosso repertório circulando por
duas regiões completas do nosso país – Pai & Filho circulará pela região
Centro-Oeste, pelo Programa Petrobras Distribuidora de Cultura. Nossa luta será
para estender a comemoração para todas as regiões, e ainda dependemos de
algumas respostas, sortes, confirmações, mandingas, resultados e cruzamento de
dedos.
Os dois projetos vão nos proporcionar a
possibilidade de atingirmos alguns dos poucos estados que faltam para a
Pequena Companhia de Teatro ter circulado por todos os estados brasileiros com
seus espetáculos, façanha que para uma companhia de teatro de pesquisa
maranhense é quase uma odisseia.
Como os estados do Amazonas, Roraima e
Acre, estão incluídos na nossa circulação pelo Amazônia da Artes, e Mato Grosso
do Sul e Goiás estão incluídos na circulação pelo programa da BR Distribuidora,
apenas o estado de Sergipe e o Distrito Federal não terão recebido espetáculos
da Pequena, pelo menos até o fim desta postagem. Não sei o que isso quer dizer,
mas sei dizer que isso não é pouco.
Contudo, o que diferencia o projeto
Amazônia das Artes, é a possibilidade de diálogo com uma região que, apesar de ser
tão próxima do Maranhão, não se apresenta elucidada por nós como deveria. A
potência criativa que emana do discernimento das diversas realidades da região,
suas delícias e agruras – como nossa querida leitora Maria Rita, do Amazonas,
destacou ao comentar aqui – alargará o nosso entendimento sobre um fazer
teatral nacional, como outrora comentei na postagem Teatro brasileiro.
O ano do aniversário ainda nem começou e
já temos motivos de sobra para comemorar, e celebrar fazendo teatro é a nossa
prioridade: juntem-se a nós, Sergipe e Brasília!
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
domingo, 29 de novembro de 2015
Pequena aldeia
Apesar de abrir as portas da sua sede em
2013, o ano de 2015 está oferecendo uma experiência inédita para a Pequena
Companhia de Teatro: a de abrir a casa para outros grupos se apresentarem –
experiência iniciada no dia 31 de outubro, com o espetáculo “Para uma avenca
partindo”, de Josué Redentor.
Agora, durante a 10ª Aldeia Sesc
Guajajara de Artes, nossa sede está sendo ocupada com diversas atividades:
ontem as palestras “Ser indígena hoje em contexto urbano, desafios e
resistência” e “Ocupa árvore”; amanhã o lançamento da revista “Palavra”, às
19h, e “Para uma avenca partindo”, às 20h30; terça o espetáculo “A escrita do
Deus”, às 19h; e quarta “Velhos caem do céu como canivetes”, às 19h.
Essas experiências embrionárias servirão
para fazer uma avaliação detalhada, e definirmos os rumos que tomaremos em 2016
no que se refere à cessão do nosso espaço para atividades outras que não
aquelas desenvolvidas pela Pequena Companhia de Teatro.
"O fato, como tudo o que se refere ao universo teatral, me faz refletir, indagar, arguir, questionar, e escrever para você, meu discreto confidente."
Nós quatro, membros da companhia, temos
a certeza de que não queremos que nossa sede se torne uma casa de aluguel, e
que, como várias experiências que conhecemos, tenhamos limitado nosso
desenvolvimento artístico por comprometermos nosso espaço de trabalho com
pautas, locações, agenda, calendário.
Daí em diante ainda não definimos que
tipo de regimento ordenará essa demanda, portanto, enquanto a discussão interna
se desenvolve, empresto minhas impressões e reflexões iniciais a este blog,
instrumento onde despejo minhas opiniões, surtos, desatinos, problematizações e
devaneios.
Penso que o ideal seria que tivéssemos
muita vontade de abrir nossas portas para outras produções, mas que nossa
própria produção fosse tão intensa – com temporadas regulares de espetáculos,
oficinas, vivências, treinamentos, processos, seminários – que se encarregaria
de atrapalhar essa vontade, e só disponibilizaríamos as fendas que surgissem na
agenda durante o ano. Seria o melhor dos mundos, tendo em vista que tanto
trabalho nos tornaria abastados, e eu esbanjaria dinheiro para minimizar minha
dificuldade em lidar com ele.
Não sendo essa a realidade – e creio que
jamais será, mesmo fazendo um esforço
para me livrar da pecha de pessimista contumaz –, acredito que a linha
curatorial da cessão do nosso espaço deveria obedecer critérios que
identificassem o diálogo entre o nosso fazer e a produção que se apresentasse
aqui; dessa forma, ofereceríamos ao nosso espectador um recorte específico de
produção teatral (ou musical, literária etc.), focalizado na pesquisa, no
desenvolvimento de pensamento, na valorização da arte como instrumento
provocador.
A única certeza que me impregna é que
essa disponibilização deveria ser secundária. Durante sete anos sonhamos com a
possibilidade de ter uma sede para conquistarmos independência criativa,
autonomia espacial, alargamento técnico, desopressão financeira. Esse foi, é, e
deveria continuar sendo o nosso foco – você, leitor tenaz que chegou até este
ponto da postagem, não sabe a satisfação que dá ter o espaço que se quer para
se produzir o que quer que seja sem a pressão de ter que produzir dinheiro para
pagar o aluguel.
Como sempre digo, somos privilegiados, e
temos que ter o cuidado para que nosso privilégio não se torne uma prisão
pautada pelos outros, como quando precisávamos pedir para poder experimentar,
pedir para poder ensaiar, pedir para poder apresentar – condição que durante
sete anos vivemos e que, sabemos, não queremos iterar.
quarta-feira, 25 de novembro de 2015
domingo, 22 de novembro de 2015
Pequena Companhia de Teatro seleciona inúteis
A geografia teatral não é favorável ao
Maranhão. Estamos na intercessão entre o Nordeste e o Norte, e montados no que
já foi o Centro-Oeste (Tocantins), ou seja, em lugar nenhum. Não estamos
integrados a um dizer estético regional, a uma identidade simbólica
situacional, a um todo como parte. Não bastasse a condição geográfica, a
ausência de políticas públicas estaduais para teatro aleijou décadas de
produção, fazendo teatristas tatearem, trôpegos, os seus caminhos, sem maiores
referências, com base na empiria, sensíveis à interferência e ávidos por anuências.
Sou um deles, como já falei aqui.
Atravessei três décadas para enxergar o que faço com um olhar menos severo, e
acreditar que dessa claudicância pode sair um pensamento digno de atenção. De
lá para cá tropeguei como tantos, até voltar ao princípio, e entender que o caminho
do teatro é o grupo. O resultado foi o agrupamento de Katia, Jorge, Cláudio e
eu em torno de um projeto artístico de nome Pequena Companhia de Teatro, que,
como ninguém sabe, em 2016 completa dez anos de existência.
Essa assertiva tardia – que no meu caso
derivou de pregressos quinze anos de cambaleio entre grupos de teatro no interior
do Maranhão, a demorada profissionalização, a integração a uma grande companhia,
a glamourização das grandes produções, a superestimação do encenador, o serviço
público, a clandestinidade e demais titubeios – chegou com uma clareza rara,
uma certeza na necessidade de consolidação do nosso dizer a partir da
canibalização afetiva dos nossos seres, uns dos outros. Somos, inicialmente,
amigos, e nossa relação afetiva afeta nossa produção artística.
É o resultado dessa plural experiência
que provoca em mim a dificuldade de pensar em alargar os parâmetros
estruturais da Pequena para uma composição mais argilosa, defendida por um dos
meus pares, onde a estrutura composicional não seja tão rígida, e que outros
agentes possam interferir na permanente formação artística da companhia, seja na área artística ou na produção e logística.
Minha reserva se opera no campo da
prática. É como se houvesse uma consciência empírica que me dissesse do
impossível e improvável de conseguir acontecer o que nós quatro fizemos
acontecer, e que certas aventuras podem ser instigantes quanto a oxigenação,
mas nefastas quanto a estrutura ideal adquirida nesse pouquíssimo tempo – tendo
em vista que nossa formação atual recém completou cinco anos, dois espetáculos
em repertório e um lugar para cada um no carro emprestado.
Sei que meus fundamentos são pobres, e
que diversos parceiros estão à porta, dispostos a dialogar conosco, querendo contribuir,
com potência artística para agregar fortuna a essa nossa inútil e saborosa empreitada
teatral, porém, como sou oriundo do meio futebolístico, é difícil quebrar a
velha máxima: em time que está ganhando não se mexe. Contudo, para não dizerem
que sou velho – Oh, novidade! –, também, careta, pragmático, conservador, enrijecido,
ou qualquer outro desses adjetivos óbvios que jovens artistas me atribuem, inicio
aqui o diálogo: o que você acha?
domingo, 15 de novembro de 2015
Asas sobre o exílio, em forma e pensamento
Fotos de Ayrton Valle |
Por Kil Abreu*, em São Luís.
Ao assistir ao espetáculo da maranhense
Pequena Companhia de Teatro e ao olhar o entorno onde ela se inspira, a
impressão imediata é a de que a escolha dos materiais e as operações de
linguagem sobre eles como que criam um parangolé dramático talhado à medida pra
vesti-los. O conto de Gabriel Garcia Marquez (Um senhor muito velho com suas
asas enormes) oferece o tecido, a matéria primeira, mas a montagem é fruto de
motivos, modelos e técnicas intuídas pelo próprio grupo, de modo que mesmo
estando lá, e bem assimilada, a narrativa original dá lugar a uma obra nova, em
boa medida autônoma quanto aos seus argumentos.
O ser alado que cai no terreiro, um anjo
velho (mas imprestável para a metafísica), é parente mais novo do faquir de
Kafka (Um artista da fome), e dele empresta senão o mesmo destino ao menos a
trajetória. Como aquele, é criatura marcada por uma diferença fundamental, fora
do raio da compreensão ordinária (as asas, a origem ignorada, a sobrevivência
na contingência).
Na versão do encenador Marcelo Flecha
esta incongruência viva é acolhida por um miserável, um catador de lixo. E
daqui desdobra-se já o procedimento fundamental que dá ossatura à dramaturgia:
o anjo, que no conto do autor colombiano não diz palavra, aqui não só faz as
réplicas ao outro como também cria o espaço para um diálogo
político-existencial capaz de instaurar questões novas e de fazer as
aproximações que o grupo quer explorar tendo como medida sua própria realidade.
“E a consciência destes seres exilados, quando trágica, tem a ver com o atravessamento da liberdade pela certeza da finitude tanto quanto pela certeza sobre uma vida insuficiente”
Ao ceticismo e pessimismo de quem a
seiva das idealizações diante do mundo parece ter sido toda extraída
correspondem as provocações do outro, expressas em uma espécie de fé paradoxal
– porque instaurada não através da crença ou do dogma, mas através da dúvida e
de perguntas sobre o sentido do existir. Então, de García Márquez a Kafka e de
Kafka ao próprio grupo os caminhos tendem a encurtar-se. É que em qualquer caso
o que margeia, acidentalmente ou não, todas estas narrativas – inclusive a
atual, proposta pela Pequena Companhia – é a discussão da liberdade como lugar
problemático para onde convergem os enfrentamentos entre miséria e
transcendência, entre rotina e maravilhamento (para lembrar a ótima expressão
citada pela Beth Néspoli), entre enquadramento e possibilidades de criação.
Os pontos de vista das personagens, por
opostos que pareçam, se afunilam e se irmanam em uma condição semelhante. Esta
condição é a do exilado (a própria diferença, na própria história ou no próprio
lugar). E a consciência destes seres exilados, quando trágica, tem a ver com o
atravessamento da liberdade pela certeza da finitude tanto quanto pela certeza
sobre uma vida insuficiente. Consciência do abandono de Deus tanto quanto da
instalação de um mal terreno, que parece injusto e irrevogável. Por isso a
perspectiva de pertencimento é inócua, não faz diferença ao homem que não
sonha.
Partindo deste plano de pensamento, tão
irrevogavelmente niilista do início ao fim, a Pequena Companhia o desenvolve,
no entanto, através de uma dialética bem sustentada e cheia de nuances. E faz
dela o campo, o solo fértil para um teatro provocativo. A colheita é de
qualidade. A dramaturgia alinhavada por Marcelo Flecha traz um jogo cuidadoso e
fundo entre as réplicas. Cuidadoso no aspecto que mais interessa a uma arte da
síntese como o teatro: o diálogo entre os personagens não deixa sobras, tudo se
aproveita. É ótimo alicerce para a cena. As falas são inteligentes não porque
complexas, mas porque na aparente objetividade conseguem instaurar questões que
permanecem astuciosamente abertas, à espera das nossas (plateia) colaborações
íntimas para que se arredondem. Ao mesmo tempo trazem o desacordo necessário
para fazer com que as posições em jogo se movimentem de um ponto a outro, no
sentido da argumentação. O resultado é tão bom que o contraste fica evidente
nos poucos momentos em que uma ou outra ideia parece fugir ao universo das
personagens, expressando a voz do autor lateralmente ao conflito que está em
andamento.
No plano visual do espetáculo luz,
cenário e atuações ordenam-se em um mesmo movimento orgânico. Sob o argumento de que o agora catador de
latinhas tenha sido em algum momento da vida um artista plástico cria-se não só
o espaço para a discussão sobre a natureza e função da arte como também uma
ambientação em que os objetos são tão úteis quanto altamente simbólicos. E assim o plano particular da fábula faz a
liga com o contexto social e estético em que ela é agora atualizada. Por
exemplo, há uma significativa instalação com latas de Guaraná Jesus fazendo as
vezes da coluna central de sustentação do casebre; crucifixos estilizados
servem de lenha em um fogareiro no qual não há chamas, só luz. São
desdobramentos do plano cenográfico que cavam aqui e ali aberturas para novos
sentidos, a refazerem os significados do texto de García Márquez, colocando-o a
serviço de imaginário e circunstâncias locais.
O quadro plástico se completa no
trabalho dos atores (Jorge Choairy e Claudio Marconcine). É quando se pode
colocar em perspectiva a história recente do grupo e dizer que esta montagem de
agora reafirma, com excelência, o rigor já apontado em Pai e filho, o
espetáculo anterior. São atuações ‘construtivas’, decididamente erguidas no
trabalho minucioso da estilização dos gestos e das vozes, por fora de qualquer
concepção maneirista. Sem se deixar afundar no formalismo, a criação dos dois
intérpretes inventa humanidades complexas, em composições bem cortadas, postas
a serviço de uma dinâmica viva em sons, ritmos e deslocamentos que se totalizam
em um conjunto límpido quanto aos sentidos.
Se cruzarmos obra e contexto a impressão
que se tem – após observar minimamente as circunstâncias possíveis para o fazer
teatral em São Luis do Maranhão – é de que a Pequena Companhia vem traçando uma
trajetória por fora da ordem dada. A tomar por este Velhos caem do céu como
canivetes, trata-se de um milagre criativo, o que certamente não dispensa o
trabalho e o esforço, visíveis na fatura final do espetáculo. É um trabalho
maduro quanto ao resultado artístico tanto quanto no equilíbrio justo, difícil
de alcançar, entre forma e pensamento. De alguma maneira o grupo corrige com
potência, nos seus modos próprios, as condições nem sempre favoráveis para que
se mantenha de pé um teatro vivo.
*Jornalista, crítico e pesquisador do
teatro pós-graduado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Foi crítico
do jornal Folha de S.Paulo e da revista Bravo! Dirigiu o Departamento de
Teatros da Secretaria Municipal de Cultura/SP (2003/2004), onde gerenciou
alguns dos principais programas artísticos da cidade, como o Formação de
Público e o Programa Municipal de Fomento ao Teatro. Foi curador dos festivais
de Curitiba, Recife e Festival Internacional de Teatro de São José do Rio
Preto. Por dez anos foi professor e coordenador pedagógico da Escola Livre de
Teatro de Santo André e por oito jurado do Prêmio Shell/SP. É membro da Associação
Paulista de Críticos de Arte (APCA), curador no Centro Cultural São Paulo, e colaborador do Teatrojornal.
Mantém estudos sobre dramaturgia e teatro brasileiro contemporâneo.
domingo, 8 de novembro de 2015
O mundo é o palco do encontro
Semana passada acompanhei um dia e meio
de programação do festival “O Mundo Inteiro é um Palco”, promovido pelo estimado
grupo Clowns de Shakespeare.
A oficina “Estratégias para a circulação
nacional”, ministrada pelo querido Marcelo Bones, a cena curta inspirada no meu
texto “Distorções de um dia interminável”, encenada pelo delicioso Grupo
Estação de Teatro, o espetáculo “Desaparecidos”, do Grupo Estandarte de Teatro,
a reunião do “Grupo de pensamento teatral”, recepcionada pelo prófugo amigo
Fernando Yamamoto e capitaneada pelo próprio Bones – reunindo significativos
nomes do teatro de grupos do Brasil, e uma profunda e fecunda conversa sobre
dramaturgia, com meu fiel assassino César Ferrairo. Uma overdose de conteúdo, em dezesseis horas
de permanência em Natal/RN, promovida pelo encontro.
Há anos defendo o encontro. Uso a minha
casa como instrumento de encontro. Abrimos nossa sede para propiciar o
encontro. Lavo, passo e cozinho para promover um encontro. Só entendo a vida e
a arte através das verdades confessas no encontro. Contudo, mesmo sabendo da
importância do encontro, percebo que achamo-nos desencontrados.
Com a ilusão do encontro virtual a
contemporaneidade opera uma proeza nefasta, e não percebemos que estamos
passando anos sem ver um amigo. A intimidade gerada virtualmente ilude nosso
sentido de afastamento, e nos imaginamos juntos, porém, separados. Ao me apropriar
da rotina oferecida pelo outro através das redes sociais – sabendo o que comeu,
o que vestiu, o que deixou de ler, o que não assistiu –, me entendo encontrado,
sem saber que aquele prato que ele ostenta pode ser o pedido de socorro para a
fome que passa.
Por que, no século do individualismo,
defendo o encontro? Porque o teatro se fundamenta nele, e ceifada a importância
do encontro entre humanos, o que será da minha arte? Do nosso teatro? Da sua
plateia? Advogo em causa própria. Foi o contubérnio com gente de teatro que me
fez ser teatreiro. Encontro. Ele anarquiza e vence o sono, a fome, o frio, a
sede.... Quantas noites sem dormir por causa de grandes encontros? Quanto frio
amenizado pelo abraço do encontro?
O teatro é a arte do encontro, e a
primeira barreia que ele sofre hoje é convencer o espectador a participar desse
encontro. Sem sair de casa, o indivíduo não precisa encontrar com ninguém para assistir
um filme, comer uma pizza, comprar um quadro, ler um livro, jogar golfe com
outro indivíduo que mora em Paris, mas, precisa tirar a bunda do sofá para ver
teatro. Precisa.
O encontro que o teatro promove é único,
autêntico, inusitado e visceral. Uma experiência cada vez mais pertinente, e paradoxalmente
distante, na vida contemporânea. Se o indivíduo desse o primeiro passo além da
fronteira do sofá, se depararia com um universo presencial tão pujante que jamais
tornaria a abandonar as sensações propiciadas por um espetáculo de teatro.
Acredito nisso, verdadeiramente.
Segunda começa a X Semana do Teatro no
Maranhão. Um bom motivo para largar o controle remoto e vir se encontrar com esse
povo que faz teatro. No nosso caso, em duas oportunidades: “Velhos caem do céu
como canivetes”, terça, 18h30, e quarta, 20h30, na sede da Pequena Companhia de
Teatro. A gente se encontra.
domingo, 18 de outubro de 2015
Estética profética para um mundo pré-apocalíptico
Papelão, rolha, jornal, lixas, madeiras de descarte, lâmpadas caseiras, banners, latas de refrigerantes, tubos e cones
de papelão, sucata de ferro, CDs, cintos, ventilador, carreteis, plástico,
estrela do PT, resíduos de cobre, pingômetro, linha, refletor de jardim,
molduras, carcaça de vitrola, vela, tesoura da dona Zilma, couro, para-brisas
de carro, cabos de vassoura, panelas, porta, embalagem de cigarro, latas de
conserva, papel de imprensa, farol, tecidos, presente da Sílvia, penas, sacos
de sapatos, tábua de carne, resíduos elétricos, faca de açougue, arame,
agulhas, colares, colheres de pau, porta partitura, fios de nylon, sem contar os inomináveis penduricalhos das
caixas de som do ser humano – personagem da nossa última montagem.
Todos esses materiais estão contidos nas
cenografias e iluminações de “Velhos caem do céu como canivetes” e “Pai &
Filho”, nossos últimos espetáculos, que permanecem em repertório. Alguns desses
elementos você não consegue identificá-los, não os reconhece, e é esse o nosso
proposito estético quando desenvolvemos nossos cenários e iluminações. Esses
elementos encontram-se, mesmo aparentes, ressignificados em seus dizeres, e
tentam auxiliar as personagens nas suas narrativas. Revelar a cênica ocultando
a matéria-prima é a finalidade da estética – parafraseando toscamente Oscar
Wilde.
A palestra “Desconstrução estética de
uma companhia”, que passaremos a oferecer junto com a circulação dos nossos
espetáculos, na última apresentação em cada cidade, enquanto acontece a desmontagem
de cenário e luz, busca aproximar o espectador especializado das tecnologias desenvolvidas
pela Pequena Companhia de Teatro para formar seu arcabouço cenográfico (a
partir de materiais recicláveis) e de iluminação (a partir de fontes luminosas
de baixo consumo). Nela o espectador poderá não só dialogar sobre o nosso
processo, mas principalmente manipular elementos, tocar texturas, descobrir
efeitos, questionar soluções, e aprofundar o debate sobre os motivos das
escolhas estéticas para os dizeres artísticos.
Paralelo às questões artísticas –
absolutas e primordiais na escolha dos materiais –, a formatação da palestra e
a lida com essa inúmera quantidade de resíduos tem me provocado a reflexão
quanto ao que, efetivamente, precisamos para viver, e o quanto vamos somando
proporcionalmente ao que vamos descartando. O consumo é o grande conceito a ser
problematizado na contemporaneidade, e o teatro pode ser um instrumento de
exposição do nosso desperdício.
Caberia apenas incorporar um conceito
sustentável. Para se construir uma encenação a partir de elementos residuais não
é necessário incorporar uma estética suja, feia, pensada como lixo, fedor,
decadência. A sociedade atual oferece a variedade de resíduos e descartes que o
espetáculo demandar, sempre e quando se tenha o olhar atento para o entorno, e
um diálogo permanente com a cidade que nos abriga. Quer madeira? Tem. Quer
plástico? Tem. Quer ferro? Tem. Quer papel? Tem. Quer dióxido de silício? Tem.
Sem contar o auxílio na viabilidade financeira.
Quantos grupos de teatro hoje esbarram em orçamentos estratosféricos para a
confecção de cenografia e aquisição ou locação de iluminação, sem perceber que há
um entorno pulsante oferecendo-se para o usufruto? Basta estabelecer uma visão
estratégica, identificação e catalogando os locais e ciclos de descarte das
mais diversas matérias-primas disponíveis na cidade, o armazenamento exclusivo
dos materiais mais raros, o passeio esporádico para identificar novas fontes, e
o cuidado para não se tornar um acumulador compulsivo – etapa mais difícil da
empreitada. Com esse simples procedimento chega-se a uma economia em torno de
80% do valor final das despesas com recursos materiais de qualquer encenação.
Sustentabilidade e economia, em um só procedimento. Como sei disso? Em maior ou
menor escala, essa vem sendo a nossa prática nos últimos dez anos.
domingo, 4 de outubro de 2015
A Pequena na Semana do Teatro no Maranhão
Aposto que você não sabia que a Pequena
Companhia de Teatro, direta ou indiretamente, esteve presente nas nove edições
da Semana do Teatro no Maranhão? Nem eu, até parar para pensar no assunto,
depois de recusar um convite que me foi feito.
Criamos a Pequena Companhia de Teatro um
ano antes do surgimento da mostra maranhense, e de lá para cá, vimos mantendo
um diálogo fluido com o evento, diversificando nossa participação ora com
espetáculos, ora com palestras, música, oficinas, encontros, e percebo que nossas
histórias se confundem, assim como se confundem com as histórias dos poucos que
se mantiveram fazendo teatro durante a última década.
Tentando fazer memória, e já sabendo que
vou me equivocar, suprimir, inverter, trocar ou delirar, segue uma possível
sequência da nossa participação, esperando que o leitor mais atento me ajude a corrigi-la
através de comentários aqui no blog:
I (2006) – “O acompanhamento”, de Carlos
Gorostiza, espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, estreado em 2005.
II (2007) – “O segredo do labirinto”, de
Lio Ribeiro, espetáculo-solo com Cláudio Marconcine, e “Memórias de um
mau-caráter”, de Marcelo Flecha, monólogo com César Boaes e direção de Urias de
Oliveira.
III (2008) – “Deus danado”, de João Denys,
espetáculo da Cia. A Máscara de Teatro, dirigido por Marcelo Flecha.
IV (2009) – "Interstício", de Márcio Gledson, Cláudio Marconcine e Rummenigge Medeiros, espetáculo-solo com Cláudio Marconcine, e festa de confraternização,
com o DJ Jorge Choairy.
V (2010) – “Entre laços”, de Gilberto
Freire de Santana, espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, estreado em 2009.
VI (2011) – “Pai & Filho”, de
Marcelo Flecha, espetáculo da Pequena Companhia de Teatro, estreado em 2010.
VII (2012) – Mesa de debate “Dramaturgia
Maranhense – Desafios da publicação”, com Marcelo Flecha.
VIII (2013) – “O Quadro de Antagônicos
como instrumento de treinamento para o ator”, oficina da Pequena Companhia de
Teatro.
IX (2014) – “Velhos caem do céu como
canivetes”, de Marcelo Flecha, espetáculo da Pequena Companhia de Teatro,
estreado em 2013.
Dessa década de encontros e desencontros
só guardo uma única magoazinha. Minha montagem de Medeia, com a Cia. A Máscara,
de Mossoró, foi preteria em uma dessa edições, e a única cidade maranhense que
teve a possiblidade de ver o espetáculo foi Imperatriz. Uma pena, pois meu pai
dizia que era muito boa.
Durante esses dez anos venho
acompanhando os caminhos e descaminhos da mostra. Passaram governos, comissões,
protestos, patrocinadores, gestores, formatos, mas nós não. Estamos aqui,
fazendo teatro. Não fosse isso, a mostra mostraria o quê?
A semana sobreviveu graças ao seu
principal sustentáculo que alicerça qualquer festival, mostra ou encontro
teatral: o trabalho ininterrupto dos poucos fazedores de teatro que existem no
Maranhão. Quantos ficaram pelo caminho? Quantos novos gênios nasceram e
morreram de uma mostra para outra? Quantos venderam seu sonho por patacas? Onde
você estava em 2006, em 1996, em 1986?
Agora a Semana chega a uma dezena de
edições, após sérios riscos. Andou trôpega, cambaleante, mas hoje se firma com data,
edital e orçamento. Ao governo que dá os
primeiros passos na construção de um estado melhor para todos, sugiro não
perder de vista o barro que constrói o evento, pois sei que a Pequena Companhia
de Teatro sobreviveria sem a Semana do Teatro no Maranhão, só não sei se a Semana
sobreviveria sem grupos de teatro.
Medeia, um fragmento |
domingo, 27 de setembro de 2015
Dois – uma jornada pelo abismo teatral
Fui espectador da primeira montagem
profissional do texto “Dois”, terceiro texto da minha dramaturgia reunida
publicada em 2011, pelo Programa BNB de Cultura, com o apoio do SESC–MA. O
desafio ficou a cargo da queridíssima e parceira Cia. A Máscara de Teatro, de
Mossoró, por consequência, o afeto me impede de tecer qual seja a crítica digna
de confiança, pois minhas palavras seriam suspeitíssimas, mas não vou me privar
de aprofundar o meu olhar sobre as ofertas que a montagem proporciona para o
espectador, esse catatônico das plateias, como prega o próprio texto.
A experiência do autor teatral como
espectador da própria obra é algo diferente de tudo o que um artista possa
experimentar; principalmente no meu caso, onde a intenção de montagem jamais
permeou meus pensamentos quando da escrita dos cinco textos que fazem minha
dramaturgia. Como a dramaturgia de gabinete sempre foi um exercício parar o
melhoramento do meu ofício – a direção – nunca me precipitei além do
dramaturgo, imaginando como procederia eu se fosse o encenador da dita obra.
Então, assisto como espectador, e me divirto, me emociono e me envolvo com a
oferta.
No teatro, o autor do texto é um mero
provocador da explosão cósmica que os atores, o encenador, o iluminador,
cenógrafo, sonoplasta, se encarregam de transformar em universo; e foi esse
universo que se revelou para mim, quando me encontrava sentado na segunda fila
do Espetáculo Espaço Cultural, incomodado com a primeira fileira reservada e
vazia, primeira surpresa que reservava a montagem, mesmo para o tolo autor que
não enxergou o óbvio.
A partir daí me deparei com uma
construção atoral de unidade singular, onde Tony Silva e Luciana Duarte
produziam vigoroso desempenho, durante os três momentos de desconstrução pelos
quais passam as atrizes. Me causou certo espanto ver a versatilidade de ambas,
tendo em vista já ter trabalhado tanto com as duas que imaginava não restar
muita coisa para me surpreender.
Uma direção segura, generosa, e tomada
de um frescor visceral foi uma das principais surpresas. O diretor Jeyson
Leonardo era para mim um estranho, pois ainda não havia aparecido nenhuma
oportunidade de acompanhar suas empreitadas no universo da encenação. A
revelação foi a de um artista comprometido, inquieto e expressivo, disposto a
oferecer a cara a tapa sem o menor constrangimento.
Outra surpresa foi a forma esteticamente
criativa que encontraram para apresentar a ausência de cenografia que a obra
sugere. Mantendo o conceito, o preenchimento do vazio árido com um vazio
estético, capitaneado por Damásio Costa, alargou a possibilidade de
comunicação, resolvendo o desconforto provocado pela aridez excessiva, que
faria com que o espectador se distanciasse.
Eu transitava entre o lúdico, o caótico,
o cômico, o orgânico, o dramático, sem me aperceber do autor que se escondia
atrás da minha prazerosa jornada, e não consegui enxergar nenhum excesso,
ruído, ou lapso, natural para um espetáculo que inicia sua trajetória – que
espero, torcendo, seja longa, inspiradora e divertida.
A única pergunta que me faço é quanto à
opção na forma e conteúdo das duas desconstruções que se sucedem – nas cenas de
transição entre um momento e outro –, quando me inquietava a curiosidade de
saber qual foi a análise que fizeram para chegar à opção encenada. Como minha
passagem por Mossoró foi como um relâmpago, não tivemos aqueles saborosos
momentos de intimidade, que proporcionariam o aprofundamento do diálogo sobre
essa peculiar opção, que, de alguma maneira, repaginou o segundo momento da
peça – momento este que sempre me pareceu problemático de sustentar.
Espero que esta querida parceira nunca
pare, e que sua máscara continue a espantar o espectador, distribuindo arte a
partir desse epicentro teatral tão querido e improvável, esse país chamado
Mossoró.
domingo, 20 de setembro de 2015
Sobre fracassos, holofotes, engraxates e clichês
A aprovação do nosso projeto no Programa
Petrobras Distribuidora de Cultura, o ineditismo do fato, e a consequente capa
no caderno de cultura do jornal O Estado do Maranhão, me fez refletir sobre o
quanto dependemos de factoides para que o nosso trabalho artístico seja assimilado
e reconhecido pela sociedade não vinculada às artes cênicas.
A percepção da relevância não se
estabelece mantendo temporadas regulares dos espetáculos gratuitamente,
oferecendo oficinas de formação, dedicando dez longos anos na construção de um
dizer artístico, na consolidação de procedimentos metodológicos, ou na
tentativa de alargar as opções teatrais do espectador. É preciso da manchete,
do fato, da notoriedade.
A ideia do homem de sucesso, do caso de
sucesso, da empresa de sucesso, do sucesso do espetáculo, do ator de sucesso,
do grupo de sucesso está tão consolidada na sociedade contemporânea que por
mais que você renegue esses valores o interlocutor suspeitará, torcendo a boca
ao imaginar que você blefa, pois é inconcebível hoje alguém ignorar um
holofote.
Ainda que o caro leitor desconfie, eu
afirmo: meus valores são outros. Sobre essa perspectiva, prefiro ser um homem
de fracasso. Não acredito nesses valores. Sucesso e fracasso são bases de um
conceito que de nada contribuem para a formação do cidadão, do artista, da
sociedade. Se o conceito de sucesso é a medição da minha sobreposição ao meu entorno
posso concluir que todo o entorno fracassou, e passo a medir o meu sucesso pelo
fracasso dos outros?
Há décadas abandonamos a ideia de medir
a arte teatral através desses parâmetros; lutamos para que hoje 99% dos
festivais e mostras de teatro brasileiro não sejam competitivos, por acreditar
que não é sobre o escudo desse tipo de valores que conseguiremos mensurar a
relevância de uma obra de arte para a problematização da sociedade, contudo,
permanecemos reféns do reconhecimento pálido, da exposição fugaz, da notícia
vaga, da visibilidade anônima.
Penso que é nosso dever romper com essa
lógica e assimilar a virtude da nossa insignificância. Como sentencia o clichê,
a arte é inútil, e mais inútil ainda é insistir em tentar chamar a atenção do
cidadão indiferente ao nosso fazer através da exposição de um esporádico
episódio de sucesso. A ação artística chegará a esse cidadão de outra forma,
sutilmente, sem ele perceber, e sem a necessidade de que ele reconheça a
grandeza da nossa insignificância.
Mas como sobreviver sem esse
reconhecimento? Como manter uma atividade artística permanente sem a
visibilidade necessária para que a sobrevivência possa ser possível? Trabalhando.
Da mesma maneira que a médica, o engraxate, o feirante, a professora, o
barbeiro. Nenhum deles depende do reconhecimento daquele que não necessita dos
seus serviços. O engraxate não depende do reconhecimento de um homem que só usa
tênis. A médica não precisa do reconhecimento do são. O barbeiro não necessita
do reconhecimento de um careca. Contudo, trabalham para sanar necessidades
básicas e vitais para a existência humana, e lidam cotidianamente com sucessos
e fracassos diários: a graxa que manchou a calça, o sorriso do paciente curado,
o alto índice de reprovação na sala de aula, a fruta que apodreceu e não chegou
à boca do faminto porque não dispunha do dinheiro para comprá-la.
Com o artista não é diferente. Vivemos
do entendimento daqueles que enxergam em nosso fazer um sentido para suas
vidas, e esse sentido está além da proximidade do sapato, do cabelo, da saúde.
É nesse interstício da vida das pessoas que a arte se mostra, com o fracasso
diário de tentar alargar essa brecha e com o sucesso esporádico de encontrar
cabida em outro coração inquieto.
domingo, 13 de setembro de 2015
As amarras da liberdade
Um amigo, mais afeiçoado a modernices do
que eu, ao término de uma das apresentações de Velhos caem do céu como canivetes, sentenciou: Que massa! Vocês fazem teatro mesmo, com personagens,
cenários, texto, figurinos... O amigo não vai me censurar por tomá-lo como
exemplo, aja vista que escrevo para passar o tempo e escasseio de atenções
desmensuradas.
Enquanto se desenrolava o devir da
conversação eu me perguntava: como assim? Mas o teatro não é isso, basicamente?
Digo, isso não deveria ser a base, e não a exceção? Senti-me jurássico, no
decorrer dos poucos minutos que prosseguiram enquanto outras adjetivações
assombravam o teatro que fazemos.
Eu reconheço a pluralidade teatral, e
penso que uma linguagem só se desenvolve a partir desse pluralismo, mas não
vejo com bons olhos o olhar de quem nos vê com olhos saudosistas (o trocadilho
é para você ficar estrábico), porque do teatro precisa sobrar para o espectador
pouco mais do que uma ideia na cabeça.
O pensamento revelado pelo amigo
encontrou eco recente em uma reunião de artistas para compreender as diretrizes
de um outro dos tantos editais de cultura que minimamente propiciam o fazer
artístico por todo o Brasil – sendo este mecanismo o que sobrou das promessas
de políticas públicas culturais em que tanto acreditamos e continuamos
esperando.
Nessa reunião senti-me igual. Sobre a
égide da inovação, ineditismo, pluralismo, singularidade e afins, o poeta que
escreve poesia, o cantor que canta, o grupo de teatro que faz teatro, o
bailarino que dança, o ator que atua parecem verdadeiros dinossauros perdidos
ou encaixotados em arcaicas e ultrapassadas linguagens artísticas. Por mais
relevante que seja uma obra de arte, parece ser necessário que esteja
apresentada em um invólucro contemporâneo, logo, não importa quão
revolucionário se mostre o seu dizer/fazer, se não for apresentado de forma
inusitada.
Claro que não me contive, e perguntei se
nessas quase duas décadas de programa havia sido selecionado algum projeto que contemplasse
simplesmente as atividades artísticas dos fósseis citados acima. A resposta foi
curiosa: parecer ser que uma Cia. de dança que estava no fim, resolveu celebrar
esse fim inscrevendo um projeto, uma espécie de extrema-unção da sua dança. Não
preciso dizer que a inovação de uma Cia. que celebra seu fim foi contemplada.
O disparate para mim é celebrar o fim de
uma Cia., quando a verdadeira inovação é conseguir manter no Brasil um coletivo
artístico na contramão do mercado, do achincalhe das artes, do entorpecimento
criativo. Cias, grupos e coletivos morrendo tem aos borbotões. Inédito é um
grupo de teatro brasileiro conseguir chegar a trinta anos de história fazendo
teatro. Insisto, é muito fácil inventar-se criativo, inovador, polêmico, como
já falei aqui e aqui, o difícil é inovar organicamente, comprometer-se com as mudanças
estruturais que devem acontecer no país para que a barbárie não se estabeleça.
Consigo ouvir a pergunta que está
prestes a pular da sua boca: o edital não tem o direito de fazer esse recorte,
e por consequência, não incluir aqueles que não se coadunam com esse formato?
Teria, se o próprio não se vangloriasse da quebra de caixas, da não
compartimentalização, do não enquadramento, da liberdade criadora, do não
formato, da contemplação total. Se tudo pode, poderia também aquilo que não
tenta reinventar a roda e apenas desliza sobre a original invenção que fez o
mundo girar. Sob esse modelo, creio que sem perceber, acabara criando sua
própria caixinha.
Ao caro leitor que enxerga no meu comentário
um comprometimento da minha relação com a oferta de oportunidade promovida por
qualquer que seja o instrumento (edital, lei de incentivo, patrocínio, fundos
etc.), sugiro que não tema. Não cale sua voz só por medo a perder a boquinha.
Onde houver recursos públicos, é nossa obrigação questionar, indagar,
contestar. Assim o fiz com a Lei Rouanet, com políticas públicas estaduais, e o
farei com quanto eu achar que minha opinião é oportuna, mesmo que não seja.
Se eu pretendo inscrever algum projeto?
Claro. Mas estruturado no meu particular conceito de inovação, ineditismo e
contemporaneidade, pois não é a arte que deve se adequar ao sistema, e sim o
contrário... E pode me ignorar, afinal, eu sou uma ficção.
Marcelo Flecha
sexta-feira, 11 de setembro de 2015
Morre ator vencedor do prêmio Sated/MA
Entrelaços, Pai&Filho e Velhos... 3 espetáculos em que o procedimento adotado pela Pequena... emprenha seus atores na construção de suas personagens. Revisito-o, agora, em Extrato de nós.
Questionava-me se esse procedimento, que exige demasiado esforço do corpo, seria funcional para atores quarentões. Sei que estou há uma semana em processo e, excetuando o primeiro dia, para mim atípico, os demais foram extremamente prazerosos, comparável a pinto em merda, e bem executados, por um ator de 46 anos.
Cheirei cocaína uma vez, no Rio de Janeiro, na companhia de um amigo. A sensação me foi recuperada esta semana com o exercício do Quadro. Uma energia inesgotável, que se transforma, permanentemente. Chego com uma, reelaboro-a, e saio com outra.
Algumas dores são inevitáveis a partir da exigência de cada antagônico. Por vezes é doloroso acordar. Entretanto, depois de assistir a toda a série de House, posso me dar o direito de ter uma dor de estimação. Agregue-se a isso a musculação nossa de cada dia e a energia sexual que uma masturbação matinal não resolve – tenho a sensação de que esta postagem vai ser censurada –, e tem-se a morte de um ator para o surgimento de uma personagem - ou persona.
Deixemos o tempo cristalizar.
sábado, 5 de setembro de 2015
Pequena Distribuidora de Cultura
A Pequena Companhia de Teatro foi
contemplada no Programa Petrobras Distribuidora de Cultura 2015/2016. Em sua
quarta edição o programa contemplou 83 projetos, sendo 67 na categoria adulto e
16 na categoria infanto-juvenil, que circularão por 119 municípios dos 26
estados e do Distrito Federal. Os selecionados são provenientes de 20 estados
brasileiros e é a primeira vez que um espetáculo teatral adulto maranhense participa
deste programa.
O espetáculo selecionado foi Pai & Filho, que acaba de retornar de uma ocupação no Centro Cultural BNB, em Sousa,
na Paraíba. Pelo programa de circulação da Petrobras o espetáculo
circulará pelas cidades de Primavera do Leste/MT, Campo Grande/MS e Goiânia/GO,
realizando 9 apresentações e 9 debates. Ao fim dessa circulação, o espetáculo terá
visitado 62 cidades de 22 estados, com 145 apresentações Brasil afora.
Além do espetáculo, a Pequena Companhia
de Teatro ofertará a oficina Do épico ao dramático: a transposição de gênero como instrumento de confecção de dramaturgia, atividade formativa já realizada
em 10 cidades de 9 estados. A oficina democratiza os mecanismos de construção
dos textos teatrais da Pequena Companhia de Teatro quando o ponto de partida
são textos oriundos de outros gêneros literários.
Também acontecerão três encontros como
grupos de teatro de cada uma das cidades, para intercâmbio de experiências e
pesquisa. A inovação proposta pela Pequena Companhia de Teatro é que o grupo
convidado participe, não só dos momentos reservados para a reflexão, mas de toda
a estada na cidade, acompanhando oficina, montagem, preparação dos atores,
ensaio, desmontagem, apresentações, debates, alargando o tempo de intercâmbio
entre os grupos.
A jornada acontecerá em julho de 2016,
mês em que a Pequena Companhia de Teatro completará dez anos de estrada. Até lá
esperamos encher este blog de novidades e engordar a celebração deste decênio
de existência.
quinta-feira, 3 de setembro de 2015
URGENTE! Pequena Companhia seleciona atores
E mais uma vez retomo a proposta de espetáculo-solo, agora com o aporte de Marcelo Flecha na direção.
É recorrente a insegurança e a dúvida em início de processo. Para o ator, que sempre está às vistas, exige-se a eficiência de superação de limites na composição de personagens. As comparações entre montagens são inevitáveis. Ficamos reféns do julgamento e da aceitação de estranhos.
A mortalidade dá espaço à imortalidade das personagens na memória de quem as viu. Entrega é a palavra que move qualquer processo criativo. Se há barreiras, elas definem parâmetros de ação, estabelece-se um delineamento na construção. A criação permanece, mas limitada. Sempre o é. Procedimentos metodológicos funcionam para direcionamento, determinando o espaço de criação a parâmetros específicos. A censura também o é, como a dúvida, a indecisão, o medo.
E diz a lenda que o que nos mobiliza é a constante solidão e o digladiar-se entre o ficar e o partir. Nessa fissura me habito e me deixo conduzir. E virão composições, prazeres e dores – físicas até. E se faço um retrospecto do meu trabalho, percebo que essa fragilidade é matinal. Ao final do dia o pensamento reage e conduz o corpo para um outro estado. As horas me apartam.
terça-feira, 1 de setembro de 2015
Ocupar
O centro histórico de São Luís, dizem, encontra-se abandonado. Carece de ocupação.
A Pequena Companhia de Teatro, através do projeto Teatralidades, pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, patrocinado pelo Centro Cultural Banco do Nordeste e realizado pelo Ministério da Cultura, Governo Federal ocupou Sousa, na Paraíba, na primeira quinzena de agosto do corrente ano.
Essa ocupação foi além da programação cultural proposta pelo projeto. Ela foi feita na interação cotidiana dos seus membros com a cidade.
Foram 15 dias, e diferentemente dos projetos anteriores, houve tempo e espaço para uma interlocução com a comunidade. Espaço para turismo paleontológico, gastronômico, comercial, cultural. Espaço para o diálogo além das ações de formação e debates. Ocupação de dentro também, pois foi um período em que a Pequena esteve em contato com seus pares, o convívio foi intenso na perspectiva das horas.
Essa ocupação preenche um pouco a lacuna da ausência de ocupação no nosso próprio terreiro; minimiza aquela sensação de distanciamento da cidade que moramos para habitar uma cidade outra que não a nossa. Um espécie de experimento controlado, ou um ensaio sobre o desejo de fazer o mesmo em nossa cidade.
A vida acumula ciclos, e estamos dançando neles permanentemente. De alguma forma nós fazemos a ponte entre eles. Somos interferidos e interferimos. Não saímos ilesos. É só uma questão de tempo para que o centro histórico de nossa cidade seja acolhido e acolhedor. Um outro ciclo.
domingo, 30 de agosto de 2015
O mundo é dos perfeitos defeitos
O mundo está ficando chato. Não fume,
não beba, não goze antes. Não jogue lixo no chão, não jogue lixo no lixo
errado, não reutilize o lixo se não for cadastrado, não produza lixo – e o que
eu faço com a minha casca de banana? Às vezes me dá aquela vontadezinha de jogá-la
no contrapé do transeunte para poder sorrir com a queda, mas não posso admitir
esse desejo nem no mais profundo pensamento, sob pena de tornar-me o verme mais
desprezível da terra.
O politicamente correto está ficando
reto demais. Quadrado demais. Fechado demais. Político demais. Sou obrigado a
acreditar que minha casca de banana vai destruir o mundo; e eu acredito, e eu
apanho a casca, e eu a jogo no lixo, e eu ajudo o infeliz a levantar depois da
queda, e eu xingo com ele o infeliz que jogou a casca, e eu padeço, imóvel,
diante de tanta perfeição.
Clandestinidade, rebelde, transgressão,
mentiroso, mau humor, subversivo, invejoso, gordo, raiva, são palavras
proibidas, renegadas, extirpadas do dicionário cortês; e eu acho todas elas
dignas, mas não posso achar.... é feio. Ninguém mais no mundo sente raiva a não
ser eu? Sou o único mentiroso da terra? Todas as pessoas do planeta acordam com
um sorriso no rosto? Você nunca sente inveja sem ter que dar uma coloração
esbranquiçada para ela?
Pobre do belo se não existisse o feio,
pobre do reto se não existisse o torto, pobre do simpático se não existisse o
chato, pobre do feliz se não existisse o amargo, pobre do certo se não
existisse o errado. O convite é para errar mais. Provar da imperfeição de que
somos feitos, lidar com nossos defeitos, tolerar os dos outros, e imaginar quão
chata se tornará a vida se todos forem perfeitos como você.
Erre mais, sofra mais, coma mais,
desobedeça mais. Seja incompetente, preguiçoso, irresponsável, asno, vagabundo,
cachaceiro. Arrisque-se para além da plataforma de correção que a
contemporaneidade nos impõe e conheça o desespero provocado pelo abismo. Voe
para além das placas de “Não perturbe”, “Não mexa”, “Não avance”, “Não fume”,
“Pare”; se perceba errando para poder consertar. O erro pode ser o seu maior
patrimônio.
Deixe a perfeição para seu pai, seu
marido, seu vizinho, seu amigo, eles são mestres nisso. Concentre-se no lodaçal
que o erro tem para lhe oferecer e se lambuze nele. A sociedade precisa de você
enterrado na lama para poder apontar seus indicadores e atingir a redenção a
partir da recriminação dos seus vícios, seus gestos, seus pensamentos, seus
desejos, seus anseios, seus temores.
Na sociedade do corpo perfeito, das
virtudes virtuais, da opinião polida, da verdade absoluta, deixe-se engordar um
pouquinho para que a culpa nossa de toda segunda-feira venha lhe salvar.
Resolva mudar, para pior. Se o melhor for o pasteurizado, o padronizado, o modelado,
o moderado, piore um pouco a cada dia para melhorar a nossa reta realidade.
E o principal: não façam nem o que eu
digo nem o que eu faço, pois sou uma ficção.
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Nudes dos atores da Pequena... caem na rede
São 3 (MA/PE/PI; CE/PB/RN; AL/BA/SE), temos dois (CE/PB/RN; AL/BA/SE), li um (CE/PB/RN). É a cartografia do teatro de grupo do Nordeste, realizada pelos Clowns de Shakespeare, com patrocínio público.
Comumente nos queixamos ou pelo cansaço das horas ou pelo desgaste das engrenagens - que fazem esforço repetitivo sem, contudo, saírem do lugar. Artistas são assim aqui e acolá. Queixumes por ausência de público, recursos financeiros, existência ou ausência de espaço para apresentação, excesso ou falta de trabalho. Há motivos para todos os gostos.
A Cartografia..., reforçada pelas mesmas perguntas, obtém as mesmas respostas - com algumas variações -, do que já era senso comum: todos os grupos teatrais existentes na galáxia têm as mesmas inquietações. Independente do recorte histórico, a corrida do peixe sempre será a mesma. Alteram-se os atores, mas a labuta é a mesma. Ou o teatro carece de novidade ou a insatisfação é tamanha que esse fazer carece de foco.
Essa repetição de acontecimentos constroem um fazer que é permanente. Quando a história é contada sem amargor ou denúncia, a leitura se torna prazerosa. Quanto não, funciona como um espelho espatifado.
Onde eu me enquadro? Esquadro. Onde eu me situo? Recuo. A persistência reconduz o e(u)quívoco ou molda a ro/retina? Um conselho? Façam, meninos; façam.
A Cartografia... foi-nos enviada, gratuitamente, pelos seus realizadores. Na Web, o valor, em sebos de Natal, variam entre 90 a 110 reais o exemplar.
domingo, 23 de agosto de 2015
Um lugar para voltar
Detalhe do sítio paleontológico que eu não queria visitar |
No decorrer dos últimos vinte anos o
teatro me levou para os lugares mais inesperados; destinos impensados, basicamente,
porque sou um homem avesso a empreitadas, alheio a aventuras, indolente a
descobertas. De Macapá a Ijuí, de Catania a Palmeira dos Índios, de Owatonna a
Castanhal, de New York a São Paulo, de Taormina a Rio do Sul, de Mossoró a
Chapecó, visitei quase uma centena de cidades que jamais seriam meu destino,
não por falta de atrativos – é que não sou afeito a passeios, ou, como diria na
intimidade, nem de turismo eu gosto.
Experiências singulares, todas, que de
alguma maneira influenciaram minha visão de mundo, meu sentido de pertencimento,
minha relação com o desterro, minha vida. Qual fosse a cidade, sempre tive a
sensação de que jamais chegaria até ela se não fosse o teatro.
Em que momento da minha vida eu
decidiria passar vinte dias na cidade de Sousa, na Paraíba, para conhecer o Luizinho,
o Felipe, a Adriana, a Rose, o Kleyner, ver pegadas pré-históricas, discutir o
ponto da carne no Restaurante Mussambê, ver uma exposição no Centro Cultural
BNB? Nunca. E eu teria perdido uma chance inusitada de continuar entendendo
este Brasil, sem intermediários, sem guias, sem o mercado do turismo que tanto
distorce a realidade.
O teatro. O teatro promoveu duas décadas
de “turismo” constante a um ranheta contumaz, porém, permanentemente disposto
a pegar o primeiro volante, avião, ônibus ou barco para levar um pouco de
teatro ao espectador mais improvável, e surpreendê-lo com a própria
circunstância do inusitado encontro, ver um espetáculo de São Luís do Maranhão.
Se eu tratasse das minhas viagens fora
do teatro sobraria muito pouco o que contar, e o destino primordial seria quase
sempre o mesmo, Buenos Aires, cidade de onde saí aos dez anos e que nunca termino
de visitar. Foi de lá que parti para a primeira viagem sem ter a menor noção de
que minha vida seria viajar em busca de espectadores e retornar em busca do meu
lugar.
Portanto, agradeço ao teatro. Sou grato à Pequena
Companhia de Teatro, ao Centro Cultural Ópera Brasil, e a todos os grupos e
companhias de teatro que me levaram a experimentar o sabor de morar no mundo e
descobrir as delícias de ter um lugar para onde voltar. É no retorno que se
entende o motivo da partida. Partamos, então, rumo ao desconhecido, com a
certeza de que a nossa casa sempre nos espera.
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